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Em Roma, escritores-fantasma já escreviam discursos sob encomenda para políticos

A internet veio abaixo ao descobrir que Temer redigiu a nota de desculpas de Bolsonaro. Mas a história dos ghost writers deixa claro: difícil é encontrar um poderoso que seja autor das próprias falas.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 10 set 2021, 18h37 - Publicado em 10 set 2021, 14h29

Os mercenários do mercado editorial são os ghost writers: escritores profissionais pagos para escrever trabalhos que serão assinados por outras pessoas.

Esses redatores-fantasma são mestres do ofício: enquanto autores comuns se esforçam para forjar um estilo cativante e facilmente reconhecível, ghost writers são camaleões, capazes de emular diferentes vozes conforme as exigências da encomenda. Por exemplo: Tom Clancy, que escrevia best sellers com histórias de espionagem da Guerra Fria, ficou tão famoso que usou assombrações editoriais para multiplicar sua produção nos bastidores.

O tema veio à tona nesta quinta-feira (9), quando Bolsonaro pediu desculpas pela balbúrdia no Dia da Independência em uma nota oficial. A internet teve um ligeiro surto ao saber que o texto teve uma mãozinha – ou melhor, um braço inteiro – de Michel Temer. “Ele colaborou com algumas coisas na nota, eu concordei e publicamos”, disse o atual presidente à imprensa. Seu antecessor não foi um camaleão muito eficaz: a redação é exatamente a que se espera de um professor de Direito. 

Trata-se de uma arte antiga – e comum. Até Hillary Clinton contou com um ghost writer para redigir um de seus livros de memórias, Living History (2003). Ele faturou US$ 500 mil pela colaboração, de acordo com o publicado pelo New York Times dois anos antes, em 2001.

Na Grécia Antiga, não havia a figura do advogado. Quando um cidadão era julgado, era sua responsabilidade se defender. Os que não falavam bem eram prudentes em contratar os serviços de um logógrafo, nome que se dava ao ghost writer helênico. O acusado precisava decorar sua fala encomendada – era proibido consultar anotações. É graças à redação cuidadosa desses homens que sabemos como funcionava o judiciário de Atenas.

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Os romanos herdaram a prática. Quintiliano, um professor de retórica que escreveu um manual de redação no primeiro século depois de Cristo, revela que Cícero – um dos figurões mais lendários da faculdade de Letras – vendia seus serviços (por essa informação, agradeço à historiadora Sarah E. Bond da Universidade de Iowa, que conta tudo sobre ghost writers em seu blog):

“Há muito discursos compostos por oradores gregos e latinos para os outros pronunciarem, cujas palavras precisavam ser adaptadas para se adequar à posição e às características daqueles para quem eram escritos. Ou você acredita que Cícero pensava da mesma forma – ou assumia a mesma personalidade – quando escrevia para Gnaeus Pompeius e quando escrevia para Titus Ampius?”

Acelere a fita para tempos mais recentes e ainda é raro encontrar figurões públicos que seguram o rojão na hora de um pronunciamento. O casal Obama é uma rara exceção: ambos de fato foram responsáveis por suas autobiografias, até onde se sabe. Mas até eles precisavam de uma ajudinha de vez em quando. A roteirista de TV Nell Scovell, por exemplo, contribuiu por cinco anos com piadas para o jantar de correspondentes promovido pela Casa Branca.

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Ted Sorensen, assessor e confidente de Kennedy, também escreveu todas as falas célebres do presidente assassinado. Peggy Noonan, uma famosa colunista de centro-direita, é a responsável por tudo de memorável que o presidente Reagan escreveu na década de 1980, quando comandou os EUA na reta final da Guerra Fria. Ela planejou, por exemplo, o pronunciamento oficial após a tragédia com o ônibus espacial Challenger. 

Depois, no governo de George Bush pai, foi Noonan que cunhou trechos célebres como a thousand points of light (“mil pontos de luz”) e I want a kinder, gentler nation (“eu quero uma nação mais meiga, gentil”). Eles ficaram tão marcadas no imaginário dos EUA que Neil Young as satiriza quando esculacha Bush na faixa “Keep on Rockin’ in the Free World”, um cutucão claro na desigualdade e na Guerra do Golfo (1991):

“Nós temos mil pontos de luz
Para os homens sem teto
Temos uma mão mais meiga e gentil
Segurando a metralhadora.”

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No Brasil, o primeiro monarca também foi o primeiro usuário de escritores de aluguel. D. Pedro I confiava seus discursos a seu amigo e confidente Francisco Gomes da Silva, o Chalaça. E muitas falas famosas de Juscelino Kubitscheck foram obra de seu secretário de imprensa, Autran Dourado. 

Nenhum ghost writer brasileiro, porém, ficou tão famoso quanto Clarice Lispector. Por anos, o principal ganha-pão da autora foram os cadernos femininos em jornais de grande circulação. Em 1960, Clarice foi a verdadeira responsável pela coluna de conselhos amorosos do Diário da Noite, assinada pela atriz Ilka Soares. Na década de 1950, no Correio da Manhã, ela escrevia e diagramava uma página sobre moda, comentando modelitos e calçados sob o pseudônimo Tereza Quadros. 

Tenho no guarda-roupa alguns clássicos da literatura que me convenceram, ainda criança, de que eu queria ganhar a vida escrevendo. Eu sabia que eram todos adaptações infantis bastante simplificadas de obras muito mais complexas – a própria Abril, onde hoje trabalho, encomendava edições palatáveis de Moby DickViagens de Gulliver ou Robinson Crusoé para vender em fascículos nas bancas de jornal. Nunca havia me ocorrido procurar os verdadeiros responsáveis pelos textos.

Descobri que minhas Viagens de Gulliver, na verdade, foram recontadas por Clarice. Bem como A Ilha Misteriosa, de Julio Verne, que eu li até a lombada se desfazer. Os originais são incríveis, é claro. Mas até hoje, para mim, são como ouvir a música original depois que você já se acostumou com o cover: algo sempre vai soar meio fora do lugar. Minha escritora favorita, pelo jeito, sempre foi a Clarice. E eu nem sabia disso.

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