Segredos do Vinho
A embriagante história da bebida que há quase 7 mil anos é a mais venerada, simbólica e luxuosa do planeta.
Rodrigo Cavalcante
No início, é só cor. Apenas um terço da taça é preenchido pelo líquido vermelho intenso, quase rubi, com um leve entorno acastanhado. Mas basta girá-la levemente, aproximar o nariz e algo de extraordinário acontece: uma jovem reconhece o aroma de amoras maduras. Lá atrás, uma senhora identifica o cheiro do doce de marmelo que a avó fazia – e que ela quase esquecera. Um dono de restaurante identifica os temperos que usa em seus pratos e um senhor se emociona ao sentir o inusitado cheiro de animais e de um bosque, como aquele que ele freqüentava na infância. É como se, por alguns instantes, parte da vida dessas pessoas estivesse ali: em parcos 100 mililitros de um vinho tinto degustado na sala do curso da Associação Brasileira de Somelliers, no 14º andar de um edifício em São Paulo.
Talvez você ache exagero, esnobismo ou mesmo afetação (para não usar outro termo) tanta celeuma em torno de uma bebida. Afinal, tecnicamente, o vinho não passa de suco de uva fermentado. Ou, como diriam os químicos, uma solução aquosa de etanol (uma forma de álcool resultante da ação de leveduras sobre a uva) com maiores ou menores vestígios de açúcares, ácidos, ésteres, acetatos, lactatos e outras substâncias já presentes no suco da fruta ou resultantes da fermentação. Ainda assim, ninguém pode negar que os amantes do vinho seguem uma espécie de mística enraizada há quase 7 mil anos, quando se vivia num mundo não invadido pelos refrigerantes, bebidas isotônicas, energéticos, uísque, vodca, cachaça (os destilados são uma invenção do século XIV), nem mesmo café e chocolate (popularizados como bebida na Europa apenas depois da descoberta da América).
“Ao longo da história, o vinho foi a única fonte de conforto e coragem, o único remédio e anti-séptico, o único meio de que o homem dispunha para recuperar o ânimo e superar o cansaço e a tristeza”, diz o pesquisador inglês Hugh Johnson, autor do livro A História do Vinho. “Ele foi, durante milênios, o principal luxo da espécie humana.”
Mais do que um luxo, o vinho foi a bebida sagrada por excelência. Dos rituais a Dionísio, na Grécia antiga, até a celebração da eucaristia católica, repetida até hoje, ele atravessou milhares de anos sem perder sua aura divina. Seu comércio aproximou povos, mobilizou monarcas, enriqueceu Estados e foi sinônimo de poder – mesmo sem gostar de vinho, Hitler fez questão de possuir uma adega com os melhores exemplares do mundo, hábito copiado até hoje por políticos e novos-ricos em busca de status.
Por ser tão encorpado de significados, beber uma simples taça pode ter conseqüências imprevisíveis. Que o diga o mais novo presidente eleito do país, que aprendeu essa lição ao ser atacado durante a última campanha por ter tomado um Romanée-Conti – e olhe que Lula não pediu nem pagou pela garrafa de 6 mil reais, oferta do publicitário Duda Mendonça.
O poder de inebriar
Ninguém sabe ao certo quem foi o primeiro homem a beber vinho, nem onde ele foi experimentado pela primeira vez. Há indícios arqueológicos de que a uva já era cultivada há cerca de 7 mil anos, na atual Geórgia (ex-União Soviética). Mas talvez nem tenha sido preciso cultivar uvas para beber vinho. Qualquer homem que vivesse numa região cercada de videiras silvestres já devia ter notado que as uvas, a partir de um determinado estágio, perdiam um pouco de sua doçura para ganhar sabor mais forte. Pelo menos nessa fase, como diz o historiador Hugh Jonhson, o que deve ter chamado a atenção dos nossos ancestrais para a bebida não foi o seu sutil buquê, nem o persistente sabor de violeta e framboesa. Foi, provavelmente, o efeito inebriante que ele proporcionava. “Em meio a uma vida difícil, bruta e breve, aqueles que primeiro sentiram os efeitos do álcool acreditavam-se brindados com uma antevisão do paraíso”, diz Johnson.
“As inquietações desapareciam, os medos se afastavam, as idéias ocorriam mais facilmente e os apaixonados se tornavam mais carinhosos quando bebiam esse sumo mágico.”
Alguns, é claro, também davam vexames. É o caso do patriarca bíblico Noé, o mesmo da Arca que teria salvado os animais do dilúvio. O nono capítulo do Gênesis conta que, depois do desembarque da arca, Noé passou a cultivar a terra e plantou vinha. “E tendo bebido vinho, (Noé) embriagou-se e apareceu nu em sua tenda. E Cam, pai de Canaã, tendo visto a nudez de seu pai, saiu fora a dizê-lo a seus dois irmãos.” Para evitar que Noé continuasse a perambular pelado e bêbado, os dois irmãos de Cam entraram em sua tenda e o cobriram. Noé, no dia seguinte, ainda teve o disparate de pôr a culpa do incidente em seu filho Cam, condenando-o a gerar uma espécie de raça inferior da humanidade – os cananeus, segundo a Bíblia.(Para evitar que seus cardeais exagerassem na bebida, o papa Júlio II mandou Michelangelo pintar essa história no teto da Capela Sistina no Vaticano, bem acima da vista de seus cardeais.)
Apesar do Gênesis não explicar bem o porquê da irada reação de Noé ao incidente, é de se supor que ele estivesse sofrendo uma das primeiras ressacas de vinho na história (quem já passou por uma sabe que não é a melhor hora para tomar decisões importantes). Mas as náuseas e as dores de cabeça que acompanharam os primeiros amantes do vinho no dia seguinte não foram suficientes para desanimá-los. A bebida, sem dúvida, parecia ter mesmo características especiais. Uma delas era sua capacidade de melhorar com o tempo. Isso facilitou a sua difusão por outras regiões e, no futuro, a transformaria num dos primeiros e mais importantes produtos de exportação do planeta. Dali em diante, o vinho se confundiu com a história da própria civilização.
Uma bebida divina
Curiosamente, desde o surgimento das grandes civilizações, o vinho sempre foi considerado uma bebida nobre. Como as grandes cidades no Egito e na Mesopotâmia apareceram no Oriente Médio, perto de regiões produtoras de cereais, a maior parte da população se embriagava tomando cerveja (nessa época, ela já era mais popular). No Egito, as primeiras pinturas sobre a vinicultura revelam que, há mais de 3 mil anos, seus habitantes já dominavam a tecnologia da sua produção e o utilizavam em rituais de oferenda aos deuses e aos mortos. Segundo os historiadores, seu consumo no Egito estava restrito aos ricos e aos sacerdotes, já que não havia muitas videiras plantadas na região.
Mas foi na Grécia antiga que a bebida ganhou proporções místicas. Além de impulsionar a economia da região (que na época se estendia por boa parte do Mediterrâneo, incluindo o sul da Itália), o vinho estava associado diretamente ao deus Dionísio. Este não era encarado como um mito distante das pessoas e, ao ingerirem a bebida, os gregos tinham a certeza de que estavam bebendo o próprio deus. Por volta do século V a.C., foi construído em Atenas um enorme anfiteatro para a abertura dos festivais dionisíacos, quando dançarinos se apresentavam cantando e tocando pandeiros para uma platéia inebriada de vinho.
Quando o Império Romano suplantou em poder e extensão o mundo grego, a festa quase acabou. Dionísio, em Roma, era conhecido pelo nome de Baco, e suas festas, os famosos bacanais, chegaram a ser proibidas pelas autoridades no século II a.C. Mas não demorou muito para a pressão popular obrigar o imperador Júlio César a revogar a medida, no século I a.C.
Para a maioria dos historiadores, a devoção a Baco foi decisiva na construção da simbologia que o vinho teria para os cristãos. “É indiscutível a influência de seu culto sobre o cristianismo recém-chegado a Roma”, diz Hugh Johnson. A primeira referência à celebração formal da Santa Ceia depois da morte de Cristo, citada na Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, seria repetida nas centenas de anos seguintes pela Igreja Católica até hoje: “Tomai e comei; isto é meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em memória de mim”. Depois, tendo ceado, igualmente tomou o cálice e disse: “Este cálice é o novo testamento em meu sangue; fazei isto em memória de mim todas as vezes que o beberdes”.
Não custa lembrar que, muito antes da última ceia, o vinho seria protagonista do primeiro milagre que Jesus realizou quando iniciou sua pregação – e, nessa ocasião, o contexto era de alegria e não de pesar. Segundo o Evangelho de São João, tudo aconteceu em meio a uma grande festa de casamento (as bodas em Caná, na Galiléia). A recepção ia animada, até a ocorrência de uma daquelas situações que deixam qualquer mestre-de-cerimônias numa saia-justa: como havia muita gente para pouca bebida, o vinho acabara. Assim que soube, Maria contou o que aconteceu a Jesus e instruiu aos organizadores do evento que fizessem tudo o que seu filho indicasse. Jesus, que estava acompanhado de vários discípulos, pediu logo que enchessem vários recipientes de água até a borda e o resto você já sabe: animação garantida regada de um vinho ainda melhor que o servido no início da festa. Depois disso, conta João, o milagre fez com que “assim se conhecesse a sua glória, e seus discípulos creram nele”.
Como o cristianismo se expandiu rapidamente por boa parte do mundo (principalmente depois que o Império Romano se tornou oficialmente cristão, no século IV), referências como essa ajudaram a manter a aura do vinho como bebida sagrada.
Nem mesmo a expansão do Islã, que logo depois da morte do profeta Maomé, no século VII, proibiu seus seguidores de tomarem vinho, conseguiu impedir a propagação dessa mística.
Mas o vinho era muito mais do que uma bebida de celebração. Na Idade Média, ele tinha funções de anti-séptico (a técnica de destilação do álcool ainda não existia), analgésico e alimento – é bom lembrar que, considerando a péssima qualidade da água que se bebia então, o vinho era provavelmente uma bebida mais segura. Por conta disso, para consumo de seus monges, várias ordens religiosas, como a de São Bento, eram cercadas de extensas áreas de plantação de uva.
A contribuição dos mosteiros e das abadias foi fundamental para o aprimoramento das técnicas de produção da bebida. Dentro de seus muros sólidos e vetustos, o vinho se tornou cada vez mais sofisticado.
Em busca da perfeição
Havia monges especificamente encarregados da adega. O mais célebre deles foi, sem dúvida, dom Pérignon, a quem se atribui nada menos que a invenção do champanhe. Tudo começou em 1668, quando o monge beneditino, aos 29 anos, assumiu a tesouraria da abadia de Hautvillers, na região de Champagne, na França. Para incrementar a produção de vinhos da abadia, ele analisou meticulosamente as melhores formas de plantar e colher a uva, assim como de armazenar o vinho para que ele permanecesse aromático e com o sabor persistente. Devido às condições climáticas e ao solo de calcário da região, era comum que os vinhos passassem por uma segunda (e indesejada) fermentação, quando apareciam na bebida as famosas bolhinhas. Mas o que começou como um defeito logo se transformou numa qualidade. Pérignon desenvolveu uma mistura de três uvas para fazer do espumante uma bebida deliciosa e desenvolveu uma tampa de cortiça para que as garrafas não perdessem o gás.
Como as garrafas da época não eram muito resistentes para conter a pressão do dióxido de carbono, era comum que quem entrasse numa adega usasse uma máscara de ferro para se proteger de estilhaços resultantes da explosão de algumas garrafas (o curioso é que, segundo os relatos da época, dom Pérignon, inventor do champanhe, era abstêmio).
A bebida logo ganhou prestígio na corte de Luís XIV em Versalhes e chegou até Londres, fazendo de Champagne uma das regiões mais famosas do mundo. (Até hoje, somente os espumantes produzidos nessa região podem levar o nome de champanhe.)
Foi por volta dessa época que as regiões produtoras de vinho tradicionais se tornaram espécies de marcas registradas. Na região francesa de Bordeaux, por exemplo, os produtores passaram até a colocar o nome da própria família no rótulo de suas bebidas. Pouco a pouco, foi-se percebendo quais os terrenos responsáveis pelos vinhos de melhor qualidade, de acordo com as condições do solo, a exposição à luz, a altitude e outros fatores. Esses terrenos eram delimitados para a produção de vinhos de qualidade superior, com aromas mais complexos, e, é claro, de preços mais salgados. É o caso do Romanée-Conti, citado no início da reportagem. Famoso desde o século XIX, esse vinho só pode ser produzido a partir de uvas cultivadas numa estreita faixa de terra na região da Borgonha, que possui características muitos específicas de solo, responsáveis por lhe conferir sabor e aromas únicos. Isso reduz drasticamente a capacidade de produção, o que o torna raro e, claro, disputado.
“Essa é uma das principais diferenças do vinho quando o comparamos com outras bebidas”, diz Arthur P. de Azevedo, vice-presidente da Associação Brasileira de Sommelliers. “Dependendo de onde bate o sol nas videiras ou de algum detalhe no composto do solo, produz-se um vinho com características bem superiores a outro produzido pelo dono do terreno vizinho”, afirma. Um dos casos mais reveladores dessa estreita simbiose entre grandes vinhos e natureza pode ser encontrado numa garrafa do famoso Château d’Yquem, produzido na região de Sauternes, na França. Sua doçura singular nasce da fermentação de uvas podres, atacadas pelo fungo Botrytis cinerea. Acontece que esse fungo é comum numa pequena região de Sauternes, onde, nas manhãs de outono, as videiras são tomadas por uma névoa espessa que induz o ataque do fungo. Como somente as uvas deterioradas são usadas, os trabalhadores da região têm que fazer uma delicada colheita manual, uva a uva – e não cacho a cacho.
Estima-se que cada parreira consiga encher apenas uma taça. Não é à toa que uma simples garrafa de vinho possa valer uma pequena fortuna. A aura que envolve algumas delas equivale à de uma autêntica obra de arte. Daí que durante a Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha invadiu a França, os nazistas procuraram se apoderar das reservas dos melhores vinhos franceses da mesma forma como pilhavam os tesouros do Louvre. Os produtores de vinho da França reagiram sabotando a remessa dos vinhos para a SS e construindo muros para fechar a área mais nobre de suas adegas – impedindo que seus melhores exemplares fossem apreendidos pelos alemães. Mesmo assim, quando os soldados franceses entraram na adega de Hitler no fim da guerra, eles ficaram pasmos com o que viram: centenas de vinhos raros destinados a um homem que sequer apreciava a bebida.
O valor atual do vinho
Até há pouco tempo, quem definia o valor dessas obras de arte eram os próprios produtores, que levavam mais em conta a “tradição” e a “nobreza” de certas regiões. Nos últimos anos, entretanto, um homem dotado de olfato extraordinário vem abalando a rígida hierarquia do mundo dos vinhos. Trata-se do americano Robert Parker, o mais famoso crítico de vinho no mundo, que avalia cerca de 10 mil exemplares por ano. Parker costuma deixar furiosos alguns dos mais venerados produtores franceses quando estes recebem notas baixas no seu guia de vinhos The Wine Advocate (O Advogado do Vinho, sem tradução brasileira), uma publicação bimestral que tem cerca de 40 mil assinantes em todo o mundo. As notas de Parker, de 50 a 100, podem significar o sucesso ou o fracasso de uma safra. Sua credibilidade foi conquistada pelo fato de ele pagar a maioria dos vinhos que degusta e pela simplicidade de seus julgamentos.
“Eu não dou nenhum valor se a linhagem da família do produtor é do período pré-revolucionário ou se você tem uma fortuna maior do que eu possa imaginar”, disse Parker recentemente numa entrevista à revista americana The Atlantic Monthly. “Se o vinho não for bom, eu vou dizer que ele não é.”
De certa forma, as críticas de Parker vêm criando uma nova era do relacionamento com o vinho. Por não valorizar o nome do rótulo, ele ajudou a promover vinhos de países como África do Sul, Nova Zelândia, Austrália, Chile e Estados Unidos, que custam bem menos do que os franceses. Ele também ajudou a retirar da bebida a imagem esnobe, trazendo de volta o interesse genuíno pelo simples prazer da degustação. Apreciar a bebida deixa de ser um distintivo social para se tornar um símbolo de qualidade de vida.
Isso não significa, é claro, que o vinho deixará de ser “o suporte de uma mitologia variada”, como já escreveu Roland Barthes em seu livro Mitologias. Afinal, que outra bebida conseguiu manter sua aura em meio a um mundo marcado pelo doce fácil dos refrigerantes? Nada contra uma Coca-Cola ou um Guaraná gelado, mas beber um vinho é como ler um bom livro. Ou, como dizia o cineasta italiano Federico Fellini, “é como um bom filme: dura um instante e deixa na boca um sabor de glória; é novo em cada gole e, como nos filmes, nasce e renasce em cada degustador”. Um filme que conta mais de 7 mil anos da aventura humana numa única taça.
Frases
Os primeiros vestígios da plantação de uvas têm cerca de 7 mil anos. Durante todo esse tempo, o vinho foi a bebida sagrada usada no ritual da eucaristia para representar a última ceia (abaixo), além de alimento, anti-séptico e analgésico (acima, barris de vinho no fundo de um hospital na França durante a Primeira Guerra)
No Château d’Yquem (acima), o vinho é produzido a partir de uvas atacadas pelo fungo Botrytis cinerea. A colheita manual é tão criteriosa que cada parreira rende apenas uma única taça de vinho. O armazenamento em barris de carvalho (abaixo) ajuda a tornar a bebida ainda mais aromática
Para saber mais
Na livraria
A História do Vinho, Hugh Johnson, Companhia das Letras, 1999
Mitologias, Roland Barthes, Bertrand Brasil, 2001
Vinho e Guerra, Don e Petie Kladstrup, Jorge Zahar Editor, 2002
Na internet
Associação Brasileira de Somelliers: https://www.abs.sp.com.br