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Os primeiros santos da história

Como as punições hediondas contra os primeiros cristãos deram origem à mitologia dos santos na Igreja Católica.

Por Alexandre Carvalho dos Santos
Atualizado em 5 abr 2023, 16h00 - Publicado em 19 jul 2018, 15h01

“It’s hard to be a saint in the City” (“É difícil ser um santo na cidade grande”), cantava Bruce Springsteen em seu álbum de estreia, comentando o ambiente profano da Nova York dos anos 1970, com seus cafetões, apostadores e luxúria. “Quanto mimimi”, responderiam homens e mulheres de 2 mil anos atrás, que tiveram um bocadinho a mais de provações que o cantor americano para viver a experiência da santidade.

Pois dureza mesmo era ser um santo no cristianismo primitivo, de raiz, aquele que se desenvolveu nos primeiros séculos depois de Cristo. O próprio ato de se assumir cristão na época já era uma decisão com mau prognóstico: implicava o heroísmo dos que se apresentam dispostos a morrer.

Diferentemente do que se vê hoje, quando os seguidores de Cristo estão na dianteira entre as religiões do mundo – com 2,2 bilhões de pessoas contra 1,6 bilhão de muçulmanos –, naqueles tempos eles formavam uma espécie de contracultura em oposição aos valores do Império Romano. Aos olhos das autoridades, a recusa dessa minoria em demonstrar devoção por deuses como Júpiter, Minerva e Apolo parecia coisa de traidor do Estado, alguém que contrariava a virtude cívica.

Por isso, os que tinham fé naquele judeu que morreu na cruz não eram exatamente bem-vindos. Mas só começaram a ser perseguidos mesmo quando Nero lhes transferiu a responsabilidade pelo grande incêndio de Roma (64 d.C.) – que, na verdade, levava a assinatura do próprio imperador. Isso gerou uma onda de má vontade generalizada contra a nova seita, e todas as culpas imagináveis começaram a pairar sobre os malfadados pioneiros da cristandade. Como disse o autor cartaginês Tertuliano (160 – 220): “Se o Tibre transbordou, se o Nilo permaneceu em seu leito, se o céu tem estado calmo, ou a terra em movimento, se a morte andou devastando, ou a fome trouxe seus tormentos, o grito imediato é ‘cristãos aos leões!’”.

Mesmo com tudo jogando contra, essa onda cristã – que começara em Jerusalém, com os apóstolos de Jesus – logo se espalhou na forma de comunidades da parte oriental do império, na Grécia e nas atuais Turquia e Síria, até chegar à própria Roma. O avanço rápido é creditado a Paulo de Tarso (futuro São Paulo), um perseguidor implacável de cristãos que teria presenciado uma epifania e se convertido, tornando-se não apenas o maior relações públicas da nova seita, como seu principal gestor.

“Ele articulava ideias complexas e lidava bem com as palavras”, explica o historiador Geoffrey Blainey, professor da Universidade Harvard e autor de Uma Breve História do Cristianismo. “Estava disposto a viajar, pagando as despesas, para locais distantes aonde a mensagem cristã tivesse chegado e pudesse espalhar-se.” Quando acabou preso por incitar essas ideias subversivas, Paulo encarou a morte com a altivez que se espera dos santos. Na véspera de sua execução, teria dito: “Lutei o bom combate, terminei a carreira, mantive a fé”.

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Entre o primeiro século da cristandade e o Édito de Tolerância (311 d.C.), do imperador Constantino, os maus-tratos aos cristãos variaram em quantidade e intensidade. Foram esporádicos e localizados até o período conhecido como o das Grandes Perseguições, entre os séculos 3 e 4 – quando a repressão foi sistematizada e aplicada em todo o Império Romano, nos governos de Valeriano e Diocleciano. Não que antes já não houvesse ferocidade no tratamento. As torturas reservadas aos primeiros seguidores de Cristo fariam Guantánamo parecer uma clínica de acupuntura.

Um exemplo: Inácio de Antioquia (35 – 108), importante teólogo do cristianismo primitivo, foi o primeiro cristão devorado por leões no Coliseu de Roma – um circo sádico dos horrores, que mesclava punição bárbara com espetáculo para a plateia. Crucificação, claro, também fazia parte do portfólio; não parou em Jesus de Nazaré. São Pedro teria morrido numa cruz de cabeça para baixo, e Santo André, também apóstolo, numa cruz em formato de “X”.

Já o diácono Lourenço de Huesca (225 – 258) foi condenado a virar churrasco. Mesmo. Os algozes construíram uma espécie de grelha disposta em cima de brasas e colocaram o cristão ali, para torrar até a morte. Diz a lenda que São Lourenço teria encarado o martírio com bom humor, dizendo aos seus carrascos: “Este lado do meu corpo já está bem assado, podem me virar agora”.

Imagem de Santo Antão, um homem barbudo com um capuz marrom. Ele segura um livro enquanto olha para cima
Santo Antão: sua vida no deserto, onde, de acordo com a tradição cristão, enfrentou o Diabo, foi uma inspiração para outros eremitas (Reprodução/Superinteressante)

Rituais secretos

O que os romanos não suspeitavam é que essa mesma violência abriria caminho para que os cristãos tivessem seus primeiros ídolos além de Jesus. “Sanguis Martyrum est semen Ecclesia”, diria Tertuliano – “o sangue dos mártires é a semente da Igreja”. Tantos assassinatos por intolerância religiosa fizeram com que as comunidades cristãs passassem a descrever em texto as circunstâncias daquelas mortes.

E a ideia era enviar esses relatos para que fossem lidos em voz alta – pelos raros letrados – em outros grupos de cristãos. Era uma forma de dar a esses mortos status de heróis – uma inspiração que produzia comprometimento. O Martírio de Policarpo, um relato do século 2 que tratava da morte de um bispo, já vinha com reflexões teológicas, fazendo uma analogia entre o sacrifício do personagem e o de Jesus, o modelo de todo comportamento justo. O passo seguinte seria a veneração daqueles que seguiram o exemplo do Cordeiro de Deus.

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Um costume que logo ficou estabelecido foi dar atenção especial aos restos mortais dos mártires – quando sobrava alguma coisa dos seus corpos. Enterravam em locais que pudessem servir de ponto de encontro, para uma celebração anual do martírio dessas pessoas. Eram cemitérios secretos ou, quando em Roma, catacumbas – galerias subterrâneas, inacessíveis ao olhar dos perseguidores. Quanto mais os romanos torturavam e matavam cristãos, mais o calendário comemorativo aumentava – e eram confraternizações repletas de rituais.

“As cerimônias de veneração nos túmulos dos mártires incluíam leituras, salmos e orações, e, possivelmente, a celebração da Eucaristia [aquele momento da missa em que o padre oferece a óstia ao fiel, representando o corpo de Cristo]”, aponta o teólogo Lawrence S. Cunningham, professor da Universidade de Notre Dame (EUA). Ao término do período das perseguições, esses ritos de veneração aos mártires já estavam consolidados entre as comunidades cristãs. Igrejas eram construídas em cima do pedaço de chão em que seus heróis estavam enterrados, locais que passaram a ser vistos como terra sagrada.

Quando o cristianismo, finalmente, se tornou a religião número um do Império Romano, no século 4, as preces e as liturgias junto aos túmulos dos mártires já eram vistas como uma boa estratégia para se conseguir uma ajudinha dos céus – pedir auxílio aos mortos começava a cair no gosto da cristandade. Aqueles sacrificados pelo testemunho da fé, imitações próximas da virtude de Jesus, seriam mais do que exemplos de vida e de morte. Eram intermediadores do acesso ao poder de Deus. Supercristãos.

Pintura de São Simeão, ajoelhado em cima de uma mesa, junto a uma cruz.
São Simeão, um eremita radical: segundo a lenda, viveu 37 anos no alto de uma coluna, debaixo de sol e chuva (Reprodução/Superinteressante)

O paradoxo eremita

Por volta do ano 320, um número crescente de cristãos de regiões da Síria ou das proximidades do Rio Nilo deixavam seus povos para viver isolados – nas florestas ou no deserto, em cavernas ou cabanas simples. Aí passavam a se alimentar de vegetais crus ou de um pão doado por um admirador condoído – desde que o isolamento não fosse a quilômetros de qualquer possível doador – e viviam na mais completa penúria. As horas de seus dias se resumiam à prece, à contemplação e à tênue subsistência.

Esses indivíduos, igualmente tocados pela fé cristã que movia os mártires, abdicavam dos objetivos comuns dos homens – paixões, família, a garantia de um prato quente à mesa, um banho –, para que nada os distraísse da prática religiosa. Ou mais do que isso: eles queriam atingir a perfeição espiritual. Uma busca que não passou despercebida: os eremitas começaram a ser vistos como seres iluminados, prováveis fontes de sabedoria profunda – ou capazes de uma cura milagrosa. Passaram à condição de celebridades, o oposto do que pretendiam.

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No Egito, um expoente do eremitismo cristão – dos chamados “Padres do Deserto” – foi Antão, o Anacoreta, que teve sua história contada em 360 pelo teólogo Atanásio de Alexandria. Essa biografia, Vida de Santo Antão, tornou-se um clássico da literatura cristã, e teve o impacto de um mar se abrindo para um segmento da cristandade, inspirando uma produção volumosa de outros escritos – muito populares, inclusive – sobre a santidade dos eremitas, elevados a modelos da fé cristã.

E havia cada eremita esquisito… São João Crisóstomo teria passado anos rastejando como um animal, para expiar seus pecados. São Simeão construiu uma coluna de pedra da altura de um prédio de seis andares, onde teria vivido exposto às intempéries por 37 anos. E lá de cima pregava para uma multidão de admiradores.

Outros decidiram optar por um isolamento light, excluindo-se da vida social, mas morando em comunidades de monges e freiras – ainda que em condições espartanas, em silêncio e com o mínimo contato com outras pessoas. Diferentemente do “cada um por si” dos eremitas hardcore, esses viviam em estruturas organizadas, seguras contra o ataque de feras ou de bandidos, e obedecendo a uma hierarquia, que tinha em seu topo a figura do abade. Eram os primeiros mosteiros da história.

Mas será que a veneração aos eremitas fazia sentido? Afinal, o que a experiência do ermitão teria a ver com os exemplos de Cristo? A despeito de seus 40 dias em jejum no deserto, Jesus preferiu passar todo o resto de sua existência conhecida bem acompanhado. Dedicava-se a ensinar e a discutir, o que também exigia gente em volta. E não há registro de que tenha defendido a mortificação em vida – pelo contrário, transformou água em vinho. Jesus queria levar a palavra de Deus aos povos, e seria completamente inviável fazê-lo escondido numa caverna a quilômetros do ser humano mais próximo. Há um outro ponto de vista, porém.

Assim como os primeiros indivíduos sagrados do cristianismo, que suportaram a tortura romana para confirmar sua fé, o asceta, em suas privações extremas, era ele também um mártir. E de um tipo muito especial: alguém que não experimentou o martírio apenas na iminência da morte, mas em todos os dias de sua vida. Ponto para os ermitões.

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Foram esses homens e mulheres, os primeiros santos da Igreja Católica. Séculos antes da existência de uma canonização formal, o culto a eles já era indissociável das práticas cristãs. Brotou com o martírio de ex-soldados romanos convertidos e de judeus arrebatados pela história de Jesus, e encorpou com os relatos – muitas vezes extravagantes – dos eremitas. Uma adoração que a Igreja viria a ter o privilégio de administrar.

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