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Uma dose de veneno, por favor

Ao contrário das picadas de outras cobras, que costumam doer muito, a da cascavel provoca apenas uma sensação de formigamento. Agora já se sabe o motivo: na saliva dessa espécie existe um potente analgésico que, por não ser tóxico, deverá ser transformado em remédio

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h27 - Publicado em 30 set 1992, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

O cliente se aproxima do balcão da farmácia e, quem sabe mal disfarçando o desespero, pede um comprimido à base de veneno de cascavel. Nada mais apropriado para sua necessidade: matar a dor que o atormenta. Por enquanto, a cena é pura ficção, mas logo será realidade. Há dois anos, no Instituto Butantan, em São Paulo, a farmacêutica Renata Giorgi trabalha duro para que isso seja possível. Ela descobriu um poderoso analgésico no veneno da cascavel, talvez muito mais forte do que a morfina. “Serão necessários dois a três anos para isolar essa substância”, conta a pesquisadora, que realiza o estudo orientada pela biomédica Yara Cury, no Butantan, e com a colaboração da bióloga Maria Martha Bernardi, da Universidade de São Paulo. “Depois disso, a indústria farmacêutica deve consumir outros cinco anos em testes de praxe, para analisar a tolerância das pessoas ao medicamento, entre outras coisas”, diz ela, sem esconder o entusiasmo quando começa a descrever o passo a passo de sua investigação.

Em 1990, ela começou o estágio no Butantan, pesquisando os mecanismos da inflamação. Não era exatamente o que desejava fazer, admite: “Um ano antes, havia assistido a uma palestra sobre o processo da dor e, a partir daí, me interessei pelo assunto”. Não foi à toa, portanto, que chamou a atenção da moça irrequieta o fato de pessoas picadas pela cascavel não sentirem dor no local e, sim, um leve formigamento. “Geralmente, as picadas de serpentes doem muito”, explica. Intrigada, a farmacêutica só sossegou quando obteve licença para procurar a resposta. Na biblioteca não havia nada, pelo menos no que se publicou nos últimos trinta anos, tudo lido com muito cuidado. O velho álbum de recortes organizado por um antigo diretor do Butantan, providencialmente recolhido por um colega, reabriu o caminho para a pesquisa.

Graças a essa coleção, Renata ficou sabendo que, no começo deste século, cientistas europeus usaram o veneno da naja para aliviar dores diversas — na mesma época em que Vital Brazil, fundador do Instituto Butantan, estudava o veneno de cascavel para tratar a dor de pacientes cancerosos. “Encontrei uma bula sobre a aplicação analgésica desse veneno, feita provavelmente entre 1935 e 1940”, conta a pesquisadora. A primeira experiência de Renata, para testar o veneno, foi injetar ácido acético, o popular vinagre, em camundongos. As aplicações no peritônio, a membrana que reveste internamente o abdome, provoca contorções, indicando a reação de dor nos animais. Em metade dos ratos, porém, Renata havia injetado, vinte minutos antes, uma dose de 0,5 micrograma de veneno de cascavel. “Nesse grupo, o número de contorções reduziu-se em 70%”, ela conta. “Se isso aconteceu, era por que o veneno tinha efeito analgésico.

” Renata sabia que esse modelo de experiência era ideal para estudar as dores inflamatórias, que envolvem substâncias irritantes. Existem dores, porém, que são disparadas diretamente pelo sistema nervoso central, como a de uma pessoa que encosta a mão em um ferro quente. Por isso, numa segunda etapa, os camundongos foram testados em placas aquecidas, num aparelho improvisado — uma fôrma em banho-maria, na qual eram colocados os animais. Pacientemente, a pesquisadora cronometrava quanto tempo os animais levavam até lamber as patas, sintoma de que buscavam alívio para a sensação de queimadura. Mais uma vez, as injeções de veneno se mostraram eficazes na redução da dor, ao se observar a longa espera até surgirem as primeiras lambidas. “Tudo bem, nessa altura eu tinha certeza de que ali existia algum analgésico. Mas, e se ele fizesse parte do grupo de moléculas tóxicas que compõem o veneno?

Essa era a dúvida”, recorda a pesquisadora. Para resolver a questão, Renata neutralizou a substância com soro anti-veneno antes de injetar nos camundongos. Nessas condições, repetiu as duas experiências. Foi, então, a sua vez de sentir alívio: “Os resultados continuaram os mesmos. A substância analgésica não era tóxica.” Outra descoberta foi feita em seguida: ao dar veneno para os animais pela boca, como se fosse um xarope, as substâncias tóxicas eram degradadas, mas o efeito analgésico permanecia. “Não importava a quantidade, os animais continuavam vivos, porque as moléculas venenosas eram arrasadas no aparelho digestivo.” Nas ocasiões mais inesperadas, a cabeça da pesquisadora volta a sintonizar no trabalho: “Posso me tornar chata, porque não paro de falar das minhas experiências, em qualquer canto, com qualquer pessoa”, diz ela. “Mas nesse caso foi ótimo. Numa festa, comecei a conversar com um médico, um ilustre desconhecido, e ele acabou me dando uma grande idéia: tratar o veneno com substâncias ácidas, para retirar as moléculas tóxicas.” Tem lógica.

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Tudo o que cai no estômago é atacado por verdadeira chuva ácida, dos suco digestivos. Recentemente, pesquisa do novo analgésico foi enviada para publicação na revista inglesa Toxicon, famosa entre os especialistas em mecanismos de ação dos venenos. “Agora, quero saber qual a natureza química desse analgésico”, revela a farmacêutica Para descobrir isso, ela vem usando filtros com poros minúsculos. No primeiro deles, passaram moléculas com menos de 10 quilodaltons (unidade de peso molecular), deixando para trás uma solução com moléculas mais pesadas. O peso molecular é uma espécie de impressão digital de uma substância: uma vez determinado, é mais fácil identificá-la As duas soluções — a filtrada e a que não passou pelo filtro — foram experimentadas nos camundongos e, desse modo, descobriu-se que a molécula de analgésico pertence ao grupo de menor peso.

Chegou o momento de cercar essa substância, fazendo o veneno passar por filtros capazes de reter moléculas cada vez menores. “O trabalho é minucioso, daí a lentidão”, explica a pesquisadora, mostrando pilhas de anotações na mesa, sob as fotos de Itapetininga, cidade paulista onde nasceu. Renata não duvida da aceitação do medicamento, apesar de parecer estranha a idéia de tomar veneno para eliminar a dor. “Existe esse preconceito, mas ele deverá ser superado, quando as pessoas se derem conta da ausência de perigo e da eficiência do remédio. Eu mesma penso em beber um copo desse santo veneno, se sentir muita dor no parto”, brinca ela, agora que sua gravidez chegou ao quarto mês.

Para saber mais:

O veneno do bem

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(SUPER número 4, ano 11)

Rãs anestésicas

Por Marcelo Affini

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Não é só o veneno de cobras que pode dar origem a analgésicos. Sapos, rãs e pererecas também produzem substâncias malignas que mostram outra face quando analisadas em laboratórios. No National Institute of Health de Bethesda, nos Estados Unidos, pesquisas realizadas pela equipe do professor John Daly revelaram que a secreção liberada pela pequena rã Epipedobates tricolor, natural da Colômbia, Peru e Equador, embora altamente tóxica, é rica em uma substância denominada epibatidina, um analgésico duzentas vezes mais forte do que a morfina. “Quando o anfíbio é abocanhado, sua pele libera substâncias tóxicas para irritar a mucosa do predador e conseguir se libertar”, conta o biólogo paulista Werner Bockermann, que há 42 anos se dedica a estudar esses animais. Até aí, nenhuma novidade. Mas que essa secreção pudesse gerar potentes analgésicos, disso poucos sabiam. Atualmente, no Brasil, uma equipe da Universidade de Brasília (UnB), chefiada por Antonio Cebben, também estuda a nova face desses venenos. Pesquisando o sapinho-amarelo (Brachycephelus ephippiam), da Mata Atlântica, os cientistas brasileiros descobriram que sua secreção traz uma neurotoxina de ação analgésica que funciona como anestésico local.

Há dores… e dores

Testes com camundongos mostram a eficiência do veneno em avaliar dois tipos de sensações dolorosas1ª. experiência: efeito em dores, como as das inflamações em geral, que são causadas por substâncias irritantes 1- os camundongos recebem injeções de ácido acético na barriga 2- Metade deles toma uma dose mínima de veneno 3- A metade que não recebeu veneno tem 70% mais contrações de dor 2ª experiêncta: efeito em dores, como as do câncer, provocadas por estímulos do sistema nervoso1 Os animais ficam sobre uma chapa, aquecida a 50 graus Celsius2. A metade que recebe veneno demora quase o dobro do tempo para reagir ao calor3. Os outros começam a lamber as patas, sentindo a queimadura.

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