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O vôo por um fio

Inventadas pelos chineses há mais de vinte séculos, as pipas são feitas de bambu a fibra de carbono, de jornal a náilon de balões. Hoje uma brincadeira, já foram até instrumentos científicos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h10 - Publicado em 31 dez 1991, 22h00

Fátima Cardoso

Muito antes de qualquer avião sair do solo, objetos voadores mais pesados que o ar já davam suas voltinhas pelo céu. Surgidas na China há mais de 2000 anos, as pipas foram os primeiros objetos a se manter no ar explorando as forças do vento. Atravessando diferentes épocas e culturas, já foram bélicas e científicas; hoje são sobretudo lúdicas, não menos belas. Quando fizeram subir as primeiras pipas antes mesmo de inventar o papel — construíam-nas de seda e bambu —, os chineses tinham intenções pouco amistosas. Com as combinações de cores, padrões de desenho e movimentos no ar, eles trocavam sinais codificados nos campos de batalha. Há indícios de que alguns soldados chegavam a subir a bordo das pipas para observar a movimentação das tropas inimigas. Em dias de paz porém, as pipas subiam aos céus para que o povo falasse mais de perto com os deuses. Parte então de cerimônias religiosas, são até hoje utilizadas naquele país como objetos místicos, para atrair sorte, felicidade, fertilidade, vitória. Pinturas de dragões, acreditam eles, atraem prosperidade; tartaruga traz vida longa e a coruja, sabedoria.

Da China, as pipas tomaram o rumo do Ocidente, invadindo a Índia e a Europa. Já na Idade Média, em 1250, o filósofo e cientista inglês Roger Bacon, que rascunhava protótipos de máquinas voadoras, escreveu um estudo sobre asas acionadas por pedais baseado em experiências com pipas. Marco Polo, o explorador italiano, em suas andanças pela China no fim do século XIII, fez dois feitiços virarem contra o feiticeiro. Encurralado por inimigos, levantou uma pipa carregada com fogos de artifício — também inventados pelos chineses — virados de cabeça para baixo. Quando os fogos explodiram, provocaram o primeiro bombardeio aéreo da História. Outro italiano, o artista e engenheiro renascentista Leonardo da Vinci, projetou cerca de 150 máquinas voadoras também baseado em pipas. Foi por essa época, em 1596, que a pipa chegou ao Brasil, junto com os descobridores portugueses que a conheceram na China. Não eram eles, no entanto, os únicos novos habitantes da América a levantar objetos voadores. Sentinelas entre os negros revoltosos do Quilombo dos Palmares usavam pipas feitas de folhas e palitos para avisar a chegada de algum perigo, uma prova de que a pipa já voava também na África.Embora tenha nascido no Oriente, foi na Europa e na América que a pipa entrou na vida dos cientistas, seja como objeto de estudo ou meio de transporte para levar algum instrumento para cima. Seu vôo não é dos mais complicados, explica- se pelos princípios elementares da aerodinâmica. A força que a mantém no ar é produzida pela resistência ao vento de sua superfície, também chamada de vela.

Quando o vento bate na vela, que pode ser de papel, tecido ou plástico, a tendência é que a pipa seja deslocada para trás, o que não acontece porque está presa pela linha. Se estivesse perpendicular ao solo, porém, não sairia do chão. O que faz a pipa subir é sua inclinação, o ângulo de 25 a 30 graus em relação ao eixo perpendicular mantido pelo estirante (o conjunto de linhas que prende a armação à linha segurada pelo empinador). “Estando assim inclinada, o vento escoa para baixo; por reação, a pipa se desloca para cima”, explica o eolista Silvio Voce, um ex-técnico de aeronáutica que há doze anos trocou aviões por pipas. É o vôo de baixa velocidade, estudado por alguns engenheiros da NASA, que deu origem à asa delta e aos pára-quedas das naves espaciais Apolo no retorno à Terra.

Houve quem tentasse, a exemplo dos antigos chineses, subir aos céus a bordo das pipas. Foi o caso do oficial britânico B.F.S. Baden-Powell, irmão do fundador do escotismo. Ele insistiu até conseguir se alçar a 11 metros do chão, em 1894, a bordo de uma pipa gigante feita de tela de algodão e armação de bambu. Não parou por aí. Um ano mais tarde, criou uma verdadeira máquina voadora: o Levitor, uma estrutura de quatro a sete pequenas pipas presas umas às outras, capaz de suspender seu inventor sob ventos fortes até uma altura de 30 metros. Em matéria de sair do chão, o brasileiro Alberto Santos-Dumont foi literalmente mais longe ao voar com seu 14-bis, um modelito sofisticadíssimo de pipa dotada de motor. Outros cientistas e inventores preferiram manter os pés na terra e usar as pipas como meio de transporte não para si mesmos, mas para alguns instrumentos. Já no século XVIII, na Europa, usava-se uma série de pipas presas numa mesma linha, cada uma carregando um termômetro, para determinar as variações de temperatura nas diferentes altitudes.

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Em suas experiências com a então recém-descoberta eletricidade, em 1752, Benjamin Franklin empinou uma pipa com uma chave na linha, num dia de tempestade, e inventou o pára-raios. As grandes pipas de Baden-Poweil viraram moda no início deste século entre gente como o físico italiano Guglielmo Marconi, o inventor do telégrafo sem fio. O problema de Marconi era a forma redonda da Terra, o que impedia transmissões a longas distâncias, já que as ondas de rádio viajam em linha reta. Em dezembro de 1901, Marconi usou uma pipa igual ao Levitor de Baden-Powell para içar uma antena receptora a 120 metros de altura, o que permitiu testar a primeira ligação transatlântica de telégrafo sem fio. Ao mesmo tempo em que tomava parte no desenvolvimento da ciência e da aeronáutica, também a pipa evoluía.

Hoje existe uma convivência pacífica entre as artesanais pipas chinesas, feitas de papel e bambu, e as moderníssimas pipas de duplo comando, construídas com varetas de fibra de carbono e velas de náilon resinado, o mesmo tecido dos balões. Nada impede, também, que se faça uma pipa de jornal e sem armação, as chamadas capuchetas ou sleds. E nem sempre as pipas têm superfície plana. Existem também as celulares, que possuem vários lados, como uma caixa; seu vôo é mais estável porque o vento escoa também pelos lados da pipa, como em um leme na cauda de um avião.Muito parecida com a asa-delta, as pipas de duplo comando nasceram das cabeças pensantes da NASA. Sustentadas pelo empinador não por uma linha, mas por duas — daí o nome —, elas são construídas com materiais tão caros como a fibra de carbono e o náilon porque estes são leves e muito resistentes. Só assim conseguem agüentar os fortes ventos das praias da Flórida, o lugar preferido dos eolistas americanos. Sua geometria triangular oferece tamanha resistência ao vento que sua inclinação ideal é 45 graus, ou seja, ela voa bem mais “deitada” do que as colegas monocomandadas.

Embora mais inclinada, a pipa de duplo comando atinge velocidade de vôo muito maior, e o fato de o empinador segurá-la com as duas mãos permite a execução de manobras radicais. Foi para isso mesmo que foram criadas — um hobby de adultos, em que é preciso força para segurar, destreza e habilidade para manobrar e dinheiro para manter, já que esse tipo de pipa chega a custar por volta de 200 dólares, nos Estados Unidos. Uma pipa dessas se empina até debaixo da água, literalmente. Nesse caso, como não há vento para fazê-la subir, o empinador-mergulhador é que se desloca para trás.

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Hobby para muitos muitos a pipa é profissão para os chamados eolistas, gente que passa a vida pesquisando, divulgando e empinando pipas. Silvio Voce é um dos membros dessa restrita confraria, a Associação Mundial de Eolismo, e passa seus dias viajando pelo Brasil dando cursos e demonstrações, quando ensina professores de escolas primárias que depois ensinarão seus alunos. Numa pipa, é possível ter noções de geometria, física e matemática. Como ninguém tem varetas de fibra de carbono nem náilon lá pelas cidades pequenas do interior do Brasil, Silvio tem que se adaptar às condições locais. “Fazemos pipas até de saco de lixo e jornais velhos”, conta.O tamanho do país resulta num problema de vocabulário. Em Rio Branco, no Acre, Silvio diria “vamos pegar uma talas para fazer uma pepeta com um bom compasso”; no Rio Grande do Sul, teria que transformar a frase em algo como “quando a pandorga estiver pronta, colocamos o zil”. Tudo isso para dizer, em bom paulistano, “vamos pegar umas varetas para fazer uma pipa com um bom estirante”, ou “quando a pipa estiver pronta, colocamos o estirante”.

É preciso saber também em que terras se vai pisar antes de colocar as pipas na bagagem. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, os ventos costumam ser fracos e médios. No Nordeste, porém, a ventania é constante, assim como em Pelotas, no Rio Grande do Sul, há ventos fortíssimos em janeiro. Tentar pôr no ar uma pipa frágil com um vento desses é fracasso certo de uma demonstração. Além de ensinar crianças, Silvio Voce se empenha também em mostrar aos adultos o lado eliminador de tensões da brincadeira, o que chama de pipaterapia. “É uma forma de jogar as neuras ao vento”, brinca, com a autoridade de quem aparenta bem menos que os seus 38 anos.

Para saber mais:

Brinquedos de gente grande

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(SUPER número 8, ano 7)

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