Os bastidores da assembleia que criou o Estado de Israel
Em 1947, a ONU decidiu pela divisão da Palestina. Saiba como foi o processo, com pressões políticas a favor e contra - e o papel do brasileiro Oswaldo Aranha na decisão.
“Nossa distante rua à beira de Kerem Avraham, no norte de Jerusalém, explodiu em um primeiro grito aterrorizante. […] Meu pai e minha mãe estavam ali abraçados como duas crianças perdidas na floresta, como eu nunca os tinha visto antes ou depois, e por um momento entrei no abraço deles e então voltei aos ombros de meu pai. Meu pai, sempre muito culto e educado, gritava no mais alto de sua voz, não palavras claras ou slogans sionistas, nem gritos de alegria, mas um grito longo e nu que parecia preceder a invenção das palavras.”
As linhas acima foram extraídas do livro De Amor e de Trevas, escrito pelo israelense Amos Óz. São suas lembranças da noite de 29 de novembro de 1947.
Já era quase meia-noite em Jerusalém quando uma assembleia geral extraordinária da ONU decidiu pela divisão da Palestina para a criação de dois Estados, um árabe e outro judeu.
O autor, então uma criança de apenas 8 anos, foi um dos milhões que acompanharam pelo rádio, mundo afora, a transmissão daquele pleito histórico.
A votação acontecia em Nova York e era o ápice de um processo iniciado havia meses, com árabes e judeus trabalhando intensamente nos bastidores, em busca de apoio para suas respectivas causas. Uma semana antes da assembleia, parecia que a história não acabaria bem para a comunidade judaica.
O grupo contrário à partilha, liderado por delegados de Arábia Saudita, Síria, Iraque, Líbano e Egito, ainda era majoritário. Do outro lado, porém, havia figuras de influência no cenário internacional mexendo os pauzinhos em prol dos judeus.
Gente como Nahum Goldmann (1895-1982), um dos mais destacados líderes do movimento sionista; Abba Eban (1915-2002), oficial de ligação com o Comitê Especial das Nações Unidas para a Palestina; e David Ben-Gurion (1886-1973), que mais tarde se transformaria no primeiro chefe de governo do Estado de Israel.
Os judeus se empenhavam na aprovação da partilha desde fevereiro daquele ano, quando a Grã-Bretanha requisitou à ONU uma solução para o problema da Palestina, que estava sob seu controle desde 1920 e, àquela altura, encontrava-se mergulhada em conflitos envolvendo judeus e palestinos (leia mais nesta reportagem).
Em maio, a organização criou um comitê especial para avaliar a questão, com 11 diplomatas de países que, em tese, eram neutros, sem qualquer ligação com os interesses em jogo. Eles seriam os responsáveis por analisar a situação e propor um acordo. O comitê partiu para Jerusalém com o objetivo de tomar depoimentos dos dois lados. Só que os árabes optaram por boicotar a iniciativa e se calaram, abrindo espaço para que os judeus exercessem maior influência sobre os representantes da ONU.
Em setembro de 1947, o relatório final do comitê propôs a divisão da Palestina em dois Estados. Para aprová-la, seriam necessários dois terços dos votos de 57 delegados que se reuniriam numa assembleia marcada para novembro.
Nas semanas seguintes, o mundo assistiu a árabes e judeus correndo contra o tempo, na tentativa de sensibilizar o maior número possível de votantes. Até que novembro chegou e o tempo se esgotou.
“O que aconteceu na semana da votação foi uma aula de ação política”, lembra Yousouf Ghanem, da delegação saudita, numa entrevista concedida nos anos 1960 e reproduzida no documentário UN Partition Plan (“Plano de Partilha da ONU”), disponível na internet. “Eram promessas, persuasões e propaganda enfiada goela abaixo dos delegados, na tentativa de mudar votos em cima da hora.”
O pleito, agendado para 26 de novembro (véspera do feriado de Ação de Graças), teve início com os judeus sob pressão. No dia anterior, uma votação preliminar havia apontado 25 votos a favor da partilha, 13 contra e 17 abstenções. Era pouco, um placar apertado demais. Eles precisariam de mais tempo se quisessem ampliar o número de votos favoráveis para não correr riscos.
Em entrevista concedida à TV na década de 1970, também disponível na internet, o líder sionista Nahum Goldmann relembra algumas estratégias adotadas por ele para retardar o avanço dos trabalhos. “Comecei a pedir aos colegas que alongassem seus discursos o máximo possível, para que não houvesse tempo de encerrar a votação naquele dia”, conta Goldmann. “E dizia: recitem trechos da Bíblia se for preciso.”
Força-tarefa
Já eram mais de seis horas da tarde quando entrou em cena um personagem decisivo: o diplomata brasileiro Oswaldo Aranha (1894-1960), que presidia a assembleia. Homem experiente nas relações internacionais, que já tinha sido ministro de Estado e embaixador em Washington, Aranha era claramente favorável à divisão da Palestina e à criação de um Estado judeu.
Diante das circunstâncias, ele decidiu adiar a votação para depois do feriado. Um representante da França pediu outras 24 horas de recesso, prontamente aprovadas pelo brasileiro. Assim, os judeus conseguiram dois dias extras – e fundamentais – para alcançar seu objetivo.
Em suas memórias, o sionista Abba Eban chegou a escrever sobre Aranha, referindo-se a ele como “um homem de disposição apaixonada e romântica, religiosamente enlevado pela existência de um Estado judaico”.
Para os judeus, tratava-se de um aliado numa posição estratégica. Já os árabes o enxergavam como tendencioso. E, para a plateia, o brasileiro se dizia independente. “Como presidente,” ele escreveu, “cabia-me a função ingrata de tratar, com imparcialidade e frieza, de um problema impregnado de paixão e sofrimento”.
Assim que o pleito foi adiado, uma força-tarefa entrou em ação. A Agência Judaica, que atuava como autoridade para a comunidade de judeus estabelecida na Palestina, trabalhou incessantemente, disparando ligações e telegramas que cruzaram o mundo.
Votos contrários à divisão da Palestina, como o da França, do Haiti, das Filipinas e da Libéria, acabaram sendo revertidos mediante uma forte pressão exercida junto a políticos importantes desses países.
Quando finalmente chegou a hora da verdade, os judeus pareciam ter conseguido virar o jogo. Aí, foi a vez dos árabes pedirem um adiamento. Mas Oswaldo Aranha recusou o pedido e abriu a votação dizendo as seguintes palavras: “Aqueles em favor dirão sim; aqueles contra dirão não; e aqueles que se abstêm sempre sabem o que dizer”.
Na sequência, 13 países votaram contra a partilha. O Reino Unido, responsável pela administração da Palestina até aquele momento, preferiu se abster, assim como outras nove nações. E 33 votos favoráveis foram registrados, entre eles o do Brasil.
A Tailândia foi a única ausente na votação, que não durou mais do que três minutos. A partilha do território palestino estava oficialmente aprovada pela ONU. Abria-se, assim, o caminho para a invenção de um novo país: o Estado de Israel.
“Na tarde de 3 de outubro de 1930, um homem alto, bonito, 36 anos e pai de quatro filhos, voluntariamente e por motivos de honra pessoal, comprometeu-se a uma missão perigosa: liderou um grupo de homens armados, que incluía três de seus irmãos, em um ataque à sede da guarnição federal em Porto Alegre.”
É assim que o biógrafo americano Stanley Hilton descreve, no livro Oswaldo Aranha – Uma Biografia (Editora Objetiva), a participação do advogado e diplomata brasileiro na Revolução de 1930, movimento que pôs fim à República Velha e levou Getúlio Vargas ao poder.
Para o historiador Pedro Corrêa do Lago, neto de Aranha, esse foi apenas o primeiro de três momentos extraordinários na vida de seu avô. “Ele também teve papel decisivo [como ministro] durante a 2ª Guerra Mundial, ao levar o Brasil para o lado dos Aliados, e na assembleia extraordinária da ONU.” Corrêa do Lago é autor de Oswaldo Aranha – Uma Fotobiografia (Editora Capivara), que reúne imagens históricas desses e de outros episódios marcantes na carreira do avô.
Uma trajetória iniciada nos anos 1920, quando ocupou os cargos de intendente de Alegrete (sua cidade natal), deputado federal e secretário de Estado. Aranha foi Ministro da Justiça, da Fazenda e das Relações Exteriores de Vargas, além de embaixador em Washington. Em 1947, o então presidente Eurico Gaspar Dutra lhe designou o assento do Brasil no Conselho de Segurança da ONU.
Por sua atuação como presidente da assembleia extraordinária que aprovou a partilha da Palestina, acabou indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 1948 – um ano sem vencedores por causa da morte de Mahatma Gandhi, que também concorria.