Assine SUPER por R$2,00/semana
Continua após publicidade

História da depressão: no canto da vida

Em 2,5 mil anos de história, a melancolia inspirou grandes obras da arte e da ciência – e é um dos maiores problemas que a humanidade precisa enfrentar.

Por Lúcia Monteiro
Atualizado em 15 jan 2023, 11h37 - Publicado em 28 fev 2006, 22h00

O cotovelo apoiado na perna, a coluna curva, o rosto pálido e inclinado, caído sobre a mão. O corpo parece tenso e pesado, e o olhar, perdido no infinito. Olhe para o senhor da imagem acima e você terá a impressão de fazer parte de um mundo em que o dia tem 50 horas e até o Sol faz seu percurso em um ritmo mais lento que de costume. Uma sensação? Frio. Um sabor? Amargo. Cor? Preta. Desejo? A inércia completa.

Não são sensações incomuns. Em maior ou menor grau, nada menos que 340 milhões de pessoas têm momentos semelhantes a esse. É a estimativa do número de casos mundiais de depressão feita pelo grupo de saúde mental da Organização Mundial da Saúde. Ele também estima que uma em cada 4 pessoas desenvolverá a doença ao longo da vida. Mas nem sempre foi assim: ao longo da história, a situação foi vista de forma bem diferente.

O senhor acima é apenas um dos últimos representantes de uma tradição de mais de 2.500 anos. Trata-se de uma escultura do artista australiano Ron Mueck, sem título, mas conhecida como Grande Homem graças aos seus mais de 2 metros de altura. Assim como ele, inúmeras pinturas, esculturas e personagens da literatura ilustraram a mesma atitude cabisbaixa perante a vida. Hoje em dia, basta um exame rápido para diagnosticar pessoas como depressivas. Mas se estivéssemos na Grécia antiga falaríamos de melancolia e, na Europa medieval, de acédia. O melhor retrato já feito dessa história é a exposição Melancolia – Genialidade e Loucura no Mundo Ocidental, em que estão reunidas as imagens que aparecem nesta reportagem. Para entender esse processo até chegar à guerra declarada contra a depressão dos dias de hoje, é melhor começar do começo.

Homens de exceção

No mundo ocidental, quem primeiro notou características depressivas e as sistematizou em torno de um nome foi Hipócrates, considerado o pai da medicina, no século 4 a.C. Ele cunhou o nome melancolia a partir de duas outras palavras: mêlas = negro e kholê = bile. Melankholia significa portanto “bile negra”, segundo ele, um dos 4 humores que constituem o corpo humano – os outros seriam a bile amarela, o sangue e a fleuma. No texto intitulado Da Natureza do Homem, Hipócrates (ou seu genro Polibeu, não se sabe ao certo) estabelece uma correspondência entre os 4 humores, as 4 estações do ano e as 4 características fundamentais da matéria (quente, fria, seca e úmida). A cada um dos humores ele relacionou um sintoma psicológico. Em seu estado normal, o homem teria os 4 bem equilibrados. O problema se daria em casos de excesso de um ou de outro. Bile amarela demais causaria um temperamento raivoso, da mesma maneira que a bile negra em abundância provocaria a depressão. “Se a tristeza e a angústia não passam, o estado é melancólico”, disse Hipócrates em seus Aforismas.

No mesmo século, o filósofo grego Aristóteles, em uma obra conhecida como Problema 30, reparou em uma estranha coincidência: “Por que razão todos os homens de exceção na filosofia, na política, na poesia ou nas artes são manifestamente melancólicos?” Não foi o único a perceber isso. A propaganda do Prozac, o mais popular dos antidepressivos, enumera uma lista de “homens de exceção” acometidos pela doença: os americanos Abraham Lincoln e Theodore Roosevelt, o pintor holandês Vincent van Gogh, os escritores Mark Twain e Ernest Hemingway, o inglês Winston Churchill, a atriz Marilyn Monroe e o bailarino Vaslov Nijinsky são alguns deles. A diferença é que, enquanto a indústria farmacêutica busca encorajar os doentes a se tratar, Aristóteles via na melancolia um atributo essencial da genialidade. Para ele, era um estado ao mesmo tempo patológico e desejável.

Podemos imaginar uma balança para medir como a humanidade encarou a melancolia em diferentes períodos e lugares. Na Grécia antiga, a balança estaria equilibrada – o peso do lado positivo é igual ao do lado negativo. Já na Idade Média, a balança pesaria de maneira extremada para o lado negativo. Não se falava em melancolia, mas em acédia. A palavra saiu de uso tanto no português como em outras línguas latinas, mas continua presente no dicionário. De acordo com o Houaiss, significa enfraquecimento da vontade, inércia, preguiça ou desordem mental, caracterizada por apatia, melancolia e descuido. Pois não é que a acédia entrou para o temido rol dos 7 pecados capitais? Isso mesmo, junto com a gula, a avareza e o orgulho, por exemplo.

Continua após a publicidade

A história é a seguinte: no início do século 4, centenas de monges estabeleceram alguns dos primeiros grandes monastérios católicos nos desertos da Síria e do Egito (nos dois retiros mais importantes, a sudoeste de Alexandria, viviam 5.600). Esses monges, chamados de anacoretas, pretendiam se isolar do mundo para, assim, fugir de toda e qualquer tentação. Só que, mesmo distante de tudo, restava ainda um demônio: a acédia. Evágrio Pôntico, antigo diácono de Constantinopla que se retirou no deserto em 383, descreveu assim a tentação, também chamada de “demônio do meio-dia”: “Ele força o monge a manter os olhos fixos na janela, fora de sua célula, observando o sol para ver se ele está longe da 9a hora. Ele inspira a aversão pelo lugar onde o monge se encontra, por seu próprio modo de vida e pelo trabalho manual. Além disso, provoca a idéia de que a caridade desapareceu e que ninguém poderá consolar-lhe. O demônio da acédia usa todas suas forças para que o monge abandone sua célula e fuja”.

É assim, com essa roupagem de tentação que leva ao pecado, que a acédia chega à Idade Média. Em todo o ocidente medieval, a definição que impera é a do frade dominicano são Tomás de Aquino (1227-1274), grande filósofo do cristianismo. Para ele, trata-se de “uma tristeza devastadora, que produz no espírito do homem uma depressão tal que ele não tem mais vontade de fazer nada. A acédia é um desgosto pela ação”. Uma nova etimologia da palavra melancolia é forjada, o que contribui para aumentar a carga negativa: melan agora é ligada ao termo latino malus, que vale tanto para mal como para malsão, ou doente. Diante de definições tão desprezíveis, o que poderia fazer o homem medieval ao se sentir melancólico? Ora, não haviam muitas opções. Ou escondia o pecado, ou rezava para tentar banir o abominado sentimento de sua alma.

A melancolia só daria a volta por cima no século 19. Na Inglaterra dessa época, o prato mais pesado da balança é o da visão positiva: a moda elizabetana manda vestir preto e o spleen é um atributo essencial do romantismo. Órgão que se acreditava secretar a bile negra, o baço (ou spleen, em inglês), virou sinônimo de angústia, mau humor e depressão. As mulheres inglesas que andavam de cara amarrada por volta de 1800 diziam ter sido atingidas pelos vapores do spleen. Nada mais glamouroso, na época. Apesar de sofrido e devastador, o sentimento borocoxô é cultuadíssimo pelos românticos. Famoso poeta do período, o inglês George Gordon (1788-1824), mais conhecido como Lord Byron, influenciou escritores de diversos países. Os seguidores do chamado byronismo tinham em comum um sentimento de mal-estar, desajuste, solidão, desencanto e tédio, características resumidas na expressão mal du siècle (“o mal do século”, em francês). O tuberculoso e taciturno Álvares de Azevedo (183-1852), autor de A Lira dos Vinte Anos, é o escritor brasileiro que melhor incorpora a linha. Na França, o poeta Charles Baudelaire (1821-1867) representa bem o espírito nos versos de “A Morte dos Pobres”:

A Morte é que consola e nos faz viver;

É o alvo desta vida e a única esperança

Continua após a publicidade

Que, como um elixir, nos dá fé e confiança,

E forças para andar até o anoitecer.

Em meio à tempestade e à neve a se desfazer,

É a luz que em nosso lívido

horizonte avança

Continua após a publicidade

É a pousada que um livro diz

como se alcança,

E onde se pode descansar e adormecer.

É um Arcanjo que tem nos dedos imantados

O sono eterno e o dom dos

Continua após a publicidade

extasiados,

E arruma o leito para os nus e os desvalidos;

É dos Deuses a glória e o místico celeiro,

É a sacola do pobre e o seu lar verdadeiro,

O pórtico que se abre aos

Continua após a publicidade

Céus desconhecidos!

Hoje em dia não se fala tanto de melancolia. A palavra ainda é usada para casos profundos de depressão, esse sim, o termo médico em voga. Mas qual é a diferença entre tristeza, melancolia e depressão? Bom, as fronteiras não são bem claras. De uma maneira geral, pode-se dizer que o termo depressão herdou boa parte dos atributos da melancolia do passado. Diferente dos gregos, no entanto, o mundo de hoje vê a depressão como uma doença sem qualquer implicação positiva. “A tristeza é uma emoção universal e tem o seu valor: leva à introspecção, ajuda a elaborar a frustração e contribui para o amadurecimento”, diz o médico Teng Chei Tung, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo. “Do ponto de vista clínico, a depressão é uma doença incapacitante e, diferente da tristeza, não pode ser controlada pelo paciente sozinho.” Ou seja, a balança agora está no lado negativo.

Mal dos macambúzios

Como foi que a melancolia se transformou em doença, entrou na seara da psiquiatria e passou a ser combatida com uma intensidade semelhante à da Idade Média? É verdade que os gregos já viam o lado patológico da melancolia. Mas nada comparado ao problema de saúde pública de nossos dias. A partir do século 18, os médicos começaram a se interessar pelas doenças mentais. Eram os chamados alienistas, que consideravam a melancolia como um tipo de loucura ou como uma mania. O fundador da psiquiatria na França Philippe Pinel (1745-1826) – aquele que deu origem à expressão “ficar pinel” – e, mais tarde, seu aluno Jean-Etienne Esquirol (1772- 1840) estão entre os mais notáveis estudiosos da área. Em 1915, Freud comparou a melancolia ao luto. Segundo ele, “ambos provocam uma depressão profundamente dolorosa, uma suspensão do interesse pelo mundo exterior, a perda da capacidade de amar e a inibição de toda a atividade”. A diferença seria que, enquanto o luto é a dor pela perda de alguém ou algo, o melancólico se ressente da perda do “eu”, o que também traria uma diminuição da auto-estima.

Um grande avanço veio com a descoberta – por acaso – dos antidepressivos. Na década de 1950, percebeu-se que a isoniazida, enzima usada para tratar tuberculosos, produzia nos doentes uma inesperada sensação de ânimo e bem-estar. Uma reação similar foi notada com a inipramina, um antialérgico. Usadas para tratar depressivos, no entanto, essas substâncias provocavam muitos efeitos colaterais, já que não haviam sido criadas com esse fim específico. Os antidepressivos agem sobre algumas substâncias que regulam a transmissão de impulsos nervosos, os neurotransmissores – em especial sobre a serotonina, que além de influenciar o temperamento, controla a liberação de hormônios que regulam estados como o sono e a fome. Deprimidos apresentam distúrbios na regulação de serotonina, mas comece a brincar com essa substância e você corre o risco de desregular o organismo inteiro.

A primeira droga capaz de agir sobre a serotonina sem tantos efeitos colaterais foi o Prozac, que começou a ser vendido nos Estados Unidos em 1988. Graças a ele, os antidepressivos se tornaram populares. “O remédio é tão seguro que dá a impressão de que qualquer médico pode tratar a depressão“, afirma Tung, do Hospital das Clínicas. “Mas hoje em dia a medicação é acompanhada com mais cuidado. A associação dele com outros medicamentos pode gerar intoxicação. Estudos sugerem até que tratamentos com antidepressivos podem agravar a depressão ou levar ao suicídio.”

Mesmo com remédios, as estatísticas atuais sobre a depressão são alarmantes. Além dos 340 milhões de pessoas com a doença, estima-se que em 2020 ela será a 2a principal causa de incapacidade no mundo, atrás apenas de doenças cardíacas (hoje, ela ocupa a 4a posição desse ranking). Não é à toa que, entre as medicações só comercializadas com receita médica, os antidepressivos são os campeões de venda. Por outro lado, nunca a depressão foi tão estudada quanto hoje, o que abre a perspectiva de melhores remédios.

Mas será que estamos no caminho certo? “Não acredito que nós hoje compreendemos melhor a melancolia do que os gregos”, diz o historiador da arte Jean Clair, curador da exposição Melancolia, que estudou as abordagens artísticas da depressão por mais de 10 anos. “Nossa época a nega. É preciso ser feliz, engraçado, divertido, positivo e, nesse contexto, a melancolia é proibida. Se você se sente melancólico, toma um Prozac. O ideal do homem hoje em dia é se manter constante o tempo todo, sem alterações de humor, como as frutas e os legumes do supermercado, que têm sempre a mesma cor, o mesmo tamanho e o mesmo gosto.” A mostra reúne 250 obras, entre telas, desenhos, gravuras e esculturas, todas com o tema da melancolia. “O público se dá conta de que a melancolia faz parte da nossa cultura e não é apenas uma doença. Além do mais, é reconfortante saber que o que sentimos se inscreve na história e foi responsável por algumas das mais importantes obras de arte”, diz Jean Clair. Na França, a mostra atraiu 330 mil pessoas em 3 meses. Na esteira do seu sucesso, foram lançados mais de 10 livros sobre o tema. “O sofrimento da melancolia constitui o homem, da mesma maneira que os peixes têm espinha”, diz o professor Jackie Pigeaud, da Universidade de Nantes, França, conhecido por seus estudos sobre a história do pensamento médico. Pacientes com depressão clínica devem buscar ajuda e procurar se tratar, mas ficar triste ou ter alterações de humor não deve ser motivo de vergonha. Como diz Pigeaud: “Anormal é não sofrer nunca e estar sempre contente”.

Para saber mais

Tristeza Maligna, de Lewis Wolpert

Flores do mal, de Charles Baudelaire

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 12,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.