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Invicto

Símbolo da luta contra o apartheid, Nelson Mandela tornou-se o próprio rosto da superação ao não seguir o caminho da retaliação e pavimentar a conciliação entre brancos e negros na África do Sul - mesmo depois de 27 anos de cárcere

Por Pedro Procópio
Atualizado em 31 out 2016, 18h17 - Publicado em 9 Maio 2012, 22h00

 

Experimente digitar “Nelson Mandela” no campo de busca de uma loja virtual. O resultado serão livros com títulos repletos das palavras “luta”, “revolução”, “liderança”, “lições”, “longo caminho”, “liberdade” e “coragem”. Enfim, se há um rosto para sintetizar a “superação”, ele pertence a esse sul-africano de 93 anos, presidente de seu país de 1994 a 1999 e símbolo da luta contra o apartheid, o odioso regime de segregação racial, oficialmente em vigência na África do Sul entre 1948 e 1994.

O jovem Mandela nasceu protegido no seio da corte da tribo Tembu, 30 anos antes da institucionalização do apartheid. Ainda em 1938, Mandela começou a estudar Direito na Universidade de Fort Hare, frequentada por alunos de famílias aristocráticas negras ou com boas notas nas escolas missionárias. Mas foi expulso após desentendimentos com o reitor. O rei dos Tembu, furioso, decidiu arranjar um casamento para ele e para um primo. Os dois ficaram inconformados e fugiram para Johanesburgo. Foi somente então que começou a se delinear o Mandela que conhecemos.

Na maior cidade do país, foi vigia noturno em uma mina de carvão e morou em barracos sem luz. Enquanto isso, retomou em 1942 os estudos na Universidade de Witwatersrand, onde teve de ouvir de um professor que negros não eram bons o suficiente para se tornar advogados. Não só Mandela exerceu a profissão como montou o primeiro escritório negro de advocacia do país, com seu amigo Oliver Tambo (1917-1993), que, durante o cárcere de Mandela, comandaria o Congresso Nacional Africano (CNA), partido fundado em 1912 para defender o direito de negros. Nos tribunais, ao ver que a balança da justiça pendia para os brancos, foi solidificando uma inevitável consciência política.

Em 1944, afiliou-se ao CNA. E, passados 4 anos, viu o apartheid ser instalado. A essa altura, já ascendia nos escalões do partido. A princípio, defendia a não-violência, na linha da desobediência civil de Gandhi. Mas em 1961, diante do incremento da repressão dos brancos e do banimento do CNA, fundou a Lança da Nação, braço guerrilheiro do partido. Foi decretado terrorista pelo governo. Entrou na prisão aos 44, em 1962, e saiu aos 71, em 1990.

A experiência em lugares como a Ilha Robben, o presídio que atualmente é atração turística na costa da Cidade do Cabo onde permaneceu entre 1964 e 1982, modelou o homem como o conhecemos hoje. Sintoma desse processo é a descrição do líder na juventude feita por Oliver Tambo. Ele via no companheiro um sujeito “entusiasmado, emotivo, sensível, facilmente melindrado ao rancor e à retaliação pelo insulto e pela condescendência”. Mais contrário à figura pública sorridente, equilibrada e reconciliadora, impossível.

Domando o rancor

Os impulsos da juventude podem ter permanecido de alguma maneira, mas Nelson Mandela certamente soube contê-los e construir a personalidade ponderada a que o mundo se acostumou. Ele teve de aprender, no interior de sua cela na Ilha Robben, a controlar-se diante de guardas que o consideravam membro de uma raça inferior e partiam para o terrorismo psicológico, com ameaças de espancamento ou mesmo de morte. Teve muito tempo para refletir sobre política e questões existenciais. E desenvolveu seu talento de liderança entre os demais presos. Precisava, portanto, constantemente negociar com os agentes da penitenciária. Aprendeu africâner, a língua do inimigo derivada do holandês, e o rúgbi, esporte dos brancos. Isso fez muitos presos torcerem o nariz, mas angariou a simpatia dos carcereiros.

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Em 1969, com 7 anos de experiência no xadrez, Nelson Mandela ficou sabendo da morte do filho mais velho, Thembi, num acidente de automóvel. No dia seguinte, mesmo devastado, já estava trabalhando na pedreira de calcário para demonstrar a todos que sua perda pessoal não o imobilizara inteiramente (por coincidência, em 2010, sua bisneta de 13 anos também morreu nessas circunstâncias, após voltar da festa de abertura da Copa do Mundo; dessa vez, Mandela faltou à primeira partida do torneio, mas apareceu na final). No cárcere, virou um sujeito metódico: fazia uma cópia de cada carta que mandava e registrava as anotações do envio e da chegada de suas correspondências.

Estabelecendo o diálogo

Enquanto esteve preso, o planeta foi tomando consciência de que a segregação racial sul-africana não poderia mais ser tolerada. Votos de condenação na ONU se tornaram recorrentes, bem como campanhas de boicotes a produtos da África do Sul. Em 1985, quando a cruzada antiapartheid interna e internacionalmente imantava as opiniões e havia chances reais de uma guerra civil, Nelson Mandela iniciou um diálogo secreto com o governo branco. Era um passo perigoso, pois contrariava seu partido e suas próprias convicções ao longo de décadas. Mandela enfrentou solitariamente os riscos de ficar para a história como o traidor do movimento e viu que era preciso fazer concessões para resolver o impasse.

Nos últimos respiros do apartheid, o Mandela que soube superar as adversidades da prisão torna-se o Mandela que faz seu próprio país passar por cima do ódio e do ressentimento estocados em décadas de segregação racial. Dentro de seu partido, o CNA, havia adeptos da retaliação contra os brancos opressores. Entre eles, destacava-se Chris Hani, chefe do braço armado do partido e 24 anos mais novo.

A ideia de uma guerra civil sobrevoava o país, e a direita branca já tinha entrado numa corrida armamentista para reagir a uma possível retaliação. Para os negros que desejavam vingança, o próprio Mandela parecia perigosamente conservador. Hani era o futuro, Mandela era o passado.

A profecia, contudo, não se concretizou – Hani foi assassinado em 1993 por um imigrante polonês. A linha que prevaleceu foi a da superação das diferenças. Em seu discurso na TV sobre a morte de Hani, Mandela fez questão de lembrar que foi uma mulher branca que anotou a placa do carro do assassino e possibilitou sua captura.

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Entre as atitudes cicatrizantes do líder figuraram elogios a carcereiros, pedidos para enterrar o passado traumático da nação e até uma visita à viúva de Hendrik Verwoerd (1901-1966), o político que arquitetou o apartheid. Em 1993, Nelson Mandela e o último presidente do regime, Frederik Willem de Klerk, dividiriam o Nobel da Paz. “Estou aqui (…) não para lutar contra a África do Sul como um país ou contra qualquer um de seus povos, mas para opor-me a um sistema inumano”, discursou.

O gesto simbólico

Em 1995, a África do Sul sediava a 3a edição da Copa do Mundo de Rúgbi. Nelson Mandela ocupava a presidência do país havia um ano. Seguindo os passos do discurso conciliador da TV, chamou brancos e negros para compor seu governo. E foi um esporte apreciado pelos brancos, o rúgbi, que serviu de elo com os antigos marginalizados, que preferiam o futebol ou torcer contra qualquer adversário do Springboks, a equipe nacional banida de competições internacionais na época do apartheid.

Mandela desencadeou uma campanha pelo time como último capítulo da conciliação. Fez amizade com o capitão François Pienaar e vestiu o uniforme do Springboks no estádio. A seleção, quase inteiramente branca (a exceção era Chester Williams), venceu a favorita Nova Zelândia e levou o título. Tudo isso foi contado pelo cinema, com as romanceadas de praxe, no filme Invictus (2009), com Morgan Freeman no papel do presidente.

Símbolo do sacrifício e da superação, mas, afinal, humano como todos nós, Nelson Mandela não é perfeito. “Nunca fui santo”, declarou no livro Conversas que Tive Comigo (2010), coletânea de cartas, entrevistas e trechos de diários prefaciada pelo presidente americano Barack Obama. O jornalista americano Richard Stengel, que o ajudou a escrever a autobiografia Longo Caminho para a Liberdade (1995), confirma que ele gosta de ser paparicado, conta moedas na hora de dar gorjeta e não lembra o nome dos seguranças. Se levarmos em consideração que muitos dos santos tiveram biografias nada santas, os deslizes do mito ficam pequenos como a antiga cela da Ilha Robben.
 

“Quando você fala com alguém em uma língua que ele entende, a mensagem vai para a cabeça dele. Se falar em sua língua-mãe, ela vai para seu coração.”
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Sobre aprender africâner para negociar com brancos

Antes do mito

Seria tentador contar a trajetória do grande protótipo de santo ou herói do nosso tempo de uma maneira linear, começando com uma infância miserável, passando por uma série de provações aparentemente intransponíveis até chegar a um triunfo final. Nem tudo na vida do mito foi, porém, tão retilíneo assim. Para começar, esqueça a história de extrema pobreza infantil. Mandela, que nasceu 30 anos antes da institucionalização do apartheid, tem sangue azul. Filho de um conselheiro de corte da tribo Tembu morto de tuberculose, ele foi criado pelo rei Jongintaba Dalindyebo para suceder o pai na corte. É fato que a vida para os negros da África do Sul já era difícil antes de 1948. Mas havia na hierarquia social do país gente em piores condições do que o menino Mandela. Imerso no ambiente da corte, aliás, teve pouquíssimo contato cotidiano com descendentes de europeus na infância – consta que só apertou a mão de um homem branco pela primeira vez quando foi para o internato, em 1937. Insulado, sentiu menos na pele o preconceito que devastou a autoestima da sua geração.
 

“Se você quer fazer as pazes com seu inimigo, você precisa trabalhar com ele. Então ele se tornará seu parceiro.”
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Sobre a reconciliação com seus oponentes

 

 

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