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O sabor da própria carne

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h15 - Publicado em 31 jul 1997, 22h00

Ricardo Arnt

O canibalismo, ritual milenar dos índios brasileiros, já foi uma cerimônia sangrenta, que misturava bravura, ódio e até respeito pelo inimigo. Hoje, sobrevive em cerimônias misteriosas e ultra-elaboradas em que são comidos os restos dos mortos queridos.

Dificilmente haverá assunto mais cercado de preconceito. Os brancos, cristãos e ocidentais, vêem a antropofagia como símbolo supremo da selvageria indígena. Os antropólogos, normalmente, não gostam de falar a respeito porque têm medo de expor os índios. Os índios, por sua vez, quanto mais “civilizados”, mais têm medo de ser julgados bárbaros. Assim, o canibalismo virou tabu.

A Antropologia desconhece, no passado ou no presente, uma sociedade que consumisse carne humana como alimento. O canibalismo sempre foi simbólico. Ou se devoram os inimigos, como faziam os tupis do litoral brasileiro no século XVI, em impressionantes cerimônias coletivas, ou se pratica uma antropofagia funerária e religiosa. Aí, a ingestão das cinzas dos mortos homenageia e ajuda a alma daquele que morreu. Esse ritual faz parte, ainda hoje, dos costumes dos yanomamis.

Se as cerimônias tupis apavoram pelo que tinham de brutal, o ritual dos yanomamis é capaz de chocar o senso comum dos brancos pelo que tem de inesperado. Para um yanomami, comer as cinzas do amigo morto é uma prova de respeito e afeto. O mais desconcertante desse canibalismo que perdura é exatamente isso: ele não é um gesto de ódio, mas de amor.

Agora, a SUPER vai pôr você em dia com os rituais antropofágicos dos índios brasileiros. Desde a bravura dos guerreiros que devoravam inimigos para herdar sua valentia em combate, até a devoção dos praticantes do canibalismo funerário, movido pela compaixão com os mortos. Sem temores nem tabus.

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Comendo a coragem do inimigo

Em 1500, os europeus se espantaram com a belicosidade dos tupinambás, que habitavam a costa brasileira de São Paulo ao Ceará. Os índios, da família lingüística tupi, moravam em aldeias de 2 000 habitantes, mantinham relações pacíficas entre si e faziam alianças para atacar outras aldeias.

Em 1553, o alemão Hans Staden naufragou em Itanhaém, litoral de São Paulo, e ficou nove meses na aldeia do cacique Cunhambebe, na região de Mangaratiba, Rio de Janeiro. Ele mesmo participou de uma expedição de canoa até Bertioga, em São Paulo, para capturar inimigos. Mortos e feridos foram devorados no campo de batalha e durante a retirada. Os cativos foram levados para a aldeia, para que as mulheres pudessem participar do ritual antropofágico.

Segundo o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “o valor fundamental da sociedade tupinambá era predar o inimigo”. Fausto enfatiza: “Predação repetida e sem fim. Eles viviam para guerrear.” A lógica da guerra não era o extermínio e sim o cultivo da inimizade. “O objetivo era valorizar-se apropriando-se das qualidades do oponente.”

O sacrifício honrava vítima e carrasco. A execução podia demorar meses. O captor cedia sua casa ao cativo. Cedia também uma irmã, ou filha, como esposa.

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O preso circulava pela aldeia e era exibido aos vizinhos. A execução atraía convidados, em festas e danças regadas a cauim (uma bebida fermentada à base de mandioca). O preso recebia a chance de vingar sua morte, antecipadamente. Pintado e decorado, era amarrado pelo ventre com a mussurama (uma corda de algodão) e recebia pedras para jogar contra a audiência. Insultava a todos, provando sua coragem.

O carrasco vestia um manto de penas, imitava uma ave de rapina e usava uma ibirapema (borduna). O padre Anchieta conta, em suas Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões, que viu um preso desafiar o algoz, aos gritos : “Mata-me! Tens muito que te vingar de mim! Comi teu pai. Comi teu irmão! Comi teu filho! E meus irmãos vão me vingar e comer vocês todos.”

Golpe de misericórdia

Um golpe na nuca rompia o crânio. Acudiam mulheres velhas, com cabaças, para recolher o sangue. Tudo era consumido por todos. As mães besuntavam os seios de sangue para os bebês também provarem do inimigo. O cadáver era esquartejado, destrinchado, assado numa grelha e disputado por centenas de participantes – que comiam pedacinhos. Se fossem muito numerosos, fazia-se um caldo dos pés, mãos e tripas cozidas. Os hóspedes retornavam às aldeias levando pedaços assados.

Só o carrasco não comia. Entrava em resguardo, em jejum, e, após a reclusão, adotava um novo nome. O acúmulo de nomes era sinal de bravura: indicava o número de inimigos abatidos. Grandes guerreiros tinham até 100 apelidos. Comer o inimigo era afirmar potência. “O canibalismo exprimia a força do predador, na sua capacidade máxima”, diz Carlos Fausto. “Para eles, os seres potentes eram devoradores. Como o jaguar.”

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A catequese dos brancos acabou com esse canibalismo guerreiro. O ritual pertencia a uma cultura estável, que foi desestruturada até em grupos mais arredios. A última tribo tupi contatada no Brasil, em 1994, os tupi-de-cunimapanema, no norte de Santarém, no Pará, não tinha vestígio de antropofagia.

No purê de banana, as cinzas dos amigos

Há 25 000 yanomamis nas montanhas da fronteira do Brasil com a Venezuela, numa das áreas mais remotas e intactas do mundo. Desses, 10 000 estão em território brasileiro. Moram em mais de 100 aldeias, falam quatro dialetos e mantêm um estado guerra intermitente uns com os outros. Para todos eles, não há morte natural. Morre-se pela ação dos inimigos ou pela trama de um feiticeiro. Portanto, toda morte requer vingança.

Esses yanomamis praticam o endocanibalismo (comem gente da própria tribo). É uma cerimônia que reitera do compromisso de vingar o morto. “O ritual organiza um estado de hostilidade permanente”, diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional. “A cerimônia é quase uma eucaristia.” Só os amigos sem laços de consangüinidade são convidados para o funeral.

O cadáver é pranteado e colocado sobre uma plataforma, fora da aldeia. A carne é separada dos ossos e cremada. Os ossos são limpos e moídos num pilão até virar cinza. No funeral, os vizinhos e aliados comem as cinzas com purê de banana.

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“Ao contrário do culto cristão do ancestral”, explica Viveiros de Castro, “a antropofagia yanomami realiza o apagamento total do antepassado”. Tudo o que era do morto é destruído e seu nome deixa de ser pronunciado. Como o espírito deseja companhia, atraindo os vivos para a morte, todas suas posses e traços são destruídos para que ele viaje para o mundo dos mortos – que fica nas “costas do céu”. Até pegadas, na mata, são apagadas.

Predação sem ódio

Até o final dos anos 60, os waris de Rondônia também praticavam o endocanibalismo. O ritual funerário era ultra-elaborado. Os mortos eram pranteados durante dias, com a família agarrada ao cadáver. Convidavam-se os amigos de outras aldeias para o funeral. O corpo era cortado e os ossos, quebrados. Alguns órgãos eram cremados. Fígado e coração eram assados embrulhados em folhas. Desfiados e estirados em uma esteira, eram comidos, entre lágrimas, com pão de milho assado. Quase sempre, o corpo já estava se deteriorando.

Os waris apreciam carne gordurosa. Mas não tocavam no tronco humano, cheio de gordura, porque a cerimônia era simbólica, não gastronômica. “Eles comiam naquinhos, pedacinhos, da carne do morto”, explica a antropóloga Aparecida Villaça. Se o corpo estivesse realmente estragado, era queimado. O crânio era quebrado, os ossos moídos e as cinzas comidas com mel. O luto durava seis meses, durante os quais a família queimava e destruía as posses do morto até esquecer seu nome.

Para a antropóloga, há uma continuidade entre o endocanibalismo e o exocanibalismo dos waris, que comiam os inimigos para expropriar-lhes a humanidade (veja na página anterior). “Comer é a prova irrefutável da não-humanidade da coisa comida. Tanto para os inimigos, que não eram considerados gente, quanto para os parentes, cuja morte é difícil de aceitar. O endocanibalismo dos waris é uma predação sem hostilidade. Também aí, comer o morto acaba com sua humanidade.”

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Para saber mais

Araweté: Os Deuses Canibais. Eduardo Viveiros de Castro, Rio, Edições UFRJ/Zahar, 1986.

Comendo Como Gente. Aparecida Villaça. Rio, Edições UFRJ/Ampocs, 1992.

História dos Índios no Brasil. Org. Maria Manoela Carneiro da Cunha. São Paulo, Fapesp e Companhia das Letras, 1992.

Mana. Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Museu Nacional, UFRJ.

Muitos insultos, segundos antes do golpe fatal

Na ilustração de Theodore de Bry (inspirada pela estética do Renascimento europeu), o prisioneiro, no centro da aldeia, xinga e ofende os captores, segundos antes de receber o golpe da borduna.

A receita é cozinhar antes de assar

Com a participação de toda a tribo o cadáver era esquartejado, destrinchado, cortado em pedaços e cozinhado em um caldeirão, antes de ser assado em postas. No canto à direita, Hans Staden observa, perplexo.

A grande comilança antropofágica

Homens, mulheres e crianças bebem cauim e devoram, animadamente, o inimigo assado na grelha. Até 2 000 índios celebravam o ritual comendo pequenos pedaços do corpo do prisioneiro. Atrás, Staden, agita os braços, horrorizado.

O bem mais precioso dos vivos

Os yanomamis guardam as cinzas dos mortos em cabaças lacradas dentro de cestos. S��o consumidas aos poucos em sucessivas cerimônias. O canibalismo garante a ida para o céu de quem é comido.

Memória carnal

José Augusto Kaxinawá, de 71 anos, comeu os cadáveres de uma tia e dois primos

A passagem para o além da morte

Os kaxinawá eram canibais até os anos 50, mas só comiam as pessoas queridas e notáveis. Quem não tinha parentes nem boa reputação era queimado. Doenças dos brancos desestruturaram a tribo e acabaram com os rituais.

Os waris de Rondônia

Os waris, da fronteira de Rondônia com a Bolívia, foram pacificados em 1962. Até 1945 devoraram os seringueiros que invadiam suas terras.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o preço da borracha subiu e seringueiros invadiram as terras waris, no Rio Guaporé, em busca de mais mercadoria. Houve muitos confrontos, com um saldo macabro. Cadáveres mutilados, sem cabeça, braços ou pernas, eram encontrados na área. Expedições partiram da cidade de Guajará-Mirim para punir os índios.

“Eles comiam pedaços dos inimigos porque não os consideravam humanos”, diz a antropóloga Aparecida Villaça, que estudou o grupo e escreveu o livro Comendo Como Gente. “Assar e comer inimigos era uma forma de predação que expropriava a condição humana deles.”

Os matadores não comiam. Ficavam em resguardo até dois meses, deitados na rede, guardando a energia do combate e abstendo-se de relações sexuais. “Era uma digestão simbólica”. Para os waris, o espírito do inimigo “cola” no matador. Tanto que quando um guerreiro é morto pelo inimigo vira um deles.

Hoje, o canibalismo guerreiro dos waris terminou por absoluta falta de inimigos. As tribos rivais foram dizimadas pelas doenças de branco.

Só restaram os brancos: agora, os 1 800 waris têm a assistência de missionários católicos e protestantes, além dos funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai).

”Eu sou um jaguar”

Candido Portinari fez o desenho ao lado em 1941, inspirado na tentativa de Hans Staden de convencer o chefe Cunhambebe a não comer carne humana. A resposta do índio, relatada no livro Duas Viagens ao Brasil, entrou para a História.

“Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio de carne humana. Comia uma perna. Segurou-m’a diante da boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi: ‘Um animal irracional não come um outro parceiro; um homem deve devorar outro homem?’. Mordeu-a, então, e disse: ‘Jauára ichê. Sou um jaguar. Está gostoso’. Retirei-me dele, à vista disso”.

Os deuses canibais dos arawetés

Os arawetés são uma sociedade de 230 índios, contatados em 1976, que fala uma língua tupi. Vivem ao sul de Altamira, no Pará. Não são canibais, preferem ser canibalizados.

Para os arawetés, a alma deve ser devorada pelos deuses, chamados mái. Só então os mortos podem ressuscitar e virar, eles também, divindades no céu. Assim, sem comer carne humana, incorporaram a tradição canibal tupi de um modo original. Eles não são comedores – eles são a comida. Ou melhor: sua alma é a comida dos deuses.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que pesquisa o grupo desde 1981 e escreveu Araweté:

Os Deuses Canibais, explica que isso é uma mistura entre dois tipos de canibalismo. “É exocanibalismo porque eles são devorados simbolicamente por deuses não-humanos, que não pertencem à tribo. E é também endocanibalismo porque eles próprios viram deuses depois de comidos.” Portanto, é como se voltassem para comer sua própria gente.

Viveiros de Castro admite que pode haver mais canibais entre os 53 povos indígenas da Amazônia dos quais a Funai tem indícios, mas ainda não contatou. Mas é uma possibilidade remota.

Os índios não contatados se reduzem a pequenos bandos arredios. Não têm tempo nem estrutura para produzir rituais complexos que duram dias e exigem tradições elaboradas.

“A estrutura social em que se baseavam os ritos canibais já desapareceu.”

O canibalismo amoroso

No Acre, há 4 000 índios kaxinawá, da família lingüística pano, vivendo nos rios Juruá, Purus, Tarauacá e Envira. Até 1955, muitos comiam os mortos queridos.

José Augusto Kaxinawá, 71 anos, da aldeia Recreio, no Rio Purus, lembra-se muito bem. Comeu uma tia e dois primos, assados. Foi um ato de amor para ajudar as almas a viajar até o céu pela estrada do arco-íris.

A antropóloga inglesa Cecilia McCallum, da London School of Economics, que estuda o grupo kaxinawá desde 1983, explica para a SUPER: “Eles acreditam que, no céu, as almas vivem em festa. Não têm dor de cabeça nem história, e não morrem mais.”

Em 1955, a tribo foipraticamente arrasada por doenças. Rituais, cantos e rezas sumiram. Antes, vigorava o canibalismo funerário.

O morto era dobrado, colocado numa grande panela de barro e cozinhado por três dias. Depois, era quebrado em pedaços e assado. Todos comiam, com aipim e banana verde cozida. Se fosse um homem, suas mulheres e ex-amantes extraíam os órgãos genitais e, juntas, comiam tudo. Se fosse mulher, os maridos e ex-amantes faziam a mesma coisa. “Assim, ajudavam o morto a virar divindade”, afirma Cecilia McCallum. “Era um último ato de piedade e de amor.” José Augusto se lembra de tudo. Muito bem.

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