Quem descobriu o Brasil?
Chineses no Brasil? Vikings na América? Exploradores fenícios? Não acredite em todas as lições de história que aprendeu na escola
Estamos no outono de 2001, em uma pequena loja de antiguidades na cidade portuária de Xangai, na China. Pendurado na parede, entre outras relíquias, um velho mapa-múndi acumula poeira. Poderia continuar lá para sempre, não fosse pelos olhos atentos de Liu Gang, um dos mais respeitados advogados corporativos da China e colecionador de antiguidades nas horas vagas. Examinando o achado, Liu Gang logo nota algo estranho. O mapa está coberto de anotações em caracteres chineses e uma delas contém a data em que foi desenhado – 1763. Mais abaixo, lê-se: “O cartógrafo Mo Yi Tong copiou este mapa a partir de um original de 1418”. A informação é um contra-senso – pelo menos no que diz respeito à história que todos nós aprendemos nas lições escolares. Porque o mapa mostra, com riqueza de detalhes, as Américas e a Austrália. Ou seja, todo o “Novo Mundo”, supostamente descoberto por exploradores europeus a partir de 1492, na aventura de conquista que ficou conhecida como Era dos Descobrimentos.
Liu Gang pagou US$ 500, uma pechincha no mercado de antiguidades chinesas, e levou o mapa para casa. Durante os 3 anos seguintes, ficou se perguntando se o documento não seria uma farsa. Até que um dia leu o livro 1421 – O Ano em Que a China Descobriu o Mundo, do ex-oficial da Marinha britânica e historiador diletante Gavin Menzies (escrita em 2002, a obra acaba de ser lançada no Brasil). Embora nunca tivesse ouvido falar do mapa de Liu Gang, Menzies defendia uma tese que lhe caía como uma luva. A partir de uma pesquisa feita ao longo de 14 anos em diversas partes do mundo, o ex-marinheiro concluiu que aquilo que os historiadores ocidentais dizem há centenas de anos está errado: foram os chineses os primeiros exploradores a alcançar o Novo Mundo – e isso quando Cristóvão Colombo nem era nascido.
Revelado à comunidade científica em janeiro de 2006, o mapa do honorável Liu Gang incendiou manchetes e controvérsias ao redor do mundo. Para alguns, não passa de farsa; para outros, é mais uma entre muitas chibatadas no velho mito dos descobrimentos europeus. Hoje, evidências arqueológicas comprovam que pelo menos uma parte do Novo Mundo já tinha sido descoberta pelo menos 500 anos antes de Colombo – e isso sem falar nas lendas e documentos que falam de viagens transatlânticas na Antiguidade. Mas antes de rebobinar a fita da história e analisar cada uma das possíveis descobertas, vamos recapitular a história oficial, contada pelos cristãos europeus, brancos e “civilizados”, que desbravaram e colonizaram o globo entre a metade do século 15 e fins do século 18.
A Idade dos Descobrimentos
Até os últimos anos da Idade Média (que acabou em 1453 com a queda de Constantinopla, lembra-se?), a geografia era quase um gênero de literatura fantástica. Em sua maioria, os mapas feitos na Europa repetiam as idéias dos antigos gregos e romanos: o mundo era formado por apenas 3 partes – a Europa, a Ásia e a África – e dois mares navegáveis, o Índico e o Mediterrâneo. Esse era o Velho Mundo, que, bem ou mal, estivera conectado durante 5 mil anos anteriores de história. Fora disso, o que havia era trevas, superstição e dragões assassinos.
A invenção que abriu os mares aos exploradores europeus surgiu por volta de 1430: a caravela, obra-prima de marujos e engenheiros portugueses. Até então, a maior parte das navegações ocorria perto do litoral ou em águas conhecidas e mapeadas de antemão. Singrar oceanos e “águas nunca dantes navegadas” era perigoso demais: os barcos só flutuavam com segurança se estivessem a favor dos ventos e uma súbita mudança na circulação do ar podia causar naufrágios e fazer até o comandante mais exímio perder o rumo. A caravela era projetada exatamente para superar esse obstáculo. Tinha um sistema que rotacionava as velas de acordo com a direção do vento e assim permitia a navegação mesmo quando o ar soprasse na direção contrária.
A primeira grande descoberta da era das caravelas não foi um continente, mas uma apavorante península de rochas, castigada por tempestades e ondas gigantes. Era o cabo das Tormentas, depois rebatizado de cabo da Boa Esperança – o último limite no sul da África, onde as águas do Atlântico e do Índico se encontram, que foi desbravado por Bartolomeu Dias em 1487. Estava aberto o caminho marítimo entre a Europa e a Ásia, que logo se tornou uma movimentada rota comercial e deu origem ao primeiro processo de globalização em larga escala.
Pouco a pouco, as sombras nos mapas antigos foram clareadas. Em 1492, o genovês Cristóvão Colombo, a serviço da Espanha, atravessou o Atlântico. Sua missão era fazer a volta ao mundo pelo oeste e chegar à Ásia – já que a rota que contornava a África pelo sul era dominada pelos portugueses. Em vez disso, Colombo deu com suas caravelas nas ilhas do Caribe – na época, ninguém falou em descobrimento, já que o próprio Colombo acreditava ter chegado a algum arquipélago no leste asiático. E, em 1500, como você já ouviu milhares de vezes, Pedro Álvares Cabral deparou “por acaso” com o monte Pascoal, no litoral da Bahia – mero “desvio” no meio de uma viagem cujo destino oficial também eram os reinos opulentos do Extremo Oriente. A Idade dos Descobrimentos continuaria por mais dois séculos: o último grande explorador dos mares foi o britânico James Cook, que descobriu oficialmente a Austrália em 1771.
Isso é o que todos aprendemos na escola – mas pesquisas modernas, muitas delas baseadas em documentos bem antigos, mostram que todas as “descobertas” aí em cima são verdades relativas. Começando pelo “terra à vista” de 22 de abril de 1500.
Quem descobriu o Brasil?
Verdade seja dita: nosso ilustre e oficial descobridor, o fidalgo Pedro Álvares Cabral, era uma figura, assim, meio sem graça. Até 1500, nunca tinha pilotado um navio (os detalhes técnicos da viagem ficaram por conta de seus subordinados). Também há indícios de que não fosse um sujeito dos mais brilhantes. E hoje, quase ninguém acredita que ele tenha sido o primeiro navegador a chegar ao Brasil – e muito menos que ele o tenha feito “por acaso”.
O maior concorrente de Cabral ao título de descobridor foi um personagem digno de romances de aventura: o também português Duarte Pacheco Pereira. Ele ficou famoso exercendo uma das profissões mais requisitadas da época, a de cosmógrafo, mistura de geógrafo, matemático e marujo – desenvolveu cálculos que lhe permitiam localizar melhor do que ninguém a posição de longitude da embarcação. Era também um guerreiro famoso pela valentia no campo de batalha, como na ocasião em que derrotou exércitos na Índia comandando um punhado de guerreiros. Celebridade lusa, foi transformado em personagem de Os Lusíadas. Em 1498, o rei dom Manuel encarregou esse marinheiro multifunção de uma missão ultraconfidencial: descobrir se as terras encontradas por Colombo do outro lado do Atlântico faziam mesmo parte da Ásia. Pacheco deveria navegar até a linha de Tordesilhas, fronteira diplomática traçada por portugueses e espanhóis para dividir as terras recém-descobertas – ou ainda por descobrir.
Durante séculos, ninguém soube por onde andou Pacheco. Até que, em 1882, foi publicado em Portugal o Esmeraldo de Situ Orbis, ou “Tratado dos Novos Lugares da Terra”, obra assinada pelo próprio Pacheco mas desconhecida até então. “No ano de Nosso Senhor de 1498, Vossa Alteza nos mandou descobrir a parte ocidental, passando a grandeza do Mar Oceano, onde é achada e navegada uma vasta terra firme, grandemente povoada”, relata o navegante, que diz ter avistado nas praias desconhecidas uma multidão de “gente parda, mas quase branca”. “Mar Oceano” era outro nome para o Atlântico e a descrição dos nativos bate com a tribo dos aruaques, que tinham pele parda, mas bem mais clara que a de povos considerados “escuros” pelos europeus na época, como africanos, indianos – mesmo entre os indígenas brasileiros, os aruaques são considerados os que têm a pele mais próxima do branco. Pesquisas arqueológicas feitas nos anos 90 revelaram que a tribo era muito numerosa no século 15, o que explicaria também a menção a “terras grandemente povoadas”. Outro detalhe: os aruaques povoavam o litoral do Maranhão, por onde passava o traço invisível do Tratado de Tordesilhas.
A tese de que Pacheco esteve no Brasil em 1498 foi defendida pelo português Jorge Couto em A Construção do Brasil, de 1995 – na época, muitos historiadores reclamaram que a teoria estava baseada em um punhado de frases ambíguas. Ainda hoje, não há 100% de certeza quanto às andanças. “É plausível que Pacheco tenha estado no Brasil antes de Cabral e que a Coroa portuguesa tenha preferido manter o achado em segredo”, diz Leandro Karnal, especialista em história da América Latina da USP. “Os reis de Portugal mantinham em grande sigilo as navegações. Divulgar rotas marítimas era crime punido com pena de morte.”
Outro aventureiro famoso que pode ter lançado âncoras em nossas praias antes de Cabral foi o geógrafo e marujo italiano Américo Vespúcio, que entrou para a história ao desmentir as teorias de seu conterrâneo Colombo. Em 1504, Vespúcio publicou um texto chamado Novus Mundus, garantindo que as terras no oeste do Atlântico não eram parte da Ásia, mas um continente completamente desconhecido – “um novo mundo”, como diz o título em latim. Você já deve ter notado que a região foi batizada como América – e não, digamos, Colômbia – em homenagem a Vespúcio, o verdadeiro descobridor do Novo Mundo para seus contemporâneos. Já o cabeça-dura Colombo jurou até o fim da vida que havia chegado à China ou à Índia – a teimosia arruinou sua carreira e ele morreu pobre, esquecido e amargurado.
O que pouca gente sabe é que o rival de Colombo pode ter desembarcado no Brasil em 1499. Pelo menos, é o que Vespúcio dá a entender em uma de suas cartas – cujo conteúdo é questionado por alguns pesquisadores. Em 27 de junho daquele ano, ele diz ter avistado “uma terra cheia de grandíssimos rios”, a 5 graus de longitude sul – ou seja, o litoral do Maranhão. Outra viagem, a dos espanhóis Yanez Pinzón e Diego de Lepe, tem evidências mais sólidas – os dois marujos foram condecorados pelo rei da Espanha por terem “descoberto o Brasil” em janeiro de 1500, dois meses antes de Cabral – empate técnico, portanto. Em abril de 1500, o rei português teria simplesmente decidido tomar posse oficial das terras que muitos já sabiam existir. Um “acaso” bem planejado, portanto.
Todas essas hipóteses datam a descoberta do Brasil em algum momento no fim do século 15. Para o britânico Gavin Menzies, porém, a costa do país havia sido mapeada 80 anos antes. Vamos rebobinar a fita de 1500 para 1421, quando a China dominava os mares.
A Armada do Dragão
No início do século 15, a China era, de longe, a nação mais avançada da Terra: seus exércitos já empunhavam armas de fogo quando ingleses, portugueses e espanhóis ainda se espetavam com lanças e flechas. E o maior contraste entre o avanço da China e o atraso europeu estava na engenharia naval. Por volta de 1400, Zhong Di, o imperador que levou a dinastia Ming ao seu auge econômico, construiu uma frota de 300 ba chuan ou “navios de tesouro” – monstros náuticos com 150 metros de comprimento. Relatos da época dizem que, ao serem lançados ao mar, os navios colossais pareciam uma cidade flutuante. Eram, sem dúvida, as maiores e mais mortíferas embarcações já feitas pelo homem até então (leia mais sobre os ba chuan no quadro da página 66).
A armada fantástica fez várias viagens pelo oceano Índico, entre 1400 e 1430. A mais famosa partiu de Nanquim no dia 3 de março de 1421, sob o comando do bravo almirante Zheng He, chinês de família muçulmana e eunuco (todos os servos pessoais do imperador eram castrados, para evitar possíveis puladas na cerca do harém imperial…). Os relatos oficiais dizem que o capitão eunuco navegou pela costa da África e deu meia volta nas proximidades da Tanzânia, no leste do continente. Isso não é pouco: o percurso, de 16 mil quilômetros, é praticamente o dobro da distância entre Brasil e Portugal. Mas, desde 2002, quando lançou 1421, Gavin Menzies vem divulgando a teoria de que a armada de Zheng He seguiu adiante e contornou o cabo da Boa Esperança, 60 anos antes que Bartolomeu Dias fizesse o mesmo no sentido contrário. Dali, os chineses teriam se lançado à descoberta do Novo Mundo.
Contornar o cabo não seria um desafio tão grande para o ba chuan. A travessia ali é muito mais uma questão de força do que de jeito – não basta ser um grande navegador, mas é preciso ter uma embarcação capaz de suportar a força dos ventos e das ondas nas “tormentas”. A partir dali, a jornada seria facilitada graças à corrente de Bengala, que sobe pela costa da África, começando no cabo da Boa Esperança. “O navegante que chegasse ao cabo, vindo do leste, seria levado pela corrente para o norte por 4 800 quilômetros” escreve Menzies. Nessa altura, o navio pegaria carona em outra corrente marítima – a Sul-Equatorial, que faz uma curva para o oeste e desemboca exatamente no norte do Brasil. Menzies calcula que a armada chinesa tenha passado pelo litoral do Maranhão ou de Pernambuco em setembro de 1421. Não há como saber se houve desembarque, mas Menzies aposta que os chineses toparam com os índios brasileiros e inclusive ficaram bem íntimos das índias: pesquisas feitas por geneticistas americanos no ano 2000 encontraram semelhannças entre genes chineses e de tribos do Mato Grosso do Sul. Além disso, sabe-se que tribos da bacia Amazônica sofrem de uma doença chamada chimbere, que causa marcas concêntricas na pele, parecidas com tatuagens. A doença só ataca pessoas com predisposição genética, é passada de pai para filho, e o único lugar onde a situação se repete é o leste da Ásia – lá, a enfermidade se chama tokelau. “O chimbere sul-americano e o tokelau asiático são provas de que houve contato entre as regiões antes da chegada dos europeus”, escreveu o geógrafo francês Max Sorre em A Luta Contra o Meio, ensaio científico publicado em 1967 – bem antes de Menzies começar suas pesquisas.
Depois de espalhar seus genes pelo Brasil, os chineses teriam entrado no Pacífico pelo sul da Argentina. Dali, foi só fazer a volta ao mundo e correr para o abraço. De lambuja, bem no finzinho da viagem, Menzies acredita que eles desembarcaram na Austrália. Em 1965, exploradores desenterraram um enorme leme de navio, com cerca de 12 metros da altura, no estado australiano de Nova Gales do Sul. “Somente um ba chuan teria um leme tão grande”, escreve Menzies, que também aposta no encontro entre os descobridores chineses e os nativos da Oceania. Tanto os aborígenes da Austrália quanto os maoris, povo que vive na Nova Zelândia, contam lendas sobre um grupo de navegantes, “vestidos em longas túnicas”, que teria desembarcado em suas terras antes dos europeus (por sinal, há relatos chineses sugerindo que a Austrália já tinha sido descoberta até antes de 1421, como você pode ver no quadro da página 62).
Mas, se tudo isso aconteceu, então por que Brasil e Austrália não falam mandarim e por que não comemos nossos pratos com a ajuda de pauzinhos? A resposta está no amargo r egresso de Zheng He à China em 1423. Zhong Di, patrono das navegações, fora derrubado por uma rebelião – e o novo soberano decidiu que conquistar o mundo estava onerando os cofres imperiais. A marinha chinesa foi praticamente desativada e a maior parte dos documentos relativos à viagem de Zheng He foram queimados pelos censores do novo imperador, que queria desestimular extravagâncias futuras apagando os vestígios das passadas. A China desistiu de conhecer o mundo e decidiu se voltar para dentro, transformando a figura de Zheng He num tabu nacional, representante das tendências expansionistas e contrárias à idéia confuciana de que a China tinha de ficar fechada à influência dos “bárbaros”. Abandonadas ao léu, as colônias chinesas no Novo Mundo definharam, e sua memória se perdeu. Pelo menos até agora…
Os navegantes de Odin
A teoria de Menzies não é muito popular entre historiadores profissionais – embora nela tudo se encaixe, as provas concretas para apoiá-la são poucas, frágeis e todas fortemente contestadas por historiadores. Mas, se for verdadeira, preencheria muitas lacunas – entre elas, documentos inexplicáveis como o Planisfério de Fra Mauro, desenhado por um monge italiano em 1459 e que repousa na Biblioteca Nazionale Marciana, em Veneza. Nele, aparece a localização exata do cabo da Boa Esperança mais de 30 anos antes da descoberta oficial de Bartolomeu Dias. Menzies aposta que o monge cartógrafo copiou uma carta náutica desenhada pela armada de Zheng He no início do século 15.
Entre tantas dúvidas, há alguns consensos. Por exemplo: a primeira descoberta da América aconteceu no século 9, séculos antes da dinastia Ming subir ao poder na China. Era a época em que os vikings, antigos habitantes da Escandinávia, exploravam o litoral da Europa e o norte do Atlântico. A Saga dos Groenlandeses, épico viking escrito por volta do século 13, fala das navegações de Leif Eriksson, que teria partido da Groenlândia por volta de 970 e fundado uma colônia no noroeste do Atlântico – a Vinlândia. Conta a saga que o entreposto foi destruído por ataques dos skraelingar – povo misterioso que “disparava flechas, vestia jaquetas de couro e remava botes cobertos de peles”.
A lenda da Vinlândia era bem conhecida na Europa na época dos descobrimentos, mas durante séculos acreditou-se que o relato era pura mitologia – até que, em 1960, um grupo de arqueólogos desenterrou uma fazenda tipicamente viking na província de Newfoundland, no litoral do Canadá. As casas estiveram soterradas por centenas de anos, mas um rigoroso trabalho de recuperação arrancou da terra uma quantidade assombrosa de vestígios. “A estrutura de madeira das construções, com pilastras retangulares, é idêntica à de sítios arqueológicos na Islândia e na Groenlândia – que eram colônias vikings”, explica o historiador Johnni Langer, que há anos pesquisa as viagens vikings às Américas. “Também foram encontrados vários objetos de metalurgia, como pregos, alfinetes e fusos de tecelagem. E os indígenas que habitavam a região não trabalhavam o ferro.” A datação do carbono 14 (teste químico que determina a idade de peças arqueológicas) revelou que tudo isso foi produzido e construído por volta do ano 1000 – ou seja, a data bate com a história da Saga. E os tais skraelingar são a cara dos indígenas beothuk, que viviam na região nos séculos 10 e 11.
Uma questão permanece em aberto: será que os vikings exploraram o interior do continente ou ficaram só na pequena fazenda no litoral? “Hoje, não resta a menor sombra de dúvida de que os vikings navegaram à América no século 10 e ficaram alguns anos por lá. É uma questão de bom senso: seria estranho se não tivessem explorado terra adentro. Mas, por enquanto, faltam provas”, diz Langer.
Fenícios e celtas
As primeiras navegações confirmadas à América foram mesmo as dos vikings – mas séculos antes de Leif içar suas velas, já circulavam no Velho Mundo lendas sobre grandes terras desconhecidas do outro lado do Atlântico. Contam historiadores antigos que o primeiro povo a procurar esse continente remoto foram os fenícios – os maiores navegadores da Antiguidade, antepassados dos libaneses. Na obra Bibliotheca Historica, escrita no século 1 a.C., o romano Diodorus Siculus conta que o capitão fenício Himilcon singrou o “Oceano Ocidental” por volta de 500 a.C. e chegou a uma “grande terra, fértil e de clima delicioso”. A descoberta foi mantida em segredo para evitar que outros povos explorassem o lugar – revelar sua localização era crime punido com a morte.
No início da Idade Média, começaram a circular rumores de que o misterioso país do ocidente era uma espécie de paraíso terreno, imagem do Éden descrito na Bíblia. Entre os celtas da Irlanda, a terra encantada ganhou o nome de (adivinhem) Hy Brazil. A palavra céltica Brazil tem origens incertas, mas alguns acreditam que derive do termo fenício barzil, que significava “ferro” – sabe-se que fenícios e celtas comerciaram na Antiguidade e podem ter trocado vocábulos além de mercadorias. Outros tradutores acham que Brazil vem do celta bress, raiz da palavra inglesa bless – abençoar. A história oficial, você sabe, conta que nosso país foi batizado em homenagem ao “pau-brasil”, a madeira “da cor da brasa” que abundava no litoral do Nordeste e cuja casca dava uma tintura vermelha, usada para tingir as vestes mais luxuosas de Lisboa. Essa versão esquece, claro, que a palavra Brasil é mais antiga que existência da própria língua portuguesa, cujos documentos mais antigos só surgiriam no século 9.
Um descobridor alternativo das Américas pode ter sido um religioso celta em busca do paraíso terrestre: A Navegação de São Brandão, obra escrita na Irlanda por volta do ano 900, conta a história de um monge irlandês que em 556 teria partido pelas águas do Atlântico em um currach – pequeno barco de madeira, coberto de peles e usado por pescadores. Reza a lenda que são Brandão, com uma pequena tripulação de monges-marinheiros, encontrou a fabulosa terra de Hy Brazil, “cheia de bosques e grandes rios recheados de peixes”, e voltou à Irlanda para contar a história.
Nenhuma evidência arqueológica confirma que fenícios ou celtas tenham estado no Novo Mundo – mas a chance, segundo alguns pesquisadores, não é de desprezar. “Mesmo na falta de provas definitivas, é ingênuo negar a possibilidade de que povos antigos tenham navegado à América”, diz Luiz Galdino, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, que pesquisa as descobertas alternativas do Novo Mundo há mais de 30 anos. Galdino aponta para a corrente Sul-Equatorial (a mesma que pode ter trazido os chineses ao Brasil) como o caminho mais provável para exploradores antigos. “Os fenícios tinham navios capazes de carregar mais mantimentos que as caravelas portuguesas. Sabemos que eles navegaram pela costa da África até o século 4 a.C. – e, se um de seus barcos tivesse entrado por acaso na corrente Sul-Equatorial, iria diretamente para as praias de Pernambuco”, diz Galdino, que planeja lançar um livro sobre “as descobertas do Brasil” em 2008. “O mesmo caminho pode ter sido seguido por celtas, romanos, árabes. O Brasil e as Américas foram descobertos várias vezes ao longo dos séculos.”
Novo Mundo ou fim do mundo?
“E Deus quis que o Novo Mundo fosse descoberto pelos reis cristãos e seus vassalos, e que eles aceitassem alegremente o trabalho de converter e conquistar os idólatras. Bendito seja o Senhor!” Assim o espanhol Gonçalo Fernandes de Oviedo descreve o espírito de sua época, na obra Historia General de las Indias e de las Tierras del Mar Oceano, escrita em 1535. Tempo em que os espanhóis invadiam e dominavam as terras descobertas por Colombo, “para maior Glória de Deus”. E foram os próprios conquistadores que começaram a transformar sua aventura em história: Oviedo, um fidalgo que veio às Américas para colonizar, foi o primeiro “cronista de Indias” da coroa espanhola – em outras palavras, historiador oficial encarregado de justificar e glorificar a conquista. A “descoberta” foi descrita como uma vontade divina. Os índios eram infiéis sem civilização, como os negros africanos: deviam se converter ou virar escravos.
Cronistas da época também esculpiram a versão de que nenhum outro povo “civilizado” alcançara o Novo Mundo antes dos ibéricos. Não à toa: o dono, claro, é quem chegou primeiro e a ele cabe o direito de ficar rico com isso. O mesmo raciocínio foi adotado uns dois séculos depois pelos colonizadores ingleses da Austrália: embora a ilha já tivesse sido avistada pelos portugueses em 1522, pelos holandeses em 1614 e talvez pelos chineses bem antes disso, o “descobridor oficial” foi o britânico James Cook, que tomou posse da terra em nome da Coroa inglesa. (De todos os possíveis descobridores da Oceania, só os chineses vestiam “longas túnicas”, como os misteriosos visitantes das lendas aborígenes e maoris).
No Brasil, a transformação do apagado Pedro Álvares Cabral em herói só ocorreu no século 19. Até então, livros de história mal falavam nele. Em Portugal, também era pouco lembrado: a casa que pertencera a sua família, na cidade de Santarém, ficou abandonada por séculos e chegou a virar um prostíbulo, até ser restaurada em meados do século 20. “Depois da Proclamação da República, em 1889, o país buscava uma identidade nacional, precisava de um herói em suas origens”, diz Leandro Karnal, da USP. Colombo também permaneceu nas sombras por séculos e só foi reabilitado em 1866, quando americanos de origem italiana inventaram o Columbus Day, ou Dia de Colombo. O objetivo era sublinhar o papel da Itália na colonização da América – truque ideológico numa época em que os imigrantes italianos eram desprezados e até linchados pela elite anglo-saxã.
Com o tempo, a celebração da “descoberta” foi exportada para a América Central e do Sul e até hoje faz parte de muitos calendários nacionais. É um bom exemplo de história contada pelos vencedores: europeus, brancos e cristãos. Se nossos livros tivessem sido escritos pelos perdedores, talvez todos esses relatos não fossem contados como épicos, mas em tom apocalíptico. No México e no Peru, sacerdotes indígenas decretavam que seus deuses nativos estavam mortos e anunciavam o fim da civilização. O que os “descobertos” pensavam sobre a tal Idade dos Descobrimentos pode ser resumido em um verso, escrito por um poeta indígena do México na aurora do Novo Mundo: “Oh meus filhos, em que tempos detestáveis vocês foram nascer!”
Quem descobriu a América?
Você aprendeu: em 1492, Colombo foi o primeiro navegante a chegar à América.
As outras versões: a grande armada da China imperial teria descoberto a América em 1421. Mas arqueólogos afirmam que vikings aportaram no Canadá por volta do ano 1000. E há relatos de que fenícios descobriram uma “grande terra no Ocidente” por volta de 500 a.C.
Quem dobrou o cabo da Boa Esperança
Você aprendeu: o navegador português Bartolomeu Dias foi o primeiro navegante a contornar o promotório no sul da África, segundo os relatos oficiais, em 1487.
As outras versões: de novo, a taça seria dos chineses. Gavin Menzies diz que um ba chuan superou as fortes ondas e ventos do cabo cerca de 60 anos antes de Dias realizar a façanha.
Quem descobriu o Brasil?
Você aprendeu: um mero acaso a caminho das Índias. Assim Cabral descobriu o Brasil, em 1500.
As outras versões: em missão secreta Duarte Pacheco Pereira teria chegado em 1498. Outros ibéricos a aportar aqui antes de Cabral podem ter sido Américo Vespúcio, Yanez Pinzón e Diego de Lepe. E há quem defenda que chineses não só estiveram aqui, como fizeram filhos com as índias.
Quem descobriu a Austrália?
Você aprendeu: em 1771, o britânico James Cook mapeou a Oceania, então último continente habitado e desconhecido.
As outras versões: o português Cristóvão de Mendonça pode ter passado pela Austrália em 1522 – mas a primeira “descoberta” confirmada foi a do holandês Willem Janszoon, em 1605. Menzies garante que os chineses descobriram tudo em 1421.
Quem contornou o estreito de Magalhães?
Você aprendeu: o nome já entrega a história – a passagem entre o Atlântico e o Pacífico foi encontrada em 1520 pelo português Fernão de Magalhães.
As outras versões: em 1421, a armada chinesa teria navegado pela costa da América do Sul até a Patagônia e dali seguiu rumo ao Pacífico.
Quem fez a primeira volta ao mundo?
Você aprendeu: após descobrir o estreito que leva seu nome, Magalhães navegou o Pacífico e tornou-se o primeiro europeu a dar a volta no globo. Morreu nas Filipinas, em combates com indígenas.
As outras versões: o circundamento completo da Terra já teria sido feita sob o comando do navegador Zheng He 100 anos antes da expedição de Magalhães.
Os primeiros moradores
Discutir se foram chineses, vikings ou espanhóis os primeiros a chegar ao Novo Mundo guarda um certo equívoco histórico. Afinal de contas, as Américas já tinham sido descobertas havia pelo menos 15 mil anos – e a Oceania, há cerca de 46 mil! Os pioneiros vieram da Ásia, quando os ancestrais dos portugueses ainda viviam na Pré-História.
Os primeiros australianos, ancestrais do povo que os colonizadores ingleses batizaram de aborígenes, eram caçadores e pescadores de pele escura, originais do Sudeste Asiático. Chegaram à Oceania caminhando – naquela época, havia ligações por terra entre as ilhas do Pacífico e o litoral da Ásia. O que pouca gente sabe é que os primeiros habitantes da América não foram os ancestrais dos nossos índios de pele avermelhada e olhos puxados, mas parentes dos australianos antigos. Em 1999, o arqueólogo brasileiro Walter Neves examinou um crânio feminino encontrado em Minas Gerais e descobriu feições aborígenes (ou “australo-melanésias”, para usar o termo científico). O fóssil foi batizado de Luzia e data de 12 mil anos atrás – a primeira brasileira de que se tem notícia. Os tataravôs de Luzia devem ter chegado à América vindos do Sudeste Asiático.
Já os ancestrais dos nossos tupiniquins, dos astecas mexicanos e dos apaches dos EUA só começaram a chegar ao Novo Mundo há 12 mil anos. Vieram da Sibéria, atravessando o estreito de Bering e se espalharam para o sul. Como o interior da América do Norte estava congelado na época, os prototupis teriam navegado até a América Central e, a partir daí, desbravado o interior, chegando até os confins da Terra do Fogo, no extremo sul do continente. Segundo Walter Neves, devem ter entrado em conflito com os australo-melanésios, na disputa por caça e território. “Não se sabe ao certo quando o povo de Luzia foi extinto, mas é possível que alguns poucos ainda existissem na época do descobrimento português.”