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FHC e seus livros: Os homens que estão na cabeça do presidente

FHC passou três décadas dedicado à pesquisa. O futuro presidente entra no Palácio do Planalto levando parte da história do pensamento político na bagagem.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 8 mar 2023, 11h11 - Publicado em 31 out 1994, 22h00

André Singer

Com certeza os homens que estão ajudando o presidente Fernando Henrique Cardoso a escolher o gabinete do próximo governo falam português e podem ser encontrados a qualquer hora do dia por um simples telefonema. Mas no fundo do seu cérebro, uma outra equipe, que só pode ser consultada por livro, também está lhe dando conselhos.

Imagine uma reunião entre os aristocratas franceses Montesquieu e Tocqueville, o socialista Karl Marx, o sociólogo alemão Max Weber, o político brasileiro Joaquim Nabuco e o historiador Sérgio Buarque de Holanda. Você acaba de visualizar o cérebro do novo presidente brasileiro.

Fernando Henrique Cardoso era professor catedrático (o que hoje corresponde a professor titular) de ciência política na Universidade de São Paulo aos 37 anos de idade. Nessa profissão, passou pelas universidades de Paris (França), Princeton (EUA), Cambridge (Inglaterra), entre outras, criou uma teoria importante (a Teoria da Dependência), fundou o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em 1969, e foi presidente da Associação Internacional de Sociologia. São três décadas de puro estudo das ciências sociais. Sua notoriedade é tanta que ele foi chamado de Príncipe da Sociologia brasileira. Agora, eleito presidente, com certeza o time de pensadores que carrega na cabeça terá peso nas suas decisões.

Responsável

Com os riscos calculados, ele assina embaixo

No discurso em que agradeceu o título de professor emérito da USP em 1991, Fernando Henrique disse, de passagem, que o seu temperamento é o de alguém que “sufoca o impulso pelo cálculo racional das conseqüências.’’ A frase poderia ser uma citação literal de Max Weber, o sociólogo que advogava a ética da responsabilidade. “Devemos responder pelas previsíveis conseqüências de nossos atos”, ensinava Weber aos jovens que desejavam ingressar na carreira política.

Observe que em cada ação de Fernando Henrique há um cálculo. Mesmo o risco é calculado. Não espere dele atitudes estouradas, a la Collor, ou emocionais, a la Itamar Franco. Nesse sentido, o futuro presidente se parece mais com Tancredo Neves.

O chamado à responsabilidade deverá ser uma constante também no relacionamento de Fernando Henrique com o Congresso. Isso não quer dizer falta de respeito à independência dos poderes — cuja necessidade Montesquieu tão bem mostrou —, mas uma visão sobre o grau de leviandade que existe entre os parlamentares brasileiros. Aliás, essa foi uma das razões que levaram FHC a apoiar o Parlamentarismo. Entre outras coisas, ele acreditava que, dando mais poder ao Congresso, este também acabaria sendo mais responsável.

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Racional

Estudar e planejar

FHC procura, sempre que pode, instilar racionalidade e planejamento na política brasileira. Ele aprendeu com Sérgio Buarque de Holanda que a cultura do país é avessa a qualquer tipo de ação friamente planejada. O Plano Real é uma boa mostra disso. O então ministro da Fazenda, Fernando Henrique, demorou um ano para lançá-lo. Colaboradores e opositores expressavam crescente ansiedade sobre o suposto imobilismo de FHC. Chegou a parecer que ele havia perdido a hora. Na verdade, acabou sendo o cálculo de tempo mais perfeito de que se tem notícia na política brasileira recente. Por isso, não tenha dúvidas de que o planejamento racional e sem impulsividade é uma característica importante do novo presidente.

Materialista

Predileção por desmascarar discursos rebuscados

Não é preciso estudar detalhadamente os textos de Marx para saber que o bolso é o órgão mais sensível do corpo humano. Sobretudo no caso de Fernando Henrique, tido por simpaticamente pão-duro até pelos amigos mais próximos.

Mas Karl Marx legou ao estilo FHC uma espécie de ironia permanente. Fernado Henrique, possuidor de um constante e algo corrosivo senso de humor, demonstra gosto em desmistificar discursos muito rebuscados. E ao fazer isso, desvenda os interesses concretos que estão por trás dos discursos. Nada mais marxista. Basta consultar o tom irônico dos textos do próprio Marx.

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Aristocrata popular

Homem de classe alta com um “pé na cozinha”

Fernando Henrique nunca esconde que é uma pessoa de classe. Alta. Nas conversas, entrevistas, aulas e conferências é quase inevitável, por exemplo, que ele faça uma referência a algo que aconteceu quando estava na França, nos Estados Unidos ou, quem sabe, em países mais exóticos como a Rússia. No entanto, os longos anos de trabalho a respeito da escravidão lhe deram uma visão abrangente de como a sociedade brasileira está dividida. Sua declaração, durante a campanha, de que tinha um “pé na cozinha”, embora com repercussões negativas junto a alguns setores como o movimento negro, traduz uma compreensão peculiar sobre como funciona o Brasil, como a tinha Nabuco, um aristocrata que se bateu pela abolição.

Também existe uma tendência aristocrática em Tocqueville, outro pensador que FHC aprecia. Tocqueville tinha horror à mediocrização que a nascente sociedade de massas fatalmente imporia aos indivíduos e aos riscos de “despotismo da maioria”. Apesar disso, Tocqueville compreendeu que a igualdade era inevitável e procurou assinalar os seus aspectos positivos.

Mesmo assim, o francês não escondia o tédio diante da democracia, que ele considerava de uma mesmice insuportável. A sociedade aristocrática era mais brilhante. Não por acaso, no Brasil, Joaquim Nabuco, ainda que abolicionista, preferia o Império à República.

Agora, FHC levará para o Palácio do Planalto o refinamento aristocrático de seus autores prediletos. Por isso, se você quiser entender o que se passará na política nos próximos quatro anos, prepare-se para uma fase de muita leitura.

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Para saber mais:

O boêmio erudito

(SUPER número 1, ano 7)

Como funciona a cabeça de um corrupto

(SUPER número 10, ano 7)

Festa de arromba

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(SUPER número 12, ano 9)

Montesquieu

Charles-Louis de Secondat, Barão de La Brède e de Montesquieu, nasceu a 18 de janeiro de 1689, no castelo de La Brède, perto de Bordeaux, França, e morreu a 10 de fevereiro de 1755, em Paris. Formou-se em Direito. Herdou o título de nobreza e uma propriedade rural produtora de vinho, que manteve pelo resto da vida. Foi presidente do Parlamento de Bordeaux e pertenceu à Academia Francesa. Estudou Biologia, Geologia e Física. Eclético, escreveu sobre a função das glândulas renais.


Idéias

Foi o grande teórico daquilo que veio a ser mais tarde a separação dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Sua preocupação principal era preservar a liberdade e evitar a tirania. Concluiu que a única maneira de conseguir isso era impedir que o poder ficasse concentrado em uma só pessoa, como ocorria nas monarquias absolutistas de seu tempo. Para Montesquieu, um poder teria que controlar o outro.

Obra-prima

O livro mais importante de Montesquieu é O Espírito das Leis, publicado no ano de 1748. Nele, Montesquieu quer descobrir nada menos que as leis que determinam o desenvolvimento da História. Apesar da linguagem setecentista, O Espírito das Leis é acessível ao leitor atual.

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Influência

Sem ele, não haveria a democracia moderna. Guiados por seus livros, os americanos escolheram, em 1787, uma forma de governo que dura até hoje. A base do sistema político dos Estados Unidos é que um poder contrabalança e fiscaliza o outro. A independência dos três poderes também vem sendo incluída nas constituições brasileiras desde a proclamação da República em 1889.

Tocqueville

Alexis Charles-Henri-Maurice Clérel de Tocqueville nasceu a 29 de julho de 1805, em Paris, França, e morreu a 16 de abril de 1859, em Cannes, França. Formou-se em Direito e atuou como juiz. Foi deputado em diversas legislaturas, chegando a ser vice-presidente da Assembléia Constituinte de 1849.

Idéias

Tocqueville era um aristocrata com inclinações democráticas. Ficou impressionado com a nascente democracia norte-americana quando visitou aquele país entre 1831 e 32. De volta à França, escreveu sobre o que havia visto: a radical democratização de uma sociedade, na qual todos, com exceção dos escravos, eram iguais perante a lei, independentemente da origem social.


Obra-prima

A principal obra de Tocqueville chama-se A Democracia na América, escrita quando o autor tinha apenas 28 anos. Apesar de ver com simpatia o igualitarismo americano, Tocqueville considerava a democracia tediosa e alertava para os perigos de ela se tornar uma tirania de massas (regime no qual as minorias não têm direitos assegurados).

Influência

Tocqueville foi redescoberto nos anos 30 deste século quando surgiram os regimes totalitários de direita e de esquerda, apoiados em movimentos de massa, provocando o temor de um “despotismo da maioria” em todos os países.

Karl Marx

Karl Heinrich Marx nasceu a 5 de maio de 1818, em Trier, Alemanha, e morreu a 14 de março de 1883, em Londres, Inglaterra. Doutorou-se em Filosofia em 1841 e em seguida foi editor de um jornal liberal na Renânia. Em 1843, com apenas 25 anos, saiu da Alemanha por motivos políticos. Morou em Paris e depois em Londres, onde escreveu extensa obra.

Idéias

Marx entendia que a evolução histórica dependia dos meios e relações de produção. Meios de produção são os instrumentos de que o homem dispõe para produzir aquilo que necessita, tais como arados, máquinas e computadores. Relações de produção são os “arranjos” que os indivíduos estabelecem entre si para produzir. O assalariamento, por exemplo, é uma relação de produção, a servidão é outra e assim por diante.

Obra-prima

A principal obra de Marx é O Capital. Nele, o autor faz uma análise do modo de funcionamento da economia capitalista, mostrando que ela está baseada na extração de mais-valia do trabalhador assalariado. Quer dizer, o trabalhador produz um excedente que acaba ficando para o capitalista. Trocando em miúdos: parte do que o trabalhador produz, segundo as teorias desenvolvidas por Karl Marx, voltaria para ele na forma de salário; uma outra parte (o excedente) ficaria para o capitalista (o dono dos meios de produção). Esta seria, então, o que o pensador socialista chamou de mais-valia.

Influência

As idéias de Marx foram decisivas para dois movimentos sociais que moldaram o século XX: o socialismo e o comunismo. Para ele, o socialismo substituiria o capitalismo. No socialismo, a propriedade privada deixaria de existir e passaria para o Estado. Países como a União Soviética e a China tentaram implantar o socialismo. Só depois disso é que viria o comunismo. Nele, o Estado deixaria de existir e a propriedade seria de todos. Quanto a essa fórmula, ninguém tentou implantá-la.

Max Weber

Max Weber nasceu a 21 de abril de 1864, em Erfurt, Alemanha, e morreu a 14 de junho de 1920, em Munique, Alemanha. Formado em Direito, doutorou-se em Economia e acabou desenvolvendo obra na Sociologia. Dedicou sua vida ao trabalho acadêmico, escrevendo sobre assuntos tão variados como o espírito do capitalismo e as religiões chinesas.

Idéias

Weber contestou Marx sobre a importância da economia. Preferia acreditar que, dependendo da situação, o fator determinante de uma certa ação poderia ser outro, como a ética ou valores morais. Daí a importância atribuída por ele à atuação dos líderes carismáticos, capazes de arrastar as pessoas para um determinado comportamento. Também as religiões foram estudadas por Weber como fonte de motivação para os indivíduos.

Obra-prima

A grande obra de Weber chama-se Economia e Sociedade. Nela, Weber traça um quadro do poder e da política, ou seja, das relações de dominação. Weber defendia a tese de que a forma de legitimação de um poder é decisiva para se compreender que tipo de poder é aquele.

Influência

A influência de Weber nas ciências sociais é imensa, só comparável à do francês Emile Durkheim (1858-1917) e de Marx. No Brasil, uma boa parte dos sociólogos, cientistas políticos e historiadores inspiraram-se em Weber para entender o país, como Sérgio Buarque de Holanda .

Joaquim Nabuco

Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo nasceu a 19 de agosto de 1849, em Recife e morreu a 17 de janeiro de 1910, em Washington, Estados Unidos. Advogado, foi deputado do Império. Destacou-se na defesa da abolição da escravatura. Proclamada a República, deixou a política. Dedicou-se a escrever e representar o Brasil em missões diplomáticas.

Idéias

Joaquim Nabuco desenvolveu uma análise do Brasil a partir do fenômeno da escravidão. A enorme resistência dos proprietários de terra e da elite política em acabar com o escravismo no país (o Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir essa forma de trabalho), convenceu Nabuco de que a situa- ção dos negros estava no centro da estrutura social do país.

Obra-prima

A principal obra de Joaquim Nabuco é um livro curto e elegante, O Abolicionismo, publicado em 1883, no qual ele desenvolve uma análise da influência da escravidão na sociedade brasileira. O texto não se limita a propor o fim do trabalho forçado. Ele mostra como a vida política do Brasil, pretensamente liberal, estava influenciada pelo escravismo.

Influência

As conseqüências da escravidão, como o desprezo pelo trabalho e a deformação da elite liberal brasileira, ambas assinaladas por Nabuco, foram idéias que influenciaram parte do pensamento político nacional no século XX. A obra de Nabuco chamou a atenção para a inexistência de um verdadeiro liberalismo no Brasil e para a necessidade de se resolver o problema da profunda divisão social originária da escravidão.

Sérgio Buarque

Sérgio Buarque de Holanda nasceu a 11 de julho de 1902, em São Paulo e morreu a 24 de abril de 1982, em São Paulo. Historiador, sua vida foi principalmente dedicada ao trabalho acadêmico. Catedrático da Universidade de São Paulo até 1969, aposentou-se em protesto contra a cassação de professores da USP, entre eles Fernando Henrique Carodoso.

Idéias

Sérgio Buarque caracteriza o brasileiro como homem cordial. Mas, diferentemente do que se costuma pensar, o homem cordial não é um homem “bonzinho”, nem de “índole pacífica”. Ele é cordial porque age movido pelo coração e não pela razão. O lado ruim disso é que o brasileiro detesta normas que valem para todos, isto é, normas impessoais. Ocorre que, sem normas impessoais, não há igualdade perante a lei. É por isso que o brasileiro detesta ser igual perante a lei. Ele acha que a igualdade da lei vale para os outros, nunca para si mesmo.

Obra-prima

Raízes do Brasil, publicada em 1936. Inspirado em Max Weber, Sérgio Buarque de Hollanda faz uma revisão da História do Brasil com o objetivo de provar o seu ponto: que o homem brasileiro é avesso à impessoalidade do capitalismo. O livro é magistral.

Influência

Juntamente com outros dois livros da década de 30 — Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (1900-1987) e Formação Política do Brasil, de Caio Prado Júnior (1907-1990) — o trabalho de Sérgio Buarque de Holanda revolucionou a visão que se tinha do Brasil até então.

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