Coleta água da chuva , o fim da sede
O melhor projeto ambiental do Brasil é uma solução definitiva para a falta de água para beber no sertão. Com a construção de cisternas, o programa pretende, em cinco anos, transformar de uma vez e para sempre a vida no semi-árido.
Denis Russo Burgierman, de Afogados da Ingazeira, PE
A idéia é muito simples. O Programa 1 Milhão de Cisternas Rurais (P1MC) pretende, em cinco anos, construir uma cisterna – espécie de poço que coleta água da chuva – para cada casa do semi-árido nordestino. As conseqüências disso? Acabar, de uma vez, com a falta de água para beber no sertão. Reduzir drasticamente a mortalidade infantil. Combater o analfabetismo, aumentar a renda, organizar as comunidades. Enfraquecer o coronelismo, frear o êxodo rural, diminuir a desigualdade entre homens e mulheres, difundir o respeito pela natureza. Em resumo: mudar, de repente e para sempre, uma verdade que parecia tão antiga e imutável quanto o sertão: a de que não há água suficiente no Nordeste.
Há água, sim. Chove todo ano no semi-árido (se não chovesse, não seria “semi”). Mesmo na pior das secas, mesmo nos lugarejos mais esquecidos, a quantidade anual de chuva não fica abaixo de 200 milímetros (a medida se refere à altura da coluna de água que se acumula em um recipiente). É pouco. Mas é suficiente para dar água de qualidade para uma família de cinco pessoas beber por um ano. Basta arrumar um jeito de coletar essa água antes que ela suma no chão. E o jeito mais simples é instalando calhas dos dois lados do telhado para conduzi-la para um reservatório de concreto – a cisterna –, onde ela ficará protegida dos parasitas e da evaporação. A água que se acumula lá dá para uma família beber e cozinhar por um ano. Nos anos de seca, ela deve ser usada só para beber. Simples assim.
Simples, mas revolucionário. A idéia é fazer 1 milhão de cisternas – ou seja, suprir completamente a demanda do sertão. Por enquanto, só 4 000 saíram do papel – o projeto começou no final de 2001. Mas o ritmo das construções deverá aumentar exponencialmente, na medida em que mais cidades e ONGs se envolvem, mais patrocinadores se interessam (por enquanto, só o governo federal põe dinheiro, através da Agência Nacional de Águas) e mais governos assumem a construção de cisternas como política pública.
Sem obras faraônicas, o P1MC está mudando de forma radical a vida de milhões de pessoas, ensinando-lhes uma forma nova de se relacionar com o ambiente. A idéia é que é possível conviver com a seca em vez de combatê-la, desde que se entenda o que é a caatinga e que se tire dela os recursos de que a população necessita. Por causa disso, o programa foi escolhido o melhor projeto desenvolvido por ONG na categoria Água do Prêmio Super Ecologia e, em seguida, eleito para o Grande Prêmio Super pela maioria absoluta da comissão julgadora – quatro dos sete votos. Ou seja, é o melhor entre todos os 438 inscritos – o melhor trabalho ambiental desenvolvido em 2001 no Brasil, vencendo nomes bem mais conhecidos, como o da Associação Mico-Leão-Dourado e o Projeto Saúde e Alegria, também lembrados pela comissão.
A reportagem da Super foi ao sertão pernambucano conhecer o P1MC. Balançamos quatro horas e meia na estrada esburacada que liga Recife a Afogados da Ingazeira, no semi-árido, e depois chacoalhamos outra hora no banco de trás do jipe que nos conduziu, por uma estrada de terra, até a comunidade rural de Tuparetama, um conjunto de 28 casinhas espalhadas pelo Sertão do Pajeú, onde as cisternas estavam sendo construídas. O jipe pertencia à Diaconia – uma das quase 700 ONGs que integram a Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA), a coalizão de entidades de 11 Estados – nove do Nordeste mais Minas e Espírito Santo – que criou e está gerindo o P1MC.
A primeira coisa que percebemos é que o programa é muito mais do que construir cisternas. “Não somos uma empreiteira”, diz Arnulfo Barbosa, secretário executivo da Diaconia e coordenador do programa. “As cisternas não são apenas uma obra útil – são um instrumento pedagógico para ensinar cidadania”, afirma. Quer dizer, elas não são entregues às famílias como um presente caído dos céus. Quem quiser ganhar uma tem que suar – cavando o buraco de 1,8 metro de profundidade para abrigar a obra, carregando areia e brita. “Queremos o máximo de participação da comunidade, para que as famílias aprendam a valorizar a cisterna”, diz o agrônomo Osvaldo Ribeiro, o técnico da Diaconia que nos acompanhou pelo sertão. “Eles têm que ficar com a sensação de que foi algo que eles mesmos conquistaram.”
É o caso de Nelson Gonçalves Nunes, um agricultor de 51 anos que mora em Tuparetama. Quando chegamos na casa dele, Nelson estava misturando cimento. Lá perto, uma montanha de pedra e terra davam a dimensão da dificuldade que tinha sido cavar o buraco. “Meus filhos me ajudaram.” Nelson não reclamava do esforço. “Quero terminar logo. Se precisar, trabalho até as 10 da noite hoje. Isso aqui é bom demais. Vai mudar a nossa vida”, disse.
Vai mesmo. Uma das mudanças é que ninguém mais terá que sair andando sob o sol do sertão até o açude mais próximo. Açudes são baixadas onde se acumula a água da chuva – se é que dá para chamar de água aquele líquido barrento e quase sempre cheio de vermes que milhões de sertanejos bebem todos os dias. Calcula-se que, em média, uma família gaste uma hora por dia no penoso trajeto entre a casa e o açude – o que dá 30 horas por mês, ou quatro dias de trabalho. Ou seja, um mês e meio de trabalho é perdido todo ano só na tarefa de buscar água. Na casa da família de Nelson, a partir de agora, esse mês e meio a mais vai ser usado para produzir o sustento da família.
E não é só tempo perdido. Buscar água é uma atividade muito desgastante. Para começar, os açudes ficam quase sempre em lugares baixos – se não fosse assim, a água não escorreria para lá. Ou seja, quem busca água desce com a lata vazia e sobe de lata cheia na cabeça. E isso é um trabalho pouco valorizado que quase sempre cabe à mulher da casa. Com as cisternas, muda o status da mulher, aumenta seu tempo livre e sua participação na produção.
E não pára aí. Outra mudança radical que as cisternas operam é política. Tradicionalmente, no semi-árido a posse da água é dos poderosos. Cabe aos políticos mandar caminhões-pipa a cada vez que a sede aperta. Isso não sai de graça, claro. Caminhões-pipa são trocados por votos nas eleições. Comunidades que dão poucos votos a quem chega no poder ficam sem água. Esse controle dos recursos hídricos está na base do famigerado curral eleitoral, a prática política que impera em boa parte do Nordeste. “Não é à toa que muitos políticos estão incomodados com nosso programa”, diz Osvaldo. “Outro dia, um secretário da agricultura telefonou indignado, reclamando que não tinha sido comunicado das construções.” Tem até o caso de um prefeito da Bahia que se notabilizou por comandar uma campanha de destruição das cisternas.
Na casa de Maria do Socorro da Silva, de 50 anos, experimentei a água da cisterna recém-construída. Não tanto por interesse jornalístico, mais para me refrescar naquele calor terrível. Cristalina. Quase nenhum gosto de cloro – o pessoal do programa recomenda que a água tirada da cisterna fique guardada numa moringa de barro, com algumas gotas de água sanitária. Sem dúvida, um gosto melhor que o da água que eu tomo em São Paulo. Nem vamos comparar com a água marrom de açude que é a única alternativa de muita gente depois de passar o dia trabalhando no calor de 40 graus. Perguntei a Maria do Socorro se, antes de ter a cisterna, ela e o marido adoeciam muito por causa da água. Ela disse que não. Insisti: “Não tinha diarréia, essas coisas?” “Ah, diarréia tinha sempre, sim.” Desarranjos intestinais e verminoses eram tão comuns no lugar, que Maria do Socorro nem chegava a considerar esses males como “doença”.
De fato, o pessoal da ASA fez exames de saúde em uma comunidade da Bahia antes da construção das cisternas. Todos os habitantes – redondos 100% – tinham verminose. Depois do programa, os exames foram repetidos. Só 7% estavam doentes. Segundo a Unicef, de cada quatro crianças que morrem no sertão, uma é levada pela diarréia. O programa dará solução ao mais terrível problema de saúde da região. E ainda terá efeitos na educação. Afinal, diarréias são o principal motivo que leva as crianças a perderem aulas.
Outro efeito colateral do P1MC é estruturar as comunidades sertanejas. Um pré-requisito para uma comunidade ser escolhida para ganhar cisternas é mostrar organização suficiente. O lugarejo tem que eleger um líder e participar das reuniões que decidem quais regiões serão agraciadas primeiro. O resultado disso é que, ao final da obra, que dura só duas ou três semanas, o que sobra é um lugar estruturado, pronto para reivindicar outras coisas.
O P1MC também incentiva a organização comunitária com os cursos de dois dias dirigidos a todo mundo que ganha uma cisterna. Os moradores aprendem não só a lidar com a cisterna – mantê-la tampada, tirar as calhas e lavá-las na época da seca, descartar a primeira chuva do ano para deixar limpar o telhado, tratar a água com cloro –, mas têm também noções de ecologia e cidadania. Por exemplo, aprendem como encaminhar suas reivindicações às autoridades, como buscar recursos de ONGs e organismos internacionais para obras sociais. As aulas também discorrem sobre as características ecológicas do semi-árido e sobre as melhores maneiras de conviver com o ambiente.
E tem mais: o P1MC gera renda a milhares de pedreiros no Nordeste. Vários deles estão fazendo o curso oferecido pelas entidades que formam a ASA para aprender a erguer as cisternas. E, para cada obra concluída, eles ganham 100 reais. Pode parecer pouco, mas está muito acima da média do sertão (onde os salários são tão baixos que a maior fonte de renda é a aposentadoria rural). Dá-se preferência a pedreiros da própria comunidade.
As cisternas são feitas com placas pré-moldadas de cimento. Trata-se do modelo mais barato que o programa encontrou – algo como 700 reais, incluídos os 100 do pedreiro. O projeto não surgiu em nenhum gabinete com ar-condicionado – foi desenvolvido por um agricultor, a partir do know-how de quem convive com a seca. Essa, aliás, é uma das vantagens do programa. Não se trata de propor soluções de fora para dentro. As ONGs envolvidas, a maioria com nomes dos quais você provavelmente nunca ouviu falar, como CPT, Cefas e Technes, atuam no sertão há tempos e conhecem os problemas que querem resolver. A ASA nem sequer tem estrutura própria – usa as das ONGs associadas. Dessa forma, não gasta com salários, carros ou aluguel. Não é por outro motivo que 80% do dinheiro investido chega à ponta – ou seja, vira benefício para a população –, porcentagem altíssima para ONGs.
O P1MC dá uma nova dimensão ao conceito de “projeto ambiental” – não se trata apenas de proteger a natureza do homem, mas de ensinar o homem a conviver com a natureza. Por tudo isso – pela quantidade infinita de conseqüências, pela forma inovadora de organização, pela visão abrangente do problema –, o Programa 1 Milhão de Cisternas Rurais é o grande vencedor do ano. Brindemos. Com água.
Os finalistas
Para ganhar o prêmio de melhor ONG na categoria Água, o P1MC teve que derrotar, na final, o Grupo Gota D’Água de Proteção à Natureza, de Mangaratiba, Rio de Janeiro. O Gota D’Água mantém o inovador projeto Desenvolvimento Sustentável – Maricultura, cuja proposta é criar uma fonte de renda para as comunidades caiçaras da região – a criação de mariscos –, de forma harmônica com a natureza. O outro finalista era o projeto de Proteção aos Mananciais Através do Reflorestamento Ciliar, que busca resgatar as nascentes dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, no interior paulista.