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Os piolhos que salvaram judeus

O biólogo polonês Rudolf Weigl criava insetos para combater o tifo, doença que matou milhões até metade do século 20. E arriscou a vida para imunizar judeus com a vacina que desenvolvia para os nazistas

Por Alexandre de Santi, Jones Rossi e Murilo Basso, editado por Tiago Jokura
Atualizado em 31 ago 2020, 15h11 - Publicado em 24 abr 2018, 17h16
Ao se infectar acidentalmente no laboratório, Rudolf Weigl não se desesperou. Em vez disso, alimentou piolhos com seu sangue para provar que eles poderiam ser matéria-prima de uma vacina antitifo. (Zansky/Superinteressante)

O polonês Rudolf Weigl era um sujeito diferentão. No início do século 20, o biólogo fazia o trajeto de casa até seu laboratório, em Lviv, cantando músicas obscenas em alemão. Às vezes, se o trabalho estava tedioso, pegava o filho e rumava para o bar. Isso não quer dizer que trabalhasse pouco. Não era raro que virasse as noites na companhia de piolhos.

Weigl era especialista em tifo, nome genérico para doenças causadas por bactérias diferentes. A mais famosa delas, o tifo epidêmico, está associada a situações em que a sociedade está em colapso – como acontece nas guerras –, com pouquíssimas condições de higiene. Algo incomum hoje, mas não em soldados entrincheirados por semanas sem banho, vivendo com uma única muda de roupa, ou em judeus confinados em guetos sem energia elétrica, gás e água para as necessidades básicas.

Napoleão Bonaparte chegou a dizer que foi derrotado pelo General Tifo. Quando marchou com meio milhão de soldados para invadir Moscou e voltou com apenas 3 mil, estima-se que pelo menos 20% das mortes aconteceram pela doença. No fim da 1ª Guerra Mundial, uma epidemia se alastrou desde a Sibéria até a Polônia, infectando mais de 20 milhões de pessoas e matando 3 milhões.

A Alemanha se deu melhor ao manter seus prisioneiros e oficiais limpinhos na 1ª Guerra. Das 33 mil mortes de militares alemães por doenças infecciosas, apenas 1,5 mil foram por tifo. Os germânicos se aproveitaram da descoberta, em 1915, de que o piolho do corpo (Pediculus humanus humanus) – não confundir com o piolho da cabeça (Pediculus humanus capitis) – era o vetor da doença. Obra do cientista tcheco Stanislau von Prowazek e do brasileiro Henrique da Rocha Lima, um dos fundadores da USP.

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Prowazek, porém, morreu de tifo três semanas após publicar o artigo em que revela o papel do piolho na transmissão, mesmo que manipulasse os insetos com luva, máscara e jaleco. Lima descobriu e batizou a bactéria causadora do tifo (Rickettsia prowazekii) em homenagem a Prowazek e ao americano Howard Ricketts, morto no México em 1910, também pesquisando a doença.

A descoberta abriu portas para a fabricação de uma vacina, mas havia um problema: apenas humanos e piolhos eram hospedeiros estáveis do tifo. E, mesmo para os padrões éticos da época, infectar humanos propositalmente estava fora de questão. Só que ninguém sabia como cultivar em laboratório piolhos infectados em quantidade suficiente para produzir as bactérias que, depois de mortas, seriam a matéria-prima das vacinas.

30 mil vacinas contra tifo foram contrabandeadas por Weigl para judeus confinados em guetos. (Zansky/Superinteressante)

Dando o sangue pela causa

Foi Rudolf Weigl quem encontrou a solução. “Se não conseguimos fazer os piolhos comerem os germes, vamos enfiá-los na bunda deles”, sugeriu o biólogo. Pela primeira vez, insetos foram usados como cobaias. E assim começava a nascer a vacina salvadora.

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A proximidade com os insetos rendeu a ele, em 1917, uma infecção por tifo, ao se ferir com uma placa de Petri contendo a Rickettsia. O que poderia ser uma tragédia, já que 20% dos infectados morrem, virou uma oportunidade de ouro.

Weigl pediu para sua mulher, Zofia, enfileirar caixinhas do tamanho de maços de cigarro e uni-las com uma tira elástica. Encheu as caixas de piolhos e as prendeu em seu corpo, para que o picassem e fossem infectados – diferentemente de outros insetos que transmitem doenças, o piolho adoece pelo contato com o Rickettsia. Após alguns dias, os piolhos alimentados com o sangue de Weigl adoeceram e morreram. O biólogo, então, publicou um artigo relatando seu experimento revolucionário, que foi bem recebido internacionalmente. Pela primeira vez, alguém mostrou que era possível criar uma colônia estável de Rickettsia sem usar pacientes humanos.

Somente em 1928, após milhares de testes, a vacina de Weigl foi aplicada em humanos. Diante dos resultados positivos, pesquisadores de todo o mundo viajavam para Lviv a fim de conhecer o laboratório de Weigl. O sucesso da vacina exigiu mais funcionários e um ritmo quase industrial de produção. As larvas dos piolhos eram colocadas para sugar sangue de funcionários duas vezes por dia, durante dez dias. Quando já eram piolhos parrudos, recebiam no reto uma injeção contendo a bactéria Rickettsia prowazekii. Os piolhos infectados eram, então, novamente alimentados com sangue humano por mais cinco dias – somente por funcionários imunizados ou que já haviam tido a doença – até ficarem vermelhinhos – sinal de que podiam ter seus intestinos, agora cheios de bactérias, retirados. As entranhas do inseto eram, então, esmagadas, centrifugadas e diluídas em uma solução que matava as bactérias – que se tornavam incapazes de infectar alguém, mas eram suficientes para estimular o sistema imunológico contra o tifo.

No final de 1933, havia 50 pessoas trabalhando como “comida de inseto” no laboratório. Coçar-se era proibido porque poderia infeccionar a pele ou matar os insetos antes do tempo. Mas não era fácil ser comida de piolho. “A primeira sensação é de ferro em brasa, quando 500 ou mil insetos te picam. E, como você não quer que isso se repita, você tenta não se mexer, porque, se a caixa muda de lugar, os piolhos mordem de novo”, declarou Waclaw Szylbaski, assistente de Weigl.

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Sob a ocupação nazista, iniciada em 1939, funcionários dispostos a sofrer essa tortura não faltavam. O laboratório de Weigl passou a abrigar escritores, geógrafos, matemáticos e intelectuais que queriam salvar a pele e ganhar alguns trocados. Em tempos de guerra, quase não havia empregos em Lviv e os rendimentos mensais não passavam de 100 zlótis (moeda polonesa), suficiente para comprar 9 kg de açúcar. Ao fazer de seu laboratório um local de refúgio, Weigl salvou muitas pessoas da deportação e da morte. Metade dos dissecadores de piolhos eram da resistência polonesa e estima-se que até 3 mil funcionários tenham passado por ali durante a 2ª Guerra.

Como se não bastasse encobertar inimigos dos alemães, Weigl e seus assistentes arriscaram ainda mais a vida: sob comando do governo nazista, passaram a abrigar judeus no laboratório e a contrabandear vacinas para os guetos. No mais conhecido deles, em Varsóvia, mais de 1 milhão de judeus viviam confinados em um espaço tão pequeno que havia 110 mil pessoas por km2 – na prática, isso significava sete pessoas dividindo o mesmo cômodo.

Nesse ambiente, o tifo prosperou. Henryk Szpilman escreveu em seu livro de memórias O Pianista, adaptado para o cinema em 2002, que os piolhos “caíam do teto, aglomeravam-se sobre as calçadas e escadas”. No inverno, sob temperaturas que chegavam a -20 ºC, os pacientes eram escondidos da Gestapo, a polícia secreta alemã, atrás de passagens falsas, em porões e em sótãos. O problema é que entre as complicações causadas pelo tifo estão surtos psicóticos, alucinações, delírios e, claro, gritos imprevisíveis, que denunciavam a posição de alguns infectados para os agentes alemães.

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Weigl contrabandeou, em 18 meses, pelo menos 30 mil vacinas para o gueto de Varsóvia. Além disso, as vacinas enviadas aos alemães eram enfraquecidas, inferiores às desviadas para poloneses e judeus. Os funcionários enfraqueciam os lotes assim: em vez de dissecar os 1,6 mil piolhos diários, baixavam esse número para 1,2 mil. O recipiente que armazenava os intestinos era aquecido e o conteúdo se expandia. Aos olhos pouco treinados dos alemães, parecia que estavam recebendo o combinado.

Outra forma de sabotagem era a coleta de fezes dos piolhos para infectar trens exclusivos de oficiais nazistas. Combatentes poloneses colocavam as fezes dentro dos encostos para a cabeça. Nunca ficou claro se isso – ou mesmo o enfraquecimento das vacinas destinadas aos nazistas – deu algum resultado.

Enquanto isso, o biólogo Ludwig Fleck, que trabalhou para Weigl entre 1921 e 1923 e inventou sua própria vacina, também despertou interesse dos nazistas. Fleck foi enviado para o campo de concentração de Auschwitz em 1943, com mulher, filho e parte de sua equipe. Sua missão era produzir a vacina para o Reich, em um laboratório no mesmo andar do escritório de torturas e mutilações de Joseph Mengele. Em dezembro do mesmo ano, Fleck foi transferido para o campo de concentração Buchenwald. Lá continuou o que fazia em Auschwitz: uma série de testes inúteis que não resultaram em uma única vacina. Seus chefes nunca descobriram a farsa.

Ao mesmo tempo em que os nazistas se desesperavam pela vacina, havia uma narrativa, apoiada por Hitler, que rotulava a imunização como ciência judaica destinada a envenenar o puro sangue ariano. Isso não impedia que eles contratassem gigantes da indústria, como a IG Farben – que deu origem às atuais Basf, Bayer e Agfa –, para produzir vacinas alternativas à de Weigl.

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Embora a vacina da IG Farben tenha falhado, a empresa vendia o melhor produto para exterminar os piolhos. Desenvolvido pela Desgesch, outra companhia química controlada pela IG Farben, o Zyklon B era um produto terrível contra os insetos – contra os insetos e os humanos. Tanto que foi o veneno utilizado para executar prisioneiros nas câmaras de gás nazistas.

10 mil soldados alemães foram salvos do tifo pelas vacinas de Weigl – o que acabou rendendo ao biólogo a fama de colaborar com o regime nazista. (Zansky/Superinteressante)

Imagem manchada

Ao final da guerra, Weigl havia vacinado mais de 50 mil pessoas. O microbiólogo nazista Hermann Eyer, seu chefe durante a ocupação alemã, foi liberado pelas forças aliadas e coordenou o departamento de microbiologia da Universidade de Bonn, na Alemanha. Eyer estimava que as vacinas produzidas por Weigl, mesmo enfraquecidas, tenham salvado a vida de 10 mil soldados alemães. E isso se tornou a grande pedra no sapato de Weigl no pós-guerra. Sua imagem na Polônia sob domínio soviético era a de colaborador dos nazistas.

Ele recebeu oferta para ser professor universitário em Cracóvia e para produzir sua vacina em Moscou, onde teria apartamento, carro à disposição e um bom salário. Declinou das duas ofertas. E começou a cair em desgraça quando um ex-aluno, Zdzislaw Przybylkiewicz, iniciou uma campanha de desconstrução de sua imagem, motivada pelo rancor de não ter tido seu trabalho de conclusão de curso aprovado por Weigl.

Influente no meio acadêmico e entre os poderosos, mesmo sendo um professor e cientista medíocre, Przybylkiewicz acusou o antigo mestre de colaborar com os nazistas usando uma foto de Weigl com seu antigo chefe. Nela, havia uma dedicatória: “Para meu jovem amigo Hermann Eyer”. A hipocrisia do acusador não poderia ser maior. Nenhum cientista polonês trabalhou mais próximo de Eyer do que o próprio Przybylkiewicz, que chegou a assinar um artigo científico sobre tifo junto com o oficial nazista.

A partir daí, Weigl caiu no esquecimento, até morrer em 11 de agosto de 1957, vítima de um ataque cardíaco, em Zakopane. No enterro em Cracóvia, seu amigo Henryk Mosing disse: “Rudolf Stefan Weigl transformou o piolho, símbolo de sujeira, miséria e aversão, em um objeto útil de investigação científica e em uma ferramenta destinada a salvar vidas”.

Um ex-funcionário de seu laboratório escreveu em 1994 que “os intelectuais poloneses sabem quem foi Schindler, mas não fazem ideia de quem foi Weigl”. Piolhos, como se sabe, dão pouco ibope.

Fontes: The Fantastic Laboratory of Dr. Weigl: How Two Brave Scientists Battled Typhus and Sabotaged the Nazis, de Arthur Allen; Killer Germs: Microbes and Diseases That Threaten Humanity, de Barry Zimmerman e David Zimmerman; Alexandre Naime, infectologista da Faculdade de Medicina de Botucatu (Unesp)

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