Traduzindo a palavra de Deus
A tradução das escrituras sagradas é um desafio tão grande que merecia uma ajuda divina. O que fazer quando não se pode contar com ela?
Texto Artur Fonseca
Traduzir é uma arte improvável, costumam dizer os tradutores. Afinal é muito difícil haver uma correspondência absoluta entre o que o escritor quis dizer e o novo texto. Se já é difícil assim nas línguas modernas, imagine com os livros sagrados, como a Bíblia e o Alcorão, escritos há dezenas de séculos em dialetos que não são mais usados hoje em dia.
Livro mais traduzido no mundo, com versões integrais em mais de 300 línguas, a Bíblia foi escrita em 3 idiomas. O Antigo Testamento, incluindo a Torá, tem originais em hebraico e aramaico, provavelmente a língua falada por Jesus. O Novo Testamento é quase todo escrito num grego arcaico que precisa ser traduzido mesmo para os gregos de hoje. Já o Alcorão é todo em árabe, só que em 4 dialetos diferentes, exatamente como foi revelado a Maomé.
Outro problema que os tradutores enfrentam é a escolha dos textos em que se basear. Os 66 livros que formam a Bíblia, por exemplo, não têm mais originais disponíveis, e os tradutores precisam se basear em cópias – às vezes em cópias de cópias. Para evitar erros, o tradutor compara várias cópias antigas e usa livros que discutem o significado das palavras bíblicas. “É preciso usar vasta literatura de interpretação das palavras”, afirma Vilson Scholz, professor de teologia e consultor de tradução da Sociedade Bíblica do Brasil. Além disso, o tradutor precisa estar atento a descobertas arqueológicas que trazem à luz novos significados de palavras bíblicas. “Há 50 ou 100 anos, a lista de palavras que só existiam na Bíblia era grande. A arqueologia fez essa lista diminuir muito.”
Depois, é preciso quebrar a cabeça para entender o significado das palavras no contexto. “O Novo Testamento tem cerca de 5 400 palavras. E cada uma tem em média 4 ou 5 significados”, diz Scholz. Às vezes a simples falta de uma vírgula – que não existia nas línguas dos originais – complica tudo. Como não dá para tirar a dúvida com o autor, o tradutor precisa intuir o significado das palavras. O que lhe dá margem para influenciar o texto sagrado. A palavra malakoi, por exemplo, já virou tanto “masturbador” quanto “homossexual” (veja ao lado).
Afinal, é preciso escolher um tipo de português para o texto final. “A tradução depende também de quem vai ler”, diz o lingüista e tradutor Nestor Dockhorn, que prepara traduções do Evangelho de Lucas em 3 variantes populares – urbana, urbana da periferia e rural. Perfeccionismo? Nem tanto. “Na hora de traduzir a palavra sagrada, todo cuidado é pouco”, diz Dockhorn.
Pecados da língua
As versões das escrituras sagradas estão repletas de imperfeições por causa das dificuldades impostas pelos originais e os idiomas em que foram escritos. Confira alguns exemplos.
Decepção no paraíso
O Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, também tem seus problemas de tradução. Segundo Christoph Luxenberg, pseudônimo de um especialista alemão em estudos árabes, autor do livro The Syro-Aramaic Reading of the Koran (sem tradução para o português), os textos originais do Alcorão não foram escritos apenas em dialetos árabes mas também num dialeto sírio-aramaico falado em Meca no século 7. O estudo de Luxenberg traz um detalhe aterrador para os terroristas suicidas. Se sua interpretação estiver correta, os muçulmanos que morrem em nome da fé não encontrariam mulheres virgens no paraíso, e sim uvas. Segundo o pesquisador, a palavra usada no original, huri, significa “uvas brancas” no dialeto sírio-aramaico.
Literal, mas ambíguo
Em Levítico, o 3º livro da Torá, está a história do bode expiatório, que é sacrificado para que o povo de Moisés pague seus pecados. A tradução literal, no entanto, fornece o nome “bode de Azazel, o demônio”. Ela não quer dizer que o animal pertence ao coisa-ruim, mas que representa sua influência sobre os homens, sua parte maligna. Fora do contexto, a expressão poderia dar a entender que um bode do demônio livrou os homens dos pecados dos hebreus – o que não é verdade. Para evitar o mal-entendido, os tradutores preferiram o termo bode expiatório.
A palavra do preconceito
Um bom exemplo de como opções de tradução podem causar polêmica é a questão da homossexualidade. Em vários trechos da Bíblia, palavras que podem significar “pederasta”, “masturbador” ou “estuprador” viraram simplesmente “homossexual” – deixando evidente o preconceito do tradutor. A palavra malakoi, por exemplo, já virou tanto “mole” quanto “pervertido”, “efebo” ou “homossexual”. Cada tradutor escolhe a que prefere ou acha mais correta.