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Coma: um enigma de 3 mil anos

Conhecido há 3 milênios, o coma segue sendo um enigma. Com um arsenal de novas técnicas, a ciência tenta desvendar o apagão cerebral

Por Daniel Schneider
Atualizado em 27 mar 2023, 16h43 - Publicado em 29 fev 2008, 22h00

Atropelado por um caminhão enquanto andava de bicicleta numa pequena cidade da África do Sul, em 1994, o operador de máquinas Louis Viljoen jazia incomunicável havia 5 anos em sua cama de hospital. O diagnóstico era aterrador: o rapaz de 24 anos jamais recobraria qualquer nível de consciência. Os danos cerebrais eram sérios e o coma profundo. De olhos abertos, mas sem qualquer sinal de atividade consciente no cérebro, Louis apresentava um único movimento: um espasmo freqüente no braço esquerdo. Sua mãe, Sienie, não suportava a cena. Em uma de suas visitas diárias, ela pôs na boca do filho uma pílula para dormir. Como que por milagre, os espasmos cessaram. O semblante de Louis mudou. Seus olhos se moveram da esquerda para a direita. Ele murmurou. Incrédula e assustada, a mãe perguntou:

– Louis, você pode me ouvir?

– Sim.

– Diga olá, Louis.

– Olá, mamãe – respondeu ele, repentinamente despertado do coma.

Casos assim não acontecem toda hora, mas são emblemáticos porque reúnem os principais ingredientes da misteriosa condição de estar em coma, um estado profundo de inconsciência mencionado pela primeira vez nas obras Ilíada e Odisséia, de Homero, no século 8 a.C. Afinal, o que é exatamente o coma? Onde começa a fronteira do estado de inconsciência? O que passa pela cabeça de pacientes como Louis? Eles podem ouvir, ver, sentir dor? Acima de tudo: como é possível acordar alguém desse estado? Por que uma pessoa que tomou pílulas para dormir… despertou?

Resolver o enigma da inconsciência começa pela definição do seu oposto: a consciência. Para a neurologia, consciência é a capacidade de estar alerta e interagir com o meio e as pessoas, possuindo pleno controle das funções cognitivas – raciocínio, memória, capacidade de julgamento e fala, por exemplo. Ou seja, não é algo físico, mas o resultado direto do bom funcionamento do encéfalo, a parte do sistema nervoso central que fica no crânio e que abrange o cérebro, o cerebelo e o tronco cerebral. O coma é o contrário de tudo isso: um estado de inconsciência (ou consciência afetada) gerado por algum tipo de lesão no encéfalo, que causa a morte ou desativação de um grupo de neurônios, desligando ou afetando seriamente a consciência. Quanto mais grave a lesão (quanto maior ou mais específica a área afetada), mais profundo tende a ser o estado de inconsciência.

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A morte como ela é

O organismo tem bons motivos para fazer uma pessoa apagar. Em casos de acidentes graves – uma batida de carro ou uma pancada muito forte na cabeça –, qualquer energia preservada pode fazer a diferença entre a vida e a morte. Colocar o cérebro em stand by gera uma economia que pode ser utilizada na manutenção dos sinais vitais – pressão arterial, respiração e batimentos cardíacos. Os médicos copiam essa mesma tática no chamado coma induzido. Eles associam doses calculadas de remédios (geralmente barbitúricos, depressores do sistema nervoso central) com a redução da temperatura corporal para provocar o coma em pacientes que precisam preservar suas células cerebrais – em casos de cirurgia no cérebro, por exemplo. Reverter o quadro é simples: basta interromper aos poucos o processo de hipotermia e a medicação.

No coma natural, é impossível prever quanto tempo a pessoa fica apagada. Geralmente, a recuperação total da consciência acontece num período de 2 a 4 semanas. Quando o estado persiste por mais de um mês, as chances de melhora vão diminuindo gradativamente e o paciente entra num tipo de coma conhecido como estado vegetativo. Não há funções cognitivas nem resposta a qualquer estímulo externo. Mas não é o fim. Há vidas e vidas em coma. O que dois pacientes podem fazer e sentir varia enormemente, dependendo do grau de inconsciência.

A grande incógnita é o estado vegetativo. Se o funcionamento cerebral for mais intenso do que se pensa, o paciente pode se comunicar e sentir dor. O contrário do que a medicina sempre afirmou.

Vivendo apagado

O coma mais leve é o chamado estado minimamente consciente, em que a pessoa não se comunica direito, mas consegue balbuciar palavras curtas ou responder “sim” ou “não” por gestos. Geralmente, é uma fase de recuperação de um coma do tipo estado vegetativo, quando o paciente mantém os olhos abertos e atividades automáticas como a respiração, mas não reage aos acontecimentos ao seu redor. Ele está “acordado” (pode até chorar involuntariamente), mas sem sinal de consciência. O jogo termina de vez no estágio conhecido como morte cerebral, quando até funções automáticas do corpo ficam inativas. A “vida” será para sempre sem consciência e com a ajuda de respiradores artificiais, sem nenhuma esperança de ressurreição.

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A situação parece bem definida nos extremos da escala de inconsciência. Nos comas mais leves, a pessoa fica agitada, emite grunhidos, pode ter delírios e sentir dor. No estado de morte cerebral, o cérebro pára totalmente: não há reação, movimento ou sentimento. A grande incógnita é o estado vegetativo. A pergunta ainda não totalmente respondida é a seguinte: qual o grau de funcionamento cerebral nesse tipo de coma?

Se o cérebro estiver mais ativo do que imaginamos, a implicação mais óbvia é que, apesar das enormes limitações, sentidos e funções cognitivas poderiam conservar um pouco de sua ação. O aspecto mais polêmico é que pode até haver dor. A dor tem dois componentes. O primeiro é uma espécie de reflexo a um estímulo. Quando recebemos um beliscão, por exemplo, os receptores de dor junto à pele mandam uma mensagem para uma estrutura cerebral chamada tálamo, que comanda uma resposta do corpo – uma contração muscular, suponhamos, coisa que gente em estado vegetativo pode apresentar.

Mas é o segundo componente, o registro e a compreensão cerebral do estímulo de dor, que nos faz “sentir” dor de verdade. Isso, sim, depende da consciência. Aqui mora a polêmica: quase toda a literatura médica defende que pacientes em estado vegetativo não têm nenhum grau de consciência – logo, não entendem nada e não têm dor. Entretanto, um grupo minoritário – os defensores do biofeedback, que a gente apresenta mais para a frente –, duvida dessa tese. Com base em medições de ondas cerebrais, eles sustentam que o cérebro de pacientes em estado vegetativo também é capaz de emitir sinais elétricos. Ok, seriam sinais muito fracos para provocar qualquer movimento ou resposta visível. Mas indicariam que essas pessoas estariam apenas aparentemente inconscientes. A grande maioria dos médicos não nega a existência desses casos. Mas atribui sua existência a algum erro de diagnóstico – uma pessoa que, em vez de estado vegetativo, está imersa em um outro tipo de coma mais leve.

A certeza de sofrimento, porém, surge com toda a força para as pessoas que desenvolvem um tipo muito raro de coma (na verdade, um pseudocoma), chamado de síndrome do encarceramento. O nome diz tudo: o paciente está acordado e consciente, ouve, entende coisas e pode sentir dor. Mas, como está completamente paralisado e só é capaz de mover os olhos, os médicos podem declarar seu estado como vegetativo. O diagnóstico é dificílimo: a suspeita geralmente nasce de uma intuição da família e só é confirmada se um exame encontrar lesões em áreas específicas da parte inferior do cérebro. O italiano Salvatore Crisafulli, que teve a síndrome depois de ser atropelado por um caminhão de sorvetes, descreveu em 2005 o horror de passar dois anos nessa prisão corporal. “Os médicos diziam que eu estava inconsciente, mas eu entendia tudo. Tentava gritar, mas não podia.”

De volta à luz

O corpo humano é capaz de se regenerar de quase todo tipo de estrago. O fígado, por exemplo, tem tanta capacidade de regeneração que consegue restaurar todo seu funcionamento mesmo que até 70% dele seja retirado. O cérebro também se recupera. Pesquisas recentes derrubaram os mitos de que neurônios novos não nascem em adultos e que eles são incapazes de se regenerar. Mesmo assim, a “taxa de natalidade” e a capacidade de regeneração são inversamente proporcionais ao nível de especialização das células, o que significa que são baixíssimas para os neurônios. Mas, desde que o dano não seja extenso demais a ponto de afetar a própria capacidade de regeneração, o cérebro consegue retomar algumas de suas faculdades. Grupos de neurônios “apagados” podem recuperar seu metabolismo e voltar a funcionar. É a reativação da consciência – ao menos, de partes dela.

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O despertar não tem nada a ver com os melodramas hollywoodianos, com a pessoa acordando de uma vez do sono profundo. O mais comum é que o paciente vá aos poucos retomando a consciência, sem garantia de vida normal: nem sempre o cérebro se adapta às perdas. As seqüelas podem ser cognitivas (dificuldade para articular a fala, por exemplo) ou motoras (paralisia parcial, dificuldades de equilíbrio).

Ninguém sabe ainda o que faz alguém voltar do coma. Lembra do remédio para dormir que fez o sul-africano do início desta matéria recuperar a consciência? Pois então: o nome do medicamento é Zolpidem. Depois da descoberta acidental dos efeitos da droga, pesquisadores realizaram testes em vários outros pacientes com condição semelhante. Ficaram animados: a intensidade do coma diminuiu em 60% dos casos. Por quê? Não há resposta definitiva – uma hipótese é que, com o coma, os receptores cerebrais teriam sofrido uma alteração que reverteria os efeitos da droga.

Há uma alternativa mais radical: implantar eletrodos diretamente nos neurônios para estimular eletricamente partes do cérebro de comatosos. Em agosto do ano passado, a revista científica Nature trouxe o caso de um paciente em estado minimamente consciente por 6 anos que recuperou a consciência com o auxílio de leves descargas elétricas, que simulavam as correntes naturais do cérebro. A terceira linha de pesquisa leva em conta os estudos que identificam “ilhas” de atividade cerebral em pessoas em coma. O médico é guiado pelas pequenas respostas corporais do paciente – um simples piscar de olhos, um grunhido quase inaudível, ou ondas cerebrais sutis captadas por um eletroencefalograma. É o tal biofeedback de que falamos antes. Um dos grandes defensores da técnica, o neurocientista americano Bernard Brucker, monitora as ondas cerebrais dos pacientes e analisa sua resposta cerebral a estímulos – um som, por exemplo. A intenção é estabelecer um tipo de comunicação, mesmo que seja rudimentar, com os comatosos, fazendo com que um que computador responda aos sinais cerebrais do paciente.

O último atalho para a cura é a promessa de criar novos neurônios a partir de células-tronco para substituir os desligados. Como as outras alternativas, essa linha de pesquisa exige décadas de estudo até se provar eficaz. O caminho da cura é lento. É como se a esperança do renascimento estivesse em coma, mas com chances de recuperação.

O problema

O coma é conseqüência direta de um dano a uma das 3 estruturas do encéfalo: o cérebro, o cerebelo ou o tronco cerebral. O desligamento da consciência é mais provável se a parte afetada for o córtex, a área mais externa do cérebro, responsável pelas funções cognitivas. Quanto maior o trauma, mais profundo o coma.

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Para saber mais

Associação de Recuperação do Coma (EUA)
www.comarecovery.org

Associação Danos Cerebrais da América (EUA)
www.biausa.org

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