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Por que 2000?

Jesus nasceu antes da data oficial. Ou seja, o ano 2000 já passou. E, mesmo aceitando o nosso calendário gregoriano, o novo século só começa em 2001. Saiba por que as medidas de tempo são sempre arbitrárias.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h13 - Publicado em 30 nov 1999, 22h00

Denis Russo Burgierman

O mundo celebra os 2 000 anos do nascimento de Cristo, no final do mês, apenas porque um abade de Roma, no século VI, fixou a suposta data em que Jesus teria vindo à Terra. Seu nome era Dionísio, o Exíguo (500-560), ou Pequeno Dionísio se você quiser ser informal. Acontece que os cálculos estavam errados. Os estudiosos do calendário que usamos, o calendário gregoriano, estabelecido pelo papa Gregório XIII, em 1582, não têm dúvida disso, como você vai descobrir nas páginas seguintes.

Apesar da falha, a cronologia do abade foi aceita pelos cristãos de todos os continentes, e por isso nós estamos entrando no ano 2000 agora. Esse fato mostra o quanto os calendários são arbitrários – não passam de convenções criadas para facilitar a contagem do tempo. Tanto que, para os judeus, estamos no ano 5760; para os muçulmanos, em 1420; e para os chineses, em 4635. Estaríamos em 5119 se usássemos o sistema dos maias da América Central, extintos há 1 000 anos. A questão não é que algum desses números seja melhor ou pior do que os outros.

A diferença se deve, simplesmente, ao fato de que cada um desses povos começou a computar os dias num momento diverso da História.

Aliás, mesmo que Dionísio tivesse feito as contas direito, a nossa festa continuaria sendo comemorada antes da hora. Na verdade, como estamos apenas terminando 1999, não se passaram ainda 2 000 anos do nascimento de Cristo. Ao final deste mês, portanto, faltarão doze meses para fechar o segundo milênio do nascimento de Cristo. Ou seja, o correto seria comemorar no final do ano que vem.

Mas, justamente porque a contagem do tempo é uma convenção, não custa decretar que o terceiro milênio começa em janeiro e pronto. É o que sugere o historiador da ciência americano Stephen Jay Gould, da Universidade Harvard, em seu livro O Milênio em Questão, lançado este ano no Brasil. “Por que não proclamar que o primeiro século teve 99 anos em vez de 100?”, propõe ele. Seria um modo descomplicado de sancionar o que já está decidido na prática – que agora é o momento de celebrar.

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drusso@abril.com.br

Algo mais

Em 1650, o arcebispo irlandês James Usher fez as contas e concluiu que Deus criou o mundo às 15h30 do dia 23 de outubro de 4004 a.C. e que o apocalipse aconteceria no mesmo dia e horário em 1996. Bem, errou. Mas Usher inventou a expressão “antes de Cristo”, que usamos até hoje.

Contando anos e proibindo livros

O italiano Ugo Buoncompagni (1502-1585) entrou para a História com o nome de Gregório XIII (veja o desenho à direita) e a fama de ter sido o responsável pelo calendário que usamos. Chefiando uma comissão de matemáticos e astrônomos, ele ordenou pequenos ajustes no sistema de medida de tempo dos romanos e, em 1582, oficializou o costume de contar o tempo a partir do nascimento de Jesus Cristo. Mas nem tudo é positivo em seu currículo. Foi esse papa também que proibiu o De Revolutionibus, livro do astrônomo polonês Copérnico (1473-1543), que ousou decretar que a Terra girava em volta do Sol, e não o contrário.

O erro que mudou a idade de cristo

A história do nosso calendário começa no século VI, quando os anos ainda não eram numerados a partir do nascimento de Cristo, como hoje. O marco inicial do tempo, nessa época, era a data da posse do imperador romano Diocleciano, que se deu no ano 284, de acordo com a cronologia atual. Mas, como Diocleciano havia sido um feroz perseguidor de cristãos, que costumava jogar aos leões, o abade Dionísio decidiu que o sanguinário governante não merecia a honra de dar início ao calendário. Em 525, resolveu que em sua contagem o ano de número 1 seria o do nascimento de Jesus.

Para descobrir quando isso aconteceu, Dionísio partiu de um episódio marcante – a fundação de Roma –, cuja data estava registrada nos arquivos da cidade. Aí, ele também encontrou a duração de todos os reinados romanos desde essa época. Assim, o primeiro passo do abade foi adicionar todos esses períodos, verificando que tinham se passado 726 anos desde a fundação da cidade até a posse do imperador Augusto. Esse número era importante porque, segundo os dados levantados por Dionísio, Cristo havia nascido 27 anos depois dessa posse, durante o período em que Herodes governou a Palestina. Fazendo a soma, o abade concluiu que o nascimento ocorrera 753 anos após o surgimento de Roma.

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Essa data foi a que ele adotou como marco inicial do seu calendário. Estaria tudo bem se Dionísio não tivesse cometido um deslize. “Ele provavelmente deixou de contar um período de quatro anos durante o qual o imperador Augusto governou com seu nome de batismo, Otávio, entre 27 e 31 a.C”, explica o astrônomo e matemático Othon Winter, da Universidade Estadual Paulista, autor do livro Fim de Milênio.

Equívoco chancelado

Os pesquisadores desconfiaram do engano porque, segundo a Bíblia, Herodes tentou matar Cristo quando esse era ainda bebê – embora muitos historiadores duvidem dessa narrativa evangélica, pela simples razão de que o assassinato de todos os bebês da Judéia de uma época seria um crime grande demais para não ser mencionado por nenhuma outra fonte além da Bíblia. Ao mesmo tempo, o historiador judeu Flavius Josephus (37-100) diz que o famigerado Herodes morreu no mesmo mês de um eclipse lunar que, para os astrônomos, ocorreu com toda a certeza em 4 a.C. Então, é claro que Cristo tem que ter nascido antes do ano 4 a.C.

De uma maneira ou de outra, aos poucos o calendário de Dionísio ganhou aceitação popular e por volta do ano 1000 já tinha se espalhado por toda a Europa. Em 1582, quando foi sancionado pelo papa Gregório XIII, no calendário gregoriano, que usamos até hoje, o seu erro se tornou oficial.

O mês dele é maior que o meu

Antes de Júlio César (100 a.C. – 44 a.C.), as datas das estações eram muito imprecisas em Roma, o que tornava difícil determinar a hora certa do plantio. Para resolver o problema, o imperador copiou a folhinha do país de sua amante, a egípcia Cleópatra, que sabia acompanhar muito bem as mudanças anuais da meteorologia. Nasceu assim o calendário juliano, no qual aparecem pela primeira vez os meses que usamos hoje.

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O nome de julho foi escolhido pelo senado romano em homenagem ao imperador. Antes disso, esse mês se chamava quintilis, pois era o quinto a contar de março, que marcava o início do ano para os romanos. Então, aproveitando a onda de bajulação, o senado deu o nome do sucessor de César, Augusto, ao mês seguinte, que, em vez de sextilis, passou a se chamar agosto. Só que Augusto não gostou de esse mês ter 30 dias e julho 31. Assim, roubou 24 horas de fevereiro, que de 29 dias ficou com 28. Como resultado, apareceu uma eqüência de três meses longos: julho, gosto e setembro, que já tinha 31 dias.

A saída foi rebaixar setembro para 30. É mais um exemplo do quanto os calendários são arbitrários.

Daqui a oito anos tem outro 2000

Embora seja um país majoritariamente cristão, a Etiópia, no nordeste da África, não reconhece a autoridade do papa. Por causa disso, sua igreja não obedeceu à ordem de Roma de padronizar o calendário e conserva seu próprio sistema milenar. O ano etíope tem treze meses – doze com trinta dias e um com cinco ou seis no final do ano. Além disso, eles acreditam que Jesus Cristo nasceu no nosso ano 9. Assim, enquanto celebrarmos a entrada do ano 2000, os etíopes estarão ainda em abril de 1992. Portanto, se você por algum motivo perder a festa deste ano, fique sabendo que lá na África tem outra em 2008!

O ano está errado e o dia também

Se o ano não está correto, o dia exato do Natal é simplesmente desconhecido. “A data de 25 de dezembro só foi instituída por conveniência política”, afirma o astrônomo Othon Winter. “A Bíblia não diz em nenhum lugar quando nasceu o filho de Deus.” Sem a dica da data certa, diversas regiões da Europa e do Oriente Médio escolheram dias diferentes para comemorar o Natal, embora mais tarde aderissem à orientação romana. Assim, a festa era em 19 de novembro no Egito, 20 de maio na Palestina e 6 de janeiro na Etiópia, onde continua em vigor.

Não se sabe o motivo dessas opções, a não ser no caso em que a data tornou-se a mais popular, o 25 de dezembro: esse era o dia festejado pelos romanos como o aniversário do deus persa Mitra, que não tem nada a ver com o cristianismo, mas era muito popular naqueles tempos. Como Roma era a capital da cristandade e a cidade mais importante do mundo à época, sua data se impôs, prevalecendo até hoje. Vencida pelos fatos, a Igreja a adotou oficialmente em 440.

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“Em vez de combater o ritual pagão, os bispos o incorporaram”, conta o historiador Edgard Leite, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Aliás, o próprio Novo Testamento parece indicar que a data de 25 de dezembro está errada. O Evangelho de Lucas afirma que Jesus é seis meses mais novo que João Batista, que diversos registros indicam ter nascido em 27 de março. Nesse caso, o verdadeiro Natal cairia no final de setembro.

Reforma revolucionária

A tentativa mais conhecida de mudar a nossa contagem dos anos foi feita pela Revolução Francesa. A reforma foi implantada por meio de um decreto que entrou em vigor em 22 de setembro de 1792. Esse dia, a partir daí, passou a se chamar de primeiro de vindimário do ano 1. O novo mês ganhou esse nome por ser o tempo da colheita da uva, ou vindima. Os outros meses, todos com trinta dias, também foram rebatizados tendo como critério algum fato natural relativo a eles. Sobravam cinco dias não vinculados a nenhum mês. Eram de repouso coletivo.

As semanas tinham dez dias, nove de trabalho e um de descanso. “Foi um erro”, diz Winter. “Ninguém gostou das semanas longas.” De fato, treze anos depois de começar, a experiência foi encerrada por Napoleão Bonaparte.

Outro inovador foi o filósofo Augusto Comte. Em 1849, ele propôs um ano de treze meses com quatro semanas cada um. Nesse sistema, qualquer data cairia no mesmo dia da semana, todos os anos. O ano-novo, por exemplo, cairia sempre no domingo. Havia ainda um dia extra, fora dos meses e das semanas. A idéia não vingou.

A folhinha dos chineses é mais velha

Mesmo que Cristo estivesse realmente soprando 2 000 velinhas agora, este final de ano não teria nada de especial para a maior parte dos povos da Terra. Afinal, os cristãos representam somente 30% do planeta. Budistas, hindus, muçulmanos e judeus, que compreendem cerca de 40% da população mundial, seguem calmamente seus velhos calendários (veja nestas páginas).

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De todos os que estão em vigor, o mais antigo é o chinês, dividido em ciclos de doze anos. Cada ano tem o nome de um bicho, como porco, tigre e dragão. Em fevereiro de 2000 estaremos entrando no ano do dragão, considerado de bom augúrio. É possível que Cristo também tenha nascido no ano do dragão, há 2 004 anos. Os ciclos se sucedem sem ser contados. “Os chineses não têm um ano inicial”, diz Winter. “Não há uma era chinesa, como a era cristã.” Se alguém quer situar um acontecimento no passado, diz o nome do governante daquela época.

Mas, apesar de não ser contados, os ciclos foram registrados em associação com as sucessivas dinastias chinesas. Assim, datando essas dinastias pelo calendário gregoriano, deduz-se que o calendário dos animais é seguido desde o dia 15 de fevereiro de 2 636 a.C. Ou seja, se ligassem para milênios, os chineses já teriam comemorado o segundo bem antes de Cristo nascer. Perto dos quase 5 000 anos da folhinha chinesa, nosso suposto segundo milênio é coisa de criança.

Embora possua o mais antigo sistema eficiente de contagem do tempo, a China curvou-se à força do dinheiro e adotou o esquema gregoriano em 1912 para controlar os negócios e os impostos. É a data oficial que aparece também nos jornais. Mas a população continua a seguir o sistema tradicional e o ano-novo cai em 5 de fevereiro. É a maior festa popular da China.

Portanto, nas ruas dos país mais populoso do mundo, a comemoração pode até ocorrer em locais freqüentados por estrangeiros, mas certamente será pífia entre a população. O mesmo pode-se esperar em vários países não cristãos, especialmente nos de língua árabe e na Índia. Em vista disso tudo – e do equívoco de Dionísio –, fica claro que celebramos este 31 de dezembro por uma convenção ocidental e cristã.

Quase por acaso, devido a um erro aritmético cometido 1 474 anos atrás, a data foi escolhida como o dia da festa. Mas, se é assim, estoure o champanhe e caia na gandaia. Contas malfeitas e arbitrariedades à parte, o ano 2000 está aí nos convidando para renovar as esperanças de um milênio melhor.

Novo milênio judeu é em 2040

A era judaica é ainda mais ambiciosa que a cristã. Se os cristãos baseiam-se no nascimento de Cristo, os hebreus afirmam computar os anos desde a criação do Universo.

O calendário judaico (na foto acima, você vê uma de suas mais antigas representações) está no ano 5760 e foi calculado no século XI por Hai Gaon, um rabino da Babilônia, atual Iraque. Gaon somou a duração da existência de vários personagens do Velho Testamento. Pelos seus cálculos, passaram-se 1 949 anos da criação até o nascimento do patriarca Abraão. De lá para cá, foram mais 3 811. Em 2040, será a vez de esse calendário fechar mais um de seus muitos milênios.

O Nilo vira um relógio

Os primeiros a usar o Sol para medir o tempo foram os egípcios, há 6 000 anos. Graças à secura do deserto. É que lá no norte da África a temporada das cheias, em agosto, chega todos os anos no mesmo dia, porque não há correntes úmidas nem El Niño para desregular o tempo. Assim, quando o Rio Nilo atingia seu ponto máximo, os egípcios sabiam com absoluta certeza que tinha chegado o verão. Como o Sol completa um ciclo de um verão a outro, os egípcios contavam quantos dias tinham decorrido entre uma cheia e outra para chegar ao número exato dos dias do ano. Devemos a esse rio confiável o calendário solar, que foi mais tarde copiado por Júlio César, que o disseminou pelo Ocidente.

Muçulmanos preferem a lua

O ano 2000 é o 1420 da era islâmica. E, nesse caso, a data é precisa. Se os cristãos jamais saberão ao certo o verdadeiro aniversário de Cristo, os muçulmanos não têm dúvidas quanto ao marco em que começaram a contar os anos.

Suas folhinhas partem do dia em que o profeta Maomé deixou sua cidade, Meca, e estabeleceu-se em Medina, ambas na atual Arábia Saudita. Era 16 de julho de 622. “É um dos poucos, entre os principais calendários, que iniciaram sua era no momento do evento e não séculos depois dele”, explica o astrônomo Roberto Boczko, da Universidade de São Paulo, que pesquisa o assunto.

No livro sagrado muçulmano, o Alcorão, Maomé definiu que marcaria o tempo com a trajetória da Lua, que leva algo como 29 dias e meio para percorrer suas quatro fases. O satélite natural da Terra, na fase crescente, tornou-se também o símbolo de sua nova religião.

Já o calendário cristão não leva em conta as voltas da Lua; computa apenas o caminho da Terra em torno do Sol no céu. Como o ciclo solar não bate com o lunar, o ano islâmico tem dez dias a menos.

Destruição do mundo

A extinta civilização maia, que floresceu no México e na América Central, entre os séculos III e IV, tinha um calendário notável, com um ano de 365 dias. Assim como os judeus, sua era começava com a criação do Universo. Mas, para eles, o mundo é recriado a cada 5 130 anos. Ao fim desse ciclo, o Universo acabaria, começando tudo de novo.

Se a contagem deles tivesse persistido, estaríamos no ano 5119. O curioso é que essa data da criação não difere muito da estabelecida pelos judeus. “Provavelmente os dois povos tentaram imaginar uma data no passado longínquo”, teoriza Winter. “E 5 000 anos pareceu longe o bastante para ambos.”

O calendário maia oferece outra oportunidade para os profetas do apocalipse. Se eles ficarem decepcionados quando o ano 2000 chegar e o mundo não acabar, terão outra chance em 2012. É quando termina o atual ciclo de 5 130 anos, que para os maias levará à destruição do Universo.

Para saber mais

Fim de Milênio, Bertília Leite e Othon Winter, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1999.

O Milênio em Questão, Stephen Jay Gould, Companhia das Letras, São Paulo, 1999.

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