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As plantas viajantes: a imigração dos alimentos pelos mares

História da imigração das plantas pelos continentes e como isso ajudou na padronização da alimentação no mundo.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h21 - Publicado em 31 out 1995, 22h00

Ivonete D. Lucírio

Das caravanas da Antiguidade às caravelas dos descobridores, o entra-e-sai de plantas pelos cinco continentes atravessou milênios e revolucinou a alimentação mundial. O intenso trânsito botânico acabou padronizando a dieta. Hoje, a humanidade come, basicamente, o produto de vinte espécies vegetais e apenas três delas — trigo, arroz e milho — fornecem metade da comida de todo o planeta.

Por Ivonete D. Lucírio

Até o século XV, a Europa passava praticamente a pão e água e a base alimentar era o trigo. Além de ouro e prata, os descobridores europeus procuravam encontrar novas terras para expandir o cultivo do cereal. O trigo era tão importante que os portugueses pensaram em desistir de colonizar a Ilha dos Açores porque achavam que a região não era boa para ele. Buscavam, também, outras fontes de especiarias, os condimentos como pimenta, noz-moscada e cravo, supervalorizados porque eliminavam o mau cheiro e o gosto ruim das carnes, de difícil conservação e fácil decomposição, na época. O que os descobridores provavelmente não previram é que iriam voltar da América com as caravelas tão cheias de novos alimentos — como milho, mandioca, feijão e tomate — que revolucionariam os hábitos da humanidade.

Algumas plantas também migraram da Europa para o Novo Mundo. Como os viajantes da Era dos Descobrimentos não sabiam se encontrariam alimento na América e na África, enchiam os porões dos navios com sementes e mudas para cultivar. “Foi assim que chegaram ao continente americano o trigo, o café, a cana-de-açúcar, o arroz, a banana e a laranja”, afirma o agrônomo Antônio L. Gonçalves, do Jardim Botânico de São Paulo.Depois de séculos de intercâmbio, hoje quase todo mundo come a mesma coisa. Segundo o biólogo Edward Wilson, da Universidade de Harvard, apenas vinte espécies de plantas fornecem 90% do alimento mundial, e só três delas — trigo, milho e arroz — são responsáveis pela metade. Essa padronização aconteceu porque algumas espécies rendem mais, graças à habilidade que o homem desenvolveu para alterar geneticamente uma planta. Ao longo do tempo, aprendeu-se que é possível cruzar variedades diferentes e reunir, em uma mesma planta, as características mais produtivas de muitas delas, como rentabilidade e resistência ao frio, ao calor e às pragas.

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Mas se o cultivo de plantas melhoradas geneticamente pode acabar com a fome no mundo, também pode provocá-la. Quanto mais se globaliza o cultivo de apenas um tipo rentável, elimina-se a variedade que permite melhorá-la. Além disso, grandes monoculturas são mais vulneráveis a fungos, pragas ou mudanças climáticas.

Se uma praga atingir a plantação despreparada para resistir… tudo será perdido. Na Irlanda, o desastre fez história. A batata, levada da América para a Europa, havia se tornado a monocultura daquele país. Em 1845, as lavouras foram atingidas por um fungo e, como as plantas eram todas da mesma variedade, não sobrou uma. Dos 5 milhões de irlandeses, 1 milhão morreu de fome e 1,5 milhão migrou para os Estados Unidos.

As plantas viajavam sem passar na alfândega até pouco depois dos grandes descobrimentos. Mas, em meados do século XVII, a festa acabou. Os países que detinham maior controle sobre determinada cultura instituíram o monopólio. Foi o que aconteceu com o café, originário da Etiópia e introduzido nas Guianas pelos franceses, no início do século XVIII. A saída de sementes do país era proibida.

Conta a história que um certo sargento paraense, Francisco de Melo Palheta, foi enviado às Guianas para resolver um problema diplomático e, secretamente, contrabandear mudas de café para o Brasil. Teve sucesso nas duas missões: fez os franceses reconhecerem o limite da fronteira e gastou todo o seu poder de sedução para convencer a esposa do governador da região a lhe ceder algumas sementes. Em 1722, a planta passou a ser cultivada no norte do Brasil e foi conquistando outras regiões. Em pouco tempo, o país tornou-se o primeiro produtor mundial de café, posto que mantém até hoje, com uma safra anual de 17 milhões de sacas, ou 1 milhão de toneladas.

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Pouco depois desse romântico contrabando, veio o troco. Quando os portugueses chegaram aqui, já encontraram os indígenas da região Amazônica usando o látex, extraído da seringueira, para vedar canoas e fazer bolas usadas num jogo parecido com o futebol. Logo o Brasil passou a fazer melhor uso da planta e se transformou no único produtor de borracha. Em 1876, porém, o inglês Henry Wickham contrabandeou algumas sementes de seringueira para a Inglaterra. As plantas que sobreviveram foram levadas para a Malásia e Indonésia e melhoradas geneticamente — o que afundou o glorioso ciclo da borracha amazônica. “Como aqui praticava-se apenas o extrativismo, a produção do exterior passou a ser maior e mais barata”, conta o botânico Antônio Salatino, da Universidade de São Paulo.

Algumas vezes, o contrabando de sementes serviu para consumo doméstico. Originária das Antilhas e América Central, a palmeira-real, ou imperial, foi introduzida no Brasil pelo português Luiz de Abreu e Silva que, aprisionado pelos franceses nas Guianas (também), conseguiu roubar uma muda e fugir.

A planta foi oferecida como presente ao rei Dom João VI, que mandou plantá-la no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, no início do século XIX. Os diretores do Jardim faziam questão de tratá-la com toda reverência e, quando a árvore produzia sementes, mandavam queimá-las para evitar que outros lugares pudessem desfrutar do privilégio real. Nem por isso os endinheirados da colônia se acanharam: escravos que trabalhavam no Jardim escalavam o tronco da palmeira à noite, roubavam algumas delas e as vendiam no câmbio negro. Daí, as sementes roubadas difundiram-se.

O Brasil já ofereceu ao mundo numerosas plantas importantes, além da mandioca e da seringueira, a começar pela madeira que deu nome ao país: o pau-brasil, que era usado pelos europeus para produzir um corante de tecidos e tintas de escrever. Mas isso não é nada perto do que ainda pode oferecer no futuro. “O número de plantas praticamente desconhecidas que o Brasil tem a oferecer é imenso”, garante o economista americano David Hathway, especialista em patentes e biodiversidade, radicado no país há dezoito anos. O Brasil é o maior empório mundial de plantas. Seus recursos podem mudar não só a dieta do mundo como a Medicina. Mas falta capital e tecnologia.

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Boa parte dessas plantas mora na Amazônia. Uma preciosidade desperdiçada, por exemplo, é a pupunha , palmeira da qual se aproveita tudo: a raiz é vermicida; o caule serve para a construção de paredes e cercas; as flores fornecem tempero; das folhas fazem-se cestos; e o fruto, delicioso, tem alto valor nutritivo, rico em amido, óleos e proteínas. Cultivada há séculos pelos indígenas, a planta é uma estranha dentro do Brasil e desconhecida no exterior. Se fosse norte-americana, o mundo já estaria comendo pupunha-flakes.

Fama, mesmo, alcançou a castanha-do-pará, conhecida na França como noix du Brésil, nos Estados Unidos como Brazil nut e na Alemanha como Pará-nuss. Além do sabor agradável, tem alto valor nutritivo: duas castanhas valem por um ovo. Só por isso, deveria ser incluída nas merendas escolares. Mas, além disso, fornece óleo para cozinhar e para a lubrificar motores. Outra planta rica em óleo, ainda pouco aproveitada, é o babaçu, vegetal com a maior capacidade de produzir óleo no mundo. Um babaçual de quinhentas árvores é capaz de gerar 125 barris de óleo comestível por ano.

Não é difícil esticar a lista de plantas amazônicas que podem render uma infinidade de produtos. Ela é quase interminável, já que desconhecida. O buriti, por exemplo, tem um fruto saboroso e rico, ótimo como sorvete. Sua polpa tem uma massa semelhante à fruta-pão e os brotos fornecem palmito. Na Califórnia, está na moda o batom de urucum, do Acre, de cor sensual e livre de tingimentos sintéticos. O guaraná, popular em refrigerantes nacionais, pode ser usado na criação de aromatizantes e sua cafeína tem efeito broncodilatador e estimulante do sistema nervoso central. Com pesquisa e investimentos, as plantas da Amazônia podem enriquecer a dieta do futuro.

A biodiversidade brasileira também pode oferecer a cura para várias doenças, como o câncer. Uma planta que vem sendo estudada por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), cujo nome é mantido em segredo, promete avanços importantes. O problema dos medicamentos anticancerígenos é que eles atacam também células sadias. “No caso dessa planta amazônica, o princípio ativo seria capaz de ir diretamente à célula doente”, diz o farmacêutico Jayme Sertié, do Laboratório de Farmacologia e Toxicologia de Produtos Naturais da USP.

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O Brasil esconde outras surpresas. “As florestas tropicais abrigam 100 mil espécies de plantas com potencial farmacêutico, mas apenas 1% foi estudado”, diz Sertié. No momento, o laboratório da USP está pesquisando outros dois vegetais brasileiros. Um deles é o paulista guaçatongue. O terpeno, um de seus princípios ativos, é capaz de cicatrizar a mucosa do estômago com mais rapidez que os remédios convencionais, nos casos de úlcera. Já a erva-baleeira, encontrada em toda a costa brasileira, promete ser um potente antiinflamatório. Enquanto isso, a Fundação Oswaldo Cruz, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, está pesquisando o uso do quebra-pedra, planta abundante em todo território brasileiro, no combate ao vírus da hepatite B. Só não foram realizados estudos sobre a possibilidade de fabricar medicamentos usando essas plantas porque não existem indústrias brasileiras capacitadas para isso.

Mas nada impede que laboratórios internacionais tomem conhecimento dessas plantas e passem a produzir medicamentos que o Brasil, então, terá de importar. De acordo com a lei em vigor por aqui, não é permitido patentear vegetais. Com isso, fica fácil para outros países se apropriarem de plantas nativas — e nada pagarem por isso.

Durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92, realizada no Rio há três anos, foi feito um acordo, a Convenção da Biodiversidade, segundo o qual qualquer país que criar um produto usando uma planta de outro deverá conceder participação nos lucros. Só que a Convenção ainda não foi posta em prática. “Como não foram elaboradas leis para regulamentar o documento, as plantas continuam saindo do país gratuitamente”, diz o economista David Hathway. De fato, existem vários remédios feitos à base de plantas brasileiras e comercializados em todo o mundo. O barbatimão-de-folha-miúda, por exemplo, é industrializado nos Estados Unidos desde o início dos anos 60. Sua vagem possui a chamada rutina que, misturada com a experidina (substância presente na casca da laranja), é capaz de evitar abortos e hemorragias. O jaborandi do Maranhão, que tem um princípio ativo chamado pilocarpina, é amplamente usado na Alemanha em colírios para controlar o glaucoma.

Para saber mais:

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Terra de trigo

(SUPER número 8, ano 4)

O desafio do superarroz

(SUPER número 10, ano 5)

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