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No final do século 19, competições de caminhada atraíam multidões nos EUA

Atletas patrocinados, arenas com milhares de espectadores e champanhe para aguentar as maratonas. Bem-vindo ao mundo do pedestrianismo.

Por Rafael Battaglia
Atualizado em 19 abr 2022, 11h03 - Publicado em 19 abr 2022, 10h57

Quanto tempo você levaria para caminhar 724 quilômetros, distância equivalente a uma viagem de Belo Horizonte até Brasília?

Esse era o tamanho do percurso da maioria dos campeonatos de pedestrianismo, esporte que virou febre nos Estados Unidos no final do século 19 e que consistia, basicamente, em observar homens bigodudos andando em círculos. Pouco atrativo? No auge de popularidade, essas competições, que duravam seis dias (o que dava 120 km de caminhada por dia, em média) atraíam mais de 10 mil pessoas, que apostavam milhares de dólares em atletas patrocinados.

Para entender essa história, precisamos voltar a 1859. Naquela época, Edward Payson Weston trabalhava para o jornal New York Herald. Certo dia, o jovem de 19 anos recebeu a seguinte tarefa: pegar um buquê de flores, que chegaria em uma carroça, e enviá-la como presente em nome do seu chefe. O problema é que ele se atrasou – e a carroça foi embora.

Para corrigir o erro, Weston correu pelas ruas de Nova York e rapidamente alcançou a carroça. Pelo esforço, recebeu o dobro do pagamento, e sua velocidade e fôlego chamaram a atenção dos amigos.

Em 1860, ainda com o episódio da carroça fresco na memória, Weston e um colega apostaram em quem seria o próximo presidente dos EUA: Abraham Lincoln ou John Breckinridge. O perdedor deveria ir andando até a capital, Washington, para assistir à cerimônia de posse – um trajeto de 420 quilômetros. Lincoln venceu a eleição; Weston perdeu a aposta e botou o pé na estrada.

Weston realizou o percurso em dez dias, em pleno inverno. Não demorou para que a sua empreitada virasse notícia: as pessoas iam até a estrada para observá-lo, e até médicos, posteriormente, examinaram a sua urina para tentar entender o seu condicionamento físico.

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Suor, champanhe e celebridades

Historiadores consideram Weston o precursor do pedestrianismo. Depois da viagem a Washington, ele começou a fazer demonstrações públicas de caminhada, como andar 160 quilômetros em 24 horas dentro de uma pista. Quem quisesse conferir a façanha precisava pagar US$0,10 (cerca de US$4, em valores atuais).

Mas o esporte só se disseminou após a Guerra Civil dos EUA (1861-1865). Nas décadas seguintes ao conflito, os EUA passaram por um intenso processo de industrialização e urbanização, com milhões de pessoas indo morar nas cidades. Competições como as de caminhada (e de beisebol, que também se popularizou nessa época) eram formas de aproveitar o tempo livre.

Como as corridas rolavam 24 por dia, trabalhadores de diferentes turnos podiam comparecer. Os ingressos custavam não mais que US$ 1 (US$ 28 hoje). E só não duravam mais que seis dias porque, até então, eventos públicos de lazer eram proibidos aos domingos.

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As competições tinham apresentações musicais e vendedores de comida (o cardápio, geralmente, era composto por ovos em conserva e castanhas torradas). A maior delas era a Great Six Days Race, que acontecia no Madison Square Garden, tradicional arena de Nova York. Não raro, celebridades e políticos marcavam presença. Chester A. Arthur, que viria a se tornar presidente dos EUA, era um assíduo frequentador.

Os atletas, claro, tinham um tempo para descansar. Eles reservavam até três horas por dia para dormir, comer e ir ao banheiro. Tudo isso era feito em tendas montadas ao lado das pistas, que mediam 200 metros. Cada esportista tinha a sua própria equipe de apoio, com médicos, massagistas e cozinheiros. E todos seguiam a mesma recomendação: beber (muito) champanhe, considerado um estimulante, durante a corrida.

Os astros

O maior rival de Weston era um imigrante irlandês chamado Dan O’Leary, praticamente a sua contraparte. Enquanto Weston era um showman, que interagia com o público com um visual extravagante (camisas com babados e uma bengala; lembre-se: era o século 19), O’Leary era um atleta mais centrado, com movimentos robóticos e que caminhava com espigas de milho nas mãos (o que, segundo ele, ajudava a absorver o suor).

“Eles eram o Muhammad Ali/Joe Frazier [dois dos maiores lutadores de boxe da história] daquela geração”, comparou em uma entrevista à rádio NPR Matthew Algeo, autor do livro Pedestrianism: When Watching People Walk Was America’s Favorite Spectator Sport, sem tradução no Brasil.

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Outro grande nome da caminhada foi Frank Hart, imigrante haitiano que trabalhava como atendente de uma mercearia em Boston. Ele foi um dos primeiros astros negros do esporte americano, e bateu o recorde ao percorrer incríveis 909 km durante seis dias de corrida.

Os prêmios das competições eram altos. Na Great Six Days Race, o vencedor embolsava US$ 25 mil (US$679 mil, em valores atuais). Mas, assim como hoje, a grana vinha, sobretudo, dos patrocinadores. O’Leary, por exemplo, era embaixador de uma empresa de sal. E Weston fazia propaganda do jornal National Police Gazette – ele chegou, inclusive, a correr com uma camiseta com o logotipo da publicação.

Para Algeo, esse é talvez o maior legado do pedestrianismo. “Essa ideia de patrocínio corporativo, tão presente no esporte moderno, realmente começou com esses atletas, que tinham acordos bem lucrativos.”

E havia os escândalos também. Em 1876, Weston foi pego mascando folhas de coca enquanto caminhava. Naquela época, já se sabia que a planta funcionava como um estimulante, usado por povos da América do Sul para aliviar o cansaço e a fome. Não era contra a lei, mas o ato de Weston foi considerado antidesportivo ainda que ele tenha alegado recomendação médica.

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Declínio

Nos anos 1880, a popularidade do pedestrianismo caiu. Astros como Frank Hart se aposentaram, o que diminuiu o interesse do público, que passou a lotar apenas 10% das arenas.

Em 1885, o americano John Starvey inventou a bicicleta moderna, mas estável e veloz que o modelo anterior, que tinha a roda dianteira bem maior que a traseira. Foi o golpe de misericórdia para as caminhadas. Afinal, era muito mais emocionante assistir a corridas de bicicleta de seis dias, que eram mais velozes e com chances de quedas e batidas.

O pedestrianismo, claro, não sumiu. Mas se modificou e deu origem a outras modalidades. O maior exemplo é a marcha atlética, em que os atletas não podem tirar os dois pés do chão ao mesmo tempo (que é o que acontece quando você, de fato, corre). As provas são de 20 km e 50 km. Desde 1900, a marcha está presente nos Jogos Olímpicos.

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