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Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar

Tomei quatro facadas numa tentativa de assalto e saí no lucro: vivi para contar uma história particular sobre como banalizamos a vida.

Por Tiago Jokura Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 22 mar 2017, 16h24 - Publicado em 7 jul 2015, 20h45

Setecentos reais era quanto eu valia em 14 de maio de 2015, numa quase madrugada em São Paulo. Na hora, nem deu tempo de cotar no Google. Era o preço do telefone que eu carregava num beco escuro e que me conectou à ponta de uma arma branca, como as centenas que matam brasileiros todo mês.

O encontro foi às cegas e a abordagem do sujeito não deixava clara a intenção. Quando tentou tomar o celular e não concordei, firmamos as bases do contrato. Para ambas as partes, minha vida era tão obsoleta quanto o aparelho que eu carregava na mão. Nada mais, nada menos. Ele cumpriu a parte no acordo e executou o pagamento em quatro vezes. Só não liquidou a fatura por um erro na transação. Falha no sistema. Talvez provocada pela falta de energia elétrica na vizinhança. O breu se instalou na véspera, quando um sujeito vestindo uniforme de uma empresa de telecomunicações, adesivo no carro e tudo, fingia fazer reparos na rede enquanto roubava fiação. Para o pirata caçador de cobre eu valia, no máximo, R$ 15 o quilo.

No caminho para o hospital, a cotação pegou carona com o amigo que me socorreu. E acelerou pesado. Em poucos minutos, somando o valor das multas pelos sinais vermelhos furados e os limites de velocidade excedidos, estimo que minha vida tenha atingido o patamar de R$ 3.800: um recorde. Vou parar de calcular agora que cheguei ao auge. E ao pronto-socorro.

Mãos ao alto era a melhor posição para ficar na maca – assim incomodava menos a estocada no sovaco e a mais funda, que atravessou as costas e espetou o pulmão. Passadas algumas horas, hemograma, raio-x, tomografia e ultrassom informavam que o corpo estava bem. O último exame foi de consciência. Me dei conta de que assim como o telefone foi poupado também não me tiraram o juízo. Minha fome, de quase 24 horas por causa do período de observação clínica, não era de vingança e não tinha nada a ver com redução disso, criminalização daquilo e pena de sei lá o quê. Foi só então que me senti a salvo – de mim mesmo. Percebi que o choque não me paralisaria, que não me interessava o sangue nem o sofrimento do meu algoz, e que continuaria disposto a seguir pelos mesmos caminhos de todo dia. Ainda que reagir assim fosse andar na contramão. Dentro e fora do hospital, reparei que ignorar a revolta, o revide e o medo choca mais do que levar facada na rua.

O que se espera de uma vítima de FAB (sigla que os plantonistas usavam na emergência para meus “ferimentos por arma branca”) é trocar de caminho, de meio de transporte, de casa, de país. Foi o que me sugeriram várias vezes. Continuar levando a mesma vida chega a ser ofensivo para alguns, condenável mesmo: fui e ainda sou acusado de ser inocente demais. Longe disso. Só não quero perder a conexão com o lugar em que vivo e com as pessoas que cruzam comigo. Deixar de circular é matar um pouco a própria cidade. Quanto menos gente na rua, mais ela vira território hostil, terra de ninguém. Transitar pela rua, para mim, é inegociável, um jeito simples de valorizar a vida. Acho muito mais arriscado viver como se ela não valesse nada: levando facada como se fosse do jogo, por exemplo. Até hoje, a pergunta que mais ouço sobre o episódio, a preocupação mais latente que se manifesta ao notarem estar tudo bem comigo, é “mas ele levou o celular?”. A maioria se decepciona ou se revolta quando mostro o telefone velho e estilhaçado. Como se o assalto fosse justificável se tivesse cumprido seu objetivo. É a versão com cortes do “estupra, mas não mata”: o “esfaqueia, mas leva”.

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Passada uma semana da violenta negociação, sentei para escrever este texto diante do noticiário e entendi melhor a banalização do esfaqueamento: minha história não era nada especial. Um ciclista fora morto a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas, que conecta alguns dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro. Uma turista chilena, ferida no pescoço enquanto tomava sol na Glória, também no Rio, também pela tal da arma branca. Para completar o bloco, um cidadão carioca, portando um facão, foi preso preventivamente antes que tivesse a chance de negociar a vida de alguém por aí. Poucos minutos depois, no meu bairro paulistano, passei por cima de marcas de sangue pisado na esquina. Elas indicavam a trajetória final de alguém arrastado do asfalto até a calçada por onde passo todo dia levando e trazendo meu moleque da escola. Isso para não mencionar outras milhares de mortes semelhantes que não ocupam manchetes nem boletins de ocorrência.

A epidemia de crimes com armas brancas no Brasil é ilusória. Mas ainda somos o país em que mais se mata no mundo.

Estamos armados e desarmados até os dentes. Somos o país em que mais se mata no mundo (64 mil homicídios em 2012, segundo a Organização Mundial de Saúde). A violência é tão cotidiana e gratuita que a discussão sobre liberar a posse de armas de fogo aos cidadãos soa irrelevante, já que sequer precisamos delas para violentar uns aos outros – embora ainda sejam preferência nacional. Tem-se falado muito sobre uma epidemia de crimes com armas brancas com suposto foco no Rio de Janeiro. Números da Secretaria Estadual de Segurança fluminense, porém, indicam que o cenário é ilusório – o Estado, inclusive, é onde menos se mata a facadas no Brasil*. Nos primeiros quatro meses de 2015, houve 660 ocorrências deste tipo contra 890 no mesmo período de 2014 (diminuição de 26%). As mortes se mantiveram estáveis: 77 nos dois períodos. Seguindo no universo da pesquisa, o uso de objetos cortantes ou perfurantes se deu em 8,6% dos latrocínios (roubos seguidos de morte) e em 4,2% dos homicídios. É pouco comparado aos registros de crimes com armas de fogo, envolvidas em 59,9% dos latrocínios e 62,7% dos homicídios. Por outro lado, ter quase 20 mortes a facada todo mês em um único Estado brasileiro não pode ser aceitável.

Assim como não dá mais para tolerar a liquidação da vida por aqui. Nem a noção generalizada, entre golpeadores e golpeados, de que matar por causa de um telefone, de uma bicicleta ou de um par romântico faz parte do negócio. E de que temos direito de revidar e de impor ao agressor a mesma violência que nos vitima. Reagir assim é admitir negociar o quanto a vida vale. E nesse tipo de negociação, a do outro sempre vale menos que a minha, que vale menos que a do outro, sucessivamente. Depreciação após depreciação, zeramos o valor da vida.

* Dados do Mapa da Violência 2015, referentes a homicídios ocorridos em 2013.

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