O projetista da máquina do tempo
Numa época em que designers de carro eram chamados de estilistas, o paulistano Ari Rocha lançou moda com um protótipo que antecipou, em décadas, soluções de mobilidade urbana, segurança e aerodinâmica válidas até hoje
A viagem no tempo mais recente do Aruanda foi um sucesso. Num salto de 80 anos, a máquina criada em 1964 foi parar no clipe Duas de Cinco + Cóccix-ência, do rapper Criolo. Em quase dez minutos, o filme mostra um futuro imaginário no bairro paulistano do Grajaú em 2044. O microcarro faz uma ponta em meio a drones espiões, hologramas, celulares transparentes, sistemas de reconhecimento facial e assaltos com armas feitas em impressoras 3D. Só dois upgrades ficcionais foram inseridos no veículo: um painel digital e a direção autônoma. Na cena do Aruanda, duas moças conversam enquanto o veículo roda sozinho pela comunidade.
Se até hoje o Aruanda pode ser visto como um carro do futuro, é fácil imaginar como foi recebido 52 anos atrás. “O Aruanda era o carro certo na hora errada. Então a ideia parecia uma brincadeira”, avalia Sérgio Berezovsky, jornalista especializado no setor automotivo. “A indústria caminhava em sentido oposto, com carros grandes e opulentos.Era tão avançado que praticamente não fazia sentido. O mercado não estava preparado para um projeto como aquele”, fruto da imaginação e da paixão por automóveis do ainda estudante de arquitetura Ari Antônio da Rocha, de 22 anos.
Na contramão
Ari Rocha sonhava em ganhar a vida trabalhando com carros, mas, pela falta de cursos de design automotivo no País, acabou cursando arquitetura na FAU-USP em 1960. E foi graças ao contato com o urbanismo que o Aruanda nasceu, resultado de uma discussão (amigável) com um professor. Rocha contestava as crenças defendidas pelos catedráticos, que viam os automóveis como maravilhas modernas das metrópoles e defendiam a restruturação das cidades para abrigar a crescente frota nacional. “Sou um entusiasta do automóvel, mas as cidades têm de ser feitas para as pessoas, não para os carros”, afirma Ari, expressando uma ideia que hoje soa óbvia, mas que nos anos 1960 era um sacrilégio. Movido por esse ideal, o estudante imaginou seu protótipo como um carro compacto, econômico, ecológico, acessível e produzido no Brasil – características diametralmente opostas ao que se via nas ruas então.
À época, o trânsito nas grandes cidades brasileiras já incomodava muita gente. A revista Quatro Rodas, na edição de março de 1964, afirmava que estávamos à beira de um colapso urbano. Com a chamada “Trânsito sufoca São Paulo”, a publicação propôs um debate com legisladores, engenheiros de tráfego, urbanistas e donos de transportadoras para discutir o problema, que já era um dos principais percalços da cidade. E isso considerando uma frota paulistana minúscula comparada à atual: 290 mil veículos – só em 2014, a cidade emplacou 186 mil. Hoje, são mais de 8,1 milhões de carros, quase o dobro da população daquela década. “Desde os anos 1940 enfrentamos engarrafamentos em São Paulo. Então faz mais de 70 anos que a população e os governantes não enxergam a solução para esse problema urbano – que é transporte público eficiente e, principalmente, confortável”, afirma Ari. “Se não for convidativo, ninguém vai deixar o carro para se apertar e viajar em pé por horas.”
Em 1964, o projeto do Aruanda foi exposto no Salão do Automóvel de São Paulo e recebeu o Prêmio Lúcio Meira, um reconhecimento expressivo na cena automotiva nacional. A notícia chegou a Mario Fissore, famoso carrozziere italiano que se ofereceu para construir um único exemplar do carro. Ari juntou uns trocados para ir à Itália e acompanhar o processo. O protótipo do Aruanda foi exibido no Salão de Turim de 1965 e aclamado como o carro-conceito mais inovador. O hype em cima do compacto brasileiro foi tanto que ele virou capa de revista (Il Carrozziere Italiano), chamando a atenção da indústria para o potencial criativo do brasileiro. Ari aproveitou o embalo e estreitou laços com alguns dos maiores designers e fabricantes de carros da época, como Pininfarina, Enzo Ferrari e Soichiro Honda.
Após tentativas frustradas de fabricar o carro pelas nacionais FNM e Gurgel e pela japonesa Honda – cuja negociação foi barrada pelo governo brasileiro -, o destino do Aruanda foi permanecer na mente de seu criador. Levaria 35 anos até que um carro com proposta semelhante ganhasse as ruas. Em 1998, o smart fortwo começou a ser vendido na Europa com relativo sucesso. Antes disso, os subcompactos explodiram no Japão dos anos 1980. Lá, os kei cars, carrinhos minúsculos com motores de 660 cm³, têm incentivo do governo e se tornaram uma categoria própria do país – o segmento tem alíquota de impostos menor, pois os modelos consomem e poluem menos, além de otimizar a ocupação do espaço urbano.
Caçador de soluções
Na primeira metade do século 20, o Brasil importava muitos automóveis americanos. Eles pesavam 2 toneladas e tinham motores enormes, que rodavam menos de 3 km por litro de gasolina. Para Ari, esse modelo era ótimo para a indústria, mas péssimo para a população. Lembra da Quatro Rodas citada há pouco no texto? Além da reportagem sobre o caos urbano provocado pelos carros, a edição de 52 anos atrás também continha sua tradicional tabela de preços de veículos usados. Uma lista de sonhos para qualquer entusiasta: Cadillac De Ville, Chevrolet Impala, Bel-Air, Ford Galaxie e Studebaker Starliner eram os nomes pomposos das banheiras mais desejadas do momento – nenhuma com menos de 5 m de comprimento.
Em uma pesquisa informal, feita em 1963, Ari e um grupo de colegas descobriram que 93% dos carros que rodavam em São Paulo carregavam apenas uma pessoa e pouca carga. Os dados indicavam o absurdo que era dirigir carros tão grandes e ineficientes. Pela lógica, veículos menores ocupando menos espaço permitiriam que mais pessoas utilizassem as vias. Custariam menos, consumiriam pouco combustível e, principalmente, não poluiriam tanto. Mas nada disso importava ainda – o uso obrigatório do catalisador para reduzir a toxicidade dos gases emitidos pelo motor só rolou no Brasil 33 anos depois do Aruanda. “Nem a população, nem os profissionais da indústria associavam o carro com a poluição das cidades”, diz Rocha. “Fui motivo de piada quando apresentei esse tipo de ideia”, lembra.
De volta para o futuro
Após ser exibido em várias cidades, o Aruanda foi levado para reparos na sede da Puma, antiga fabricante nacional de carros esportivos. Mas o galpão da empresa foi destruído por uma enchente e o carro sumiu. Cerca de 30 anos depois, foi localizado em Bauru (SP). O chaveiro Oswaldo Petroni Jr. entrou em contato com Ari para devolver o protótipo, que, desde 2008, está sendo restaurado em São Paulo.
Entre os urbanistas da época, a única preocupação acerca do automóvel era favorecer a mobilidade de indivíduos. E os projetos não envolviam a diminuição dos carros, transporte coletivo de alto fluxo ou a combinação destes e de outros modais. “Eu era contra os projetos de urbanização dos anos 1940 e 1950. Há 70 anos os governantes só fazem expandir vias asfaltadas”, critica Ari. “O que aconteceu nas metrópoles brasileiras foi um absurdo. Milhares de pessoas desalojadas para a construção de avenidas que nunca deveriam existir”, defende. “Não podemos desapropriar bairros inteiros para abrigar o automóvel. Isso é criminoso.”
Outro ponto quase desprezado pela indústria e valorizado por Ari foi a segurança. O projetista pensou numa barra para proteger os ocupantes contra impactos laterais – a Volvo, fabricante notória por sua preocupação com segurança, só lançou um sistema de proteção lateral incorporado à carroceria em 1991. A ideia de instalar o reforço veio da leitura de prontuários médicos no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Ari notou que a maioria dos acidentes de trânsito leves provocava ferimentos na bacia e no fêmur dos ocupantes. Esse tipo de barreira transformava o Aruanda em uma célula de segurança – embora o conceito pareça óbvio hoje, era pouco difundido entre os grandes fabricantes.
Doutor pioneiro
Após se graduar, Ari Rocha continuou causando discórdia no mundo acadêmico. Sua tese de doutorado, defendida na própria FAU em que se graduou, foi comprometida por outras ideias inovadoras. “Perdi pontos quando sugeri a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) em um cartão magnético”, lembra. Rocha projetou um serviço de compartilhamento de carros cujo funcionamento estaria atrelado ao documento. De acordo com Ari, bastaria que o usuário liberasse o funcionamento do carro com o cartão – multas, cobranças pelo uso e responsabilidade do condutor em caso de acidentes seriam atribuídas ao motorista de forma automatizada. “Essas ideias foram rejeitadas no trabalho.” Para Berezovsky, Ari Rocha era um vanguardista. “A ideia de um carro compartilhado era vista como perigosa, coisa de comunista”, diz o jornalista.
Rocha também propôs a limitação de acesso de veículos particulares aos centros urbanos e a criação de bolsões de estacionamento à beira de grandes avenidas – onde seria possível alugar carros, devolvendo-os em outros bolsões. Ou conectando esses grandes estacionamentos a outros modais, como ônibus, bondes e metrô. Ou até bicicletas – ideia que ele trouxe de Amsterdã em uma viagem a passeio. “Ari não estava dez anos à frente de seu tempo, mas 50. Era tão avançado que suas ideias pareciam não fazer sentido”, completa Berezovsky.
Talvez por isso não tenha feito carreira na indústria automotiva. Antes de se graduar, Rocha teve experiências profissionais na montadora Vemag e na Mercedes-Benz. Na primeira, como estagiário, atuou na criação de um setor de estilo e propôs mudanças no acabamento da perua Vemaguet, com o objetivo de cortar custos de produção. Também usou seu poder de observação para simplificar processos produtivos e reduzir o tempo de fabricação dos automóveis. Mas Rocha não chegou a mudar de cargo. Preferiu deixar a fábrica para concluir os estudos. E acabou se tornando o primeiro brasileiro com título de doutorado em design – outro sinal de seu pioneirismo e visão.
No entanto, Ari Rocha, hoje aos 74 anos, não aceita ser chamado de visionário. Chega a se incomodar com o rótulo. “Nunca fui revolucionário nem gênio. Sou apenas um observador atento. E também não tenho medo de arriscar. Costumo dizer que sou o tipo de pessoa que dá o próximo passo quando os outros param”, define Ari.
Pequeno notável
Apesar de não ter sido fabricado em série, o Aruanda foi o precursor de modelos como o smart e o Classe A
1. Supercompacto: transportava até três pessoas. As portas de acrílico sobre trilhos resolviam dois problemas: não exigiam espaço entre as vagas para abri-las e diminuíam o peso do carro.
2. À frente: o design dianteiro, tão comum hoje, era inédito.
3. Tanque: projetado na lateral para poupar espaço.
4. Segurança: barras laterais de proteção foram uma inovação que só foi adotada, pela Volvo, 27 anos depois.
Tesla brasileiro: um motor elétrico era o sonho de Ari para equipar o carro – ele já se preocupava com a emissão de gases tóxicos há mais de 50 anos. Até hoje o carro nunca foi motorizado.
Vento na cara: a frente única em forma de cunha foi uma inovação adotada pela indústria anos depois. O objetivo era aumentar a visibilidade e reduzir a resistência do ar, diminuindo o consumo.
Banheirinha: após mais de 50 anos, o Aruanda ainda é menor que os compactos atuais. Compará-lo aos modelos mais desejados de sua época chega a ser covardia: nos anos 1960, era comum que os carros tivessem 5 m de comprimento.
Carro coletivo
Outro projeto inovador de Ari envolvia o compartilhamento de carros – como o Zipcar, que roda hoje em dia nos EUA – para deslocamento até regiões centrais das cidades. O acesso ao sistema se daria por uma carteira de motorista magnética portando os dados do usuário.