Uma utopia severa
Essa utopia é severa. Sisuda, bem-comportada e exige que a educação encaminhe-nos para a bravura. Cuidado com os poetas, como Homero e Hesíodo. Poesia e música devem ser fiscalizadas.
Paulo Bentancur
A República, de Platão, é uma pequena utopia, escrita entre 384 e 377 a.C. Na construção de um sistema ideal, Platão traça um paralelo político-moral. Para a classe à qual ele destina o poder supremo (magistrados e filósofos), a razão é a palavra-chave; para os que garantirão a segurança dessa república (os guerreiros), a coragem é a marca moral; para aqueles cujas atividades envolvem a produção e o comércio (artesãos, homens de negócios) são destinados os instintos básicos: a sensualidade, os apetites.
Essa utopia é severa. Sisuda, bem-comportada e exige que a educação encaminhe-nos para a bravura. Cuidado com os poetas, como Homero e Hesíodo. Poesia e música devem ser fiscalizadas. É um regime pesado, que oprime os ombros dos cidadãos que acaso sonharem com alguma liberdade (a utopia platônica é no mínimo polêmica, abolindo propriedade, casamento, os filhos sendo afastados das mães e educados pela comunidade; o Estado é o pai e todos os cidadãos formam uma única família).
Há contradições nessa utopia. Se os poetas dela foram banidos, Platão escreve como um poeta, e sua filosofia constrói antes por imagens do que por argumentos. Um dos momentos altos de A República é o livro VII, “A alegoria da caverna”, na qual prisioneiros numa gruta ignoram o mundo lá fora, confundindo as sombras projetadas no fundo com fatos e coisas reais.