Deus salve a Irlanda
Dois políticos irlandeses, um católico e um protestante, ganharam o Prêmio Nobel da Paz de 1998. Eles negociaram o acordo que deu à Irlanda do Norte uma chance de desarmar-se. Entenda o que está em disputa nessa guerra secular.
Fernando Valeika de Barros, de Belfast
Atentados terroristas não são novidade na província inglesa da
Irlanda do Norte, ou Ulster, como é conhecida por lá. Mas os ataques protestantes a igrejas e a casas de católicos, em Belfast, em julho, com a morte de três crianças, e a bomba católica que fez 28 vítimas e 220 feridos em Omagh, em agosto, foram especialmente amargos. Eles mostraram que não será fácil levar adiante o tratado de paz assinado em 10 de abril, que a maioria esmagadora da população apóia. O acordo deu o Nobel da Paz a John Hume, líder do maior partido católico, e David Trimble, chefe do maior partido protestante.
Aprovado num plebiscito, em maio, com 71% dos votos, o pacto criou o embrião de um futuro governo autônomo – um Parlamento próprio, com 108 representantes, eleitos em julho. Antes, o Ulster só elegia nove deputados ao Parlamento britânico. Na eleição, os partidos favoráveis à paz obtiveram 81% das cadeiras.
Os deputados vão fazer todas as leis, menos aquelas sobre impostos e segurança, que continuarão sendo inglesas. Ao mesmo tempo, vão aprofundar as relações com a República da Irlanda, que tem total independência da Inglaterra, dividindo com ela a administração do transporte, da agricultura e do turismo. Embora semi-autônomo, o Ulster continuará parte do Reino Unido, a não ser que a população opte pela unificação com a República da Irlanda, no futuro. A cada cinco anos haverá eleições.
Mais difícil vai ser manter a paz. Os ânimos estão à flor da pele há três décadas, quando os católicos se rebelaram contra séculos de discriminação. No século XVII os católicos não tinham direito a voto. Até o começo dos anos 70, um protestante que fosse empresário podia votar duas vezes. Hoje, eles ainda controlam a maioria das empresas. E raramente empregam católicos. A Comissão de Emprego do Ulster registra 250 reclamações de discriminação contra católicos por mês. Com tanto ódio, o novo Parlamento terá muito trabalho.
400 anos de luta
Ocupada pelos celtas desde 300 a.C., cristianizada no século V e invadida pelos vikings em 795, a Irlanda virou colônia inglesa em 1171. Foi no século XVII que perdeu de vez a tranqüilidade.
1609 – Imigração maciça
A ilha, localizada ao lado da Inglaterra, manteve-se quase que totalmente católica até 1609, quando o rei inglês Jaime I autorizou a colonização em massa por protestantes ingleses e escoceses que, até então, dominavam só 10% das propriedades locais.
1798 – Reação violenta
Ao longo de 200 anos, os católicos foram perdendo terras. Inconformados, revoltaram-se em 1778, criaram brigadas e atacaram os protestantes. A rebelião foi sufocada e a colonização inglesa acelerada. No final do século XVIII, a maioria católica controlava apenas 5% da ilha.
1920 – Novo país
Depois que os conflitos chegaram à beira da guerra, a Inglaterra afinal aceitou dar uma independência relativa à ilha. Os 26 departamentos do sul, onde havia maioria católica, formaram o Estado Livre da Irlanda, que virou República da Irlanda em 1949. Os seis condados do norte, onde predominava a população protestante, continuaram como província inglesa. Essa região é hoje conhecida como Irlanda do Norte ou Ulster.
1998 – Fronteira religiosa
Em Belfast, capital da Irlanda do Norte, os conflitos incessantes levaram, em 1969, à construção de um muro de 3,5 quilômetros de comprimento e 3,5 metros de altura (veja o mapa abaixo) separando o bairro católico Falls do protestante Shankill. A cicatriz da violência permanece até hoje.
1998 – Mistura explosiva
No Ulster, a briga continua porque, embora minoritária, a população católica (38,4%) é quase tão grande quanto a protestante (42,8%) e não aceita fazer parte da Inglaterra. Além disso, há fortes queixas de discriminação anticatólica na região. Resultado: na década de 60 surgiu a luta armada entre as duas facções que, até hoje, fez 3 280 mortos e 37 500 feridos. É muito para uma população de 1,6 milhão de habitantes.
Quem pode perturbar a trégua
Veja como os principais grupos armados irlandeses vêem o processo de paz.
Católicos
Ira Provisório
Tem 600 membros bem armados e surgiu em 1969, como dissidência do Exército Republicano Irlandês, o famoso IRA, criado em 1866. Do racha nasceu o IRA Oficial, que foi abandonando os atentados e passou a negociar por meio do grupo político Sinn Féin.
Exército Nacional de Libertação da Irlanda
Braço armado do Partido Socialista Republicano Irlandês, criado em 1974 depois de novo racha no Sinn Féin. Tem quarenta militantes e só aceita a paz se o Ulster for anexado imediatamente à República da Irlanda.
Ira Continuidade e Ira Verdadeiro
Os dois filhotes mais novos do IRA Oficial surgiram no começo dos anos 80. São contra a paz e a favor da unificação com a Irlanda. O primeiro tem cinqüenta membros e o segundo, responsável pelo atentado de Omagh, 150.
Protestantes
Força Voluntária Leal
Tem cerca de 300 membros e é contra qualquer acordo com a República da Irlanda. Dedica-se à extorsão e ao assassinato de católicos.
Força Voluntária do Ulster
Com 400 integrantes, exige que o Ulster continue parte da Inglaterra. Esteve por trás dos atentados que mataram três crianças e incendiaram dez igrejas em julho.
União Democrática do Ulster
Seus 200 militantes vêem com antipatia as negociações de paz. Já realizaram ataques contra católicos mas, hoje, entre os radicais protestantes, são os mais moderados.