Por que temos fé?
Para sobreviver, precisamos obter informações realistas e confiáveis sobre o mundo e não aceitar nada sem provas. Então, de que serve crer?
Texto Reinaldo José Lopes
Nosso cérebro e nossos órgãos dos sentidos estão maravilhosamente adaptados para extrair informações do mundo, mas há ocasiões em que esses dados objetivos são simplesmente ignorados. Por alguma razão, estamos dispostos a acreditar em seres sobrenaturais que não podemos ver ou tocar; sentimos que a morte não é o fim e que, de certo modo, as pessoas amadas que passaram por ela ainda pensam em nós. É o mistério que deu origem à fé em geral e a todas as reli-giões do mundo. Sozinha, a ciência não tem como provar ou desmentir essa intuição. O que ela pode fazer é tentar entender por que a fé humana surgiu. Hoje, existem duas grandes propostas para explicar o fenômeno. Entenda abaixo os pontos fortes e fracos de cada uma delas.
Vantagem adaptativa
Biólogos como o americano David Sloan Wilson apostam que a fé religiosa pode trazer benefícios diretos a quem a tem. O principal benefício seria aumentar as chances de sobrevivência e reprodução dos indivíduos com fé em detrimento dos indivíduos sem fé. Ou seja, quem é capaz de acreditar sairia ganhando na seleção natural, de forma que, ao longo de milhares de anos, a capacidade para a crença no sobrenatural se espalharia por boa parte da população.
As vantagens potenciais são muitas. Do ponto de vista do indivíduo, a fé poderia ser um recurso interessante diante de uma doença ou um ferimento grave, digamos. Afinal, acreditar que a cura é possível ajuda um bocado na recuperação em quase todos os problemas de saúde. Práticas como a adivinhação feita por sacerdotes, após consulta aos deuses, ajudaria o grupo a não ficar paralisado e indeciso diante de uma crise muito complicada. Além disso, não é à toa que, ao longo da história, quase todos os exércitos partiam para a guerra depois de pedir a proteção divina. Acreditar que forças sobrenaturais estão do seu lado deu coragem e coesão a guerreiros em todas as culturas e em todos os tempos. Quem não tivesse esse poderoso reforço moral combatendo junto corria um risco maior de ser derrotado ou de desistir da batalha antes mesmo de ela começar.
O problema com essa visão é que ela é controversa para os próprios biólogos. Ela pressupõe que, de alguma forma, a seleção natural age sobre grupos inteiros de pessoas, embora o consenso a-tual seja que tal mecanismo promove apenas indivíduos, que sempre estão competindo com outros indivíduos – mesmo que eles sejam seus aliados.
Efeito colateral
Também pode ser que acreditar no invisível seja só um subproduto relativamente inútil da própria organização da nossa mente. Um dos principais defensores da idéia é Justin Barrett, psicólogo da Universidade de Oxford que propôs o conceito de HADD (sigla inglesa de “aparelho hiperativo de detecção de agente”). A idéia básica por trás do termo é que nossa cabeça está adaptada para detectar “agentes” – outros seres do mundo lá fora que, como nós, têm interesses e desejos.
Essa capacidade é essencial para encontrar entidades que todos desejamos, como presas ou parceiros, ou para fugir de seres que nos põem em risco, como predadores e competidores. E também é importantíssima para a vida social: sem ela, não conseguiríamos imaginar o que uma pessoa está pensando e, se for o caso, antecipar as ações dela. O problema é que, para não deixar passar sinais potencialmente importantes de “agentes” externos, esse detector precisaria ser regulado no máximo – daí a qualificação de “hiperativo” dada a ele.
Dessa forma, estaríamos fadados a enxergar pensamentos, desejos e vontades em coisas como um computador, um carro – ou a chuva, ou o Sol. Não é difícil imaginar como isso poderia levar à crença em entidades sobrenaturais por trás desses fenômenos, ou na sobrevivência do espírito de uma pessoa após a morte. Outro elemento, nesse caso, seria a incapacidade de conceber a nossa própria não-existência – logo, algo “teria” de sobrar depois da morte. Desse ponto de vista, nosso cérebro dificilmente funcionaria direito sem a presença desse efeito colateral quase fantasmagórico.
15% da população mundial se declarou “não religiosa” numa pesquisa recente. Mais de 50% diz acreditar num só Deus.