O primeiro robô jogador de xadrez
A máquina, que era capaz de enfrentar os humanos de igual para igual, foi sensação na Europa do século 18. Mas havia um porém: não era uma máquina.
Reportagem originalmente publicada pela Super em 2002
Um acontecimento extraordinário sucedeu num dia de outono de 1769 na corte de Maria Teresa, em Viena. A soberana do Império Habsburgo presenciou algo que a deixou de peruca em pé. O barão Wolfgang von Kempelen, homem de sua confiança, que anos antes se destacara como conselheiro áulico na Hungria e na Transilvânia, onde havia supervisionado o monopólio imperial do sal-gema (o sal originário da terra), apresentou a toda a corte uma máquina capaz de jogar xadrez em embates com humanos.
O Turco (como foi batizada a engenhoca) foi um verdadeiro assombro – e não apenas na corte vienense. Seu intrigante fascínio espalhou-se por toda a Europa, em seguida alastrando-se pela América até a metade do século seguinte como um genuíno fenômeno pop. Figuras históricas como Napoleão e Benjamin Franklin arregalaram os olhos para a máquina. De tão intrigado por ela, o escritor americano Edgar Allan Poe (o inventor da moderna história de detetive) escreveu um ensaio em que tentava elucidar aquela farsa vinda da Europa.
Porque o Turco – é preciso que digamos logo – foi uma farsa, sim, mas o blefe mais influente de toda a história da ciência. E o de trajetória mais inexplicável, envolto em espesso mistério há mais de 200 anos. O grande enigma é o seguinte – como é que von Kempelen, que jamais se dispôs a explicar os mecanismos de seu autômato, conseguiu ludibriar tanta gente? O fato é que sobre os debates e as investigações suscitados pela sua polêmica ergueram-se o Deep Blue e toda a pesquisa atual a respeito de Inteligência Artificial .
Como conta Tom Standage em seu altamente recomendável The Turk: The Life and Times of the Famous Eighteenth-Century Chess-Playing Machine (“O Turco: Vida e Época da Famosa Máquina de Jogar Xadrez do Século 18”, inédito no Brasil), o espanto só não foi maior que o deslumbramento pela tal máquina que supostamente reproduzia no tabuleiro movimentos e estratégias de um jogador de carne e osso. “A máquina de jogar xadrez de von Kempelen estava destinada a ser o mais famoso autômato da história”, afirma Standage, jornalista inglês especializado em tecnologia que pendurou na parede do escritório um diploma em Engenharia da Universidade de Oxford.
Mais parecido com um manequim de bazar oriental, o autômato de von Kempelen reproduzia em tamanho natural uma figura trajada de vestes “turcas” (apelo irresistível na Europa do Século das Luzes) sentada diante de uma mesa em forma de caixa, com um tabuleiro de xadrez no topo, gavetas e portinholas pelos lados. Usando turbante, segurando um cachimbo na mão esquerda, a mão direita pousada sobre uma almofada, o Turco postava-se diante desse móvel (que tinha 80 X 60 centímetros, as dimensões de uma prosaica escrivaninha), dali desafiando o mundo do enxadrismo e despertando as maiores indagações. Era um milagre da nascente civilização técnica? Puro ilusionismo? Ou apenas um truque circense, um desses engodos espetaculares destinados a divertir o respeitável público?
O show e toda a fabricação do suspense antes e depois dos embates ficava por conta de seu inventor. Von Kempelen (1734-1804), com conhecimentos profundos de física, leis e idiomas, não era nenhum desses cientistas que se encerram em laboratório, distanciados do mundo e das coisas terrenas. Adorava ser o centro das atenções, gostava de conduzir o público e tinha um aguçado senso de espetáculo. “Talentoso showman, von Kempelen tinha uma performance que fascinava qualquer platéia”, afirma Standage. Como um David Copperfield sem a incômoda presença de Mister M para estragar-lhe a festa, von Kempelen preparava toda uma perfomance para paralisar de atenção seus espectadores.
E conseguia. A cada nova partida, von Kempelen fazia um teatrinho para confundir a platéia. O autômato entrava em cena conduzido sobre rodas instaladas embaixo da mesa, tudo para transmitir a certeza de que não havia nenhuma passagem secreta sob o piso. As três portinholas na parte anterior da mesa eram abertas. Para demonstrar a todos que em seu interior não havia se acomodado alguém, uma lamparina era acionada para iluminar os vários mecanismos apresentados, uma enigmática caixinha era extraída por von Kempelen ou por seu ajudante Anton e apresentada à platéia. Sob essa mesa, uma gaveta continha o tabuleiro com as casas brancas e pretas e as peças destinadas ao oponente do autômato. Detalhe: a gaveta abria apenas parcialmente.
Depois de mostrar a todos que não havia ninguém na máquina, von Kempelen – rosto concentrado, gesto solene e passos medidos – colocava a caixinha sobre a mesa, ao lado do boneco, e depois manejava uma chaveta para dar corda no autômato (que ficava entre duas velas acesas, mesmo que houvesse luz suficiente). Como em qualquer apresentação de mágico, um voluntário era conclamado a subir no palco e disputar uma partida com o Turco, cujos mecânicos meneios da cabeça e dos braços deviam ser parecidos com os de C3-PO, o andróide aloprado de Guerra nas Estrelas. A platéia assistia a tudo com deslumbramento. O Turco vencia todas as partidas.
Logo, a Europa em peso – pelo menos a parte mais poderosa do continente – estava mesmerizada pelo Turco. Principalmente porque, depois de cada jogo-exibição, o tabuleiro de xadrez era trocado por outro que continha os dez algarismos e o alfabeto. A assistência então podia fazer perguntas (coisas leves no estilo: “És casado?” “Tenho várias mulheres”).
É claro que só podia ser um truque. Onde, até então, já se vira um mecanismo que fornecesse respostas lógicas e demonstrasse raciocínio? As hipóteses e as teorias circulavam por todas as capitais do Velho Mundo. Havia um anão no interior da mesa? Tratava-se de prestidigitação? Ou von Kempelen, atualizado com o melhor da ciência de sua época, havia produzido fenômenos elétricos que fossem independentes de verdade da ação humana?
A febre de versões sobre o Turco só arrefeceu durante a década em que seu criador dedicou-se, em Viena, a especular sobre máquinas falantes. Porém, o futuro czar Paulo I, tendo passado algumas semanas de recreio na cidade, conheceu o autômato e ficou completamente embasbacado. Por conta desse estupor, José II da Áustria isentou von Kempelen de seus trabalhos na corte por um período de dois anos, permitindo que o barão excursionasse com seu invento em todas as cortes da Europa.
É nesse ponto que começa a longa história de controvérsias. Na Alemanha, um erudito professor publicou um texto em que supostamente provava que o autômato era movido por forças misteriosas. Pura especulação. Em Dresden, o barão Joseph Friedrich zu Racknitz, tendo queimado os neurônios por cinco anos durante a construção de duas réplicas, publicou em 1789 uma obra em que desconstruía o autômato e explicava como um homem poderia, de seu interior, conduzir as partidas. Era um esquema bastante freqüente em apresentações de ilusionistas: na hora em que von Kempelen fazia rapapés para sua criação, e uma das portinholas era aberta, o jogador oculto estava com as costas apoiadas num dos lados. Em seguida, ao se abrirem as outras portinholas, dobrava-se para a frente. Como uma daquelas assistentes louras e boazudas dos mágicos, o jogador conseguia sempre não ser visto na parte mostrada à platéia.
E que jogador. Geralmente, von Kempelen recrutava os melhores enxadristas do pedaço. Eles não apenas se submetiam ao suplício de ficar quase uma hora confinados dentro de uma escrivaninha. Manipular as peças do tabuleiro manejado pelo Turco, acima de suas cabeças, era outra porção trabalhosa de seu emprego.
À luz de vela, com os joelhos encolhidos, o jogador manipulava as peças através de ímãs em casas numeradas de 1 a 64, acompanhando o que ocorria na partida. Bastava mover uma alavanca para que o Turco se mexesse e jogasse com a peça previamente escolhida.
Racknitz acertou na mosca. Porém, ao contrário do que ele esperava, ninguém pareceu dar muita bola à explicação – multidões continuavam lotando os teatros para presenciar aquele “milagre” e dezenas de supostos eruditos continuavam oferecendo explicações alternativas. Em 1804, após a morte de von Kempelen, o autômato foi adquirido pelo alemão Johann Nepomuk Maezel (1772-1838), inventor de uma orquestra mecânica que executava músicas orientais. Reconduzido a Viena, o Turco voltaria a prestar seus serviços em benefício das (muitas) horas de lazer da corte.
Foi Maezel que promoveu um embate entre a máquina e Napoleão Bonaparte. Mal tinha a partida começado, Napoleão errou propositalmente. Quando o Turco o corrigiu, Napoleão errou novamente – e mais uma vez foi corrigido. Na terceira resvalada do francês, o Turco irritou-se e atirou para longe o tabuleiro. Surpresa: do interior da mesinha irrompeu Johann Allgaier, um dos mais brilhantes enxadristas de seu tempo.
Depois de alguns anos experimentando a glória e a obscuridade nas capitais européias, Maezel resolveu partir para a América, onde acreditava encontrar platéias ávidas por suas exibições. Estava certo. O chato é que nenhum enxadrista quis segui-lo nessa aventura no Novo Mundo, e Maezel teve que treinar uma francesinha que conhecera durante a travessia do Atlântico.
A América embasbacou-se com o Turco. Os jornais, desconhecendo bibliografia sobre o funcionamento do autômato, publicavam verdadeiras odes ao engenho europeu. Foi então que o escritor Edgar Allan Poe (1809-1849) entrou na história. Num texto hoje célebre, Poe (que testemunhou uma de suas exibições em Richmond) tentava explicar o funcionamento do Turco. O autor do poema “O Corvo” chegou a conclusões parecidas com aquelas que já eram moeda corrente na Europa. Pouco a pouco, os americanos iam descobrindo o que parte do mundo civilizado sabia: a invenção de von Kempelen era um engodo. Mas destinado à imortalidade por resumir em si as ambições técnicas de uma era. Com os Estados Unidos enfastiados, restou a Maezel o Caribe. E um triste epílogo: depois da morte de seu segundo proprietário, o Turco pereceu no incêndio do Peale’s Museum da Filadélfia, em 1854.
Mesmo muito tempo depois de seus dias de glória, a invenção de Wolfgang von Kempelen ainda fornece vasto combustível para controvérsias no meio científico. É possível construir máquinas que raciocinam (como o Deep Blue e o Deep Fritz, versões “modernas” mas sem marmelada do Turco, que realizam milhões de cálculos por segundo e seguem padrões e movimentos consagrados pelos maiores enxadristas)? É uma pergunta com a qual a ciência se defronta toda vez que uma máquina desafia o homem. E vice-versa.
Empate técnico
Muita tinta foi gasta para comentar o desafio em que o computador Deep Blue derrotou o campeão mundial de xadrez, Garry Kasparov, em 1997. Em outubro de 2002, houve uma nova disputa: o russo Vladimir Kramnik, que em 2000 tomou de Kasparov o título mundial, enfrentou Deep Fritz, atual campeão dos programas de computador.
Talvez porque não houvesse uma multinacional por trás (Deep Blue era da IBM, Deep Fritz não; o primeiro era um computador, o segundo um software), o match não conseguiu o destaque na mídia que teve o anterior. Mas foi tão curioso quanto, a começar pelo resultado: empate. Homem e máquina venceram duas partidas cada e houve quatro empates.
O resultado deu munição àqueles que argumentaram que a derrota de Kasparov deveu-se mais a seus próprios erros que aos méritos de Deep Blue. Mas o fato é que, mesmo jogando melhor que Kasparov, o atual campeão mundial não conseguiu vencer o desafio.
Sempre é notícia quando um computador derrota um campeão de xadrez. O que espanta, na verdade, é o contrário: que existam homens capazes de bater uma máquina que calcula milhões de jogadas por segundo. O resultado prova mais sobre o poder da mente humana que sobre o dos computadores, já que o homem tem que suprir a falta de força bruta de cálculo usando um raciocínio que software algum tem.
Os programadores de Deep Fritz prevêem que dentro de cinco anos os computadores serão imbatíveis no xadrez. Difícil. Um aumento na capacidade de cálculo dos computadores implica apenas que eles poderão prever os movimentos com mais lances de antecipação. Eles serão cada vez melhores no começo das partidas, quando o número de combinações de jogadas está acima do que qualquer humano consegue calcular – hoje os computadores fazem jogadas pré-programadas nos dez primeiros lances. No futuro, talvez a máquina descubra novos lances no tabuleiro que superem as atuais aberturas. Mas os enxadristas de carne e osso já provaram que o raciocínio abstrato é capaz de fazer o mesmo.