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Vagas nos hospitais: o calcanhar de Aquiles no combate à Covid-19

O Brasil é o único país com mais de 200 milhões de habitantes e um sistema universal e gratuito de saúde, mas a falta de leitos é trágica.

Por Alexandre Versignassi Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 24 mar 2020, 14h32 - Publicado em 20 mar 2020, 13h40
Ambulatório improvisado num pavilhão de exposições, na cidade de Chemnitz, na Alemanha, fotografado no dia 16 de março, um dia antes de abrir as portas. Trata-se de um centro de triagem: quem tiver sintomas de coronavírus pode se dirigir até lá para receber os primeiros cuidados e, se for o caso, fazer o teste e ser encaminhado a um leito de hospital. (picture alliance/Getty Images)

O novo coronavírus, o velho influenza da gripe espanhola e uma anciã, a bactéria da peste bubônica, estão conversando num bar. O vírus daquela gripe que matou 50 milhões de pessoas entre 1918 e 1919 toma uísque e fuma charuto. A Yersinia pestis, que eliminou pelo menos um terço da população europeia no século 14, bebe um cálice de sangue. O jovem corona se contenta com uma cerveja. E toma a palavra:

“Pessoal, meu ponto não é matar pessoas só por matar. Mas conscientizar a sociedade sobre o acesso à saúde pública”.

“Ah, esses millennials…”, suspira a bactéria da peste.

Essa é uma piada que está rodando pelo Whats, em forma de cartum. Aqui:

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Enquanto isso, no The Rat and Bat… (reprodução/Superinteressante)

E ela traz um fundo de verdade. Na época da gripe espanhola, o conceito de saúde ainda engatinhava. Na da peste bubônica, a humanidade ainda era refém do xamanismo. Agora é diferente.

Boa parte do planeta conta com sistemas de saúde funcionais. Prova disso é que, em 1950, a média de expectativa de vida no mundo era de 45 anos; em 2020, 72 anos – 75 no Brasil, 79 nos EUA, 83 na Coreia do Sul. A expectativa de vida de um país, vale lembrar, é um reflexo de dois aspectos do sistema de saúde local: a qualidade dos hospitais e o acesso que a população tem a eles.

Na Coreia do Sul, a qualidade é alta, e o acesso, universal. Os EUA abrigam os melhores hospitais do mundo, mas o acesso é censitário: quem não tem grana está fora. O Brasil, sabemos todos, está longe de ser um centro de excelência, mas desde a criação do SUS, em 1990, toda a população tem direito a saúde gratuita, incluindo remédios caros lá fora, como os antivirais para portadores do HIV.

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A VANTAGEM DO SUS

A sigla do Sistema Único de Saúde causa alergias, é verdade – o que vem à mente, afinal, são as filas, os corredores lotados de macas, a falta de esparadrapo, os seis meses de espera por uma consulta com um especialista.

Por outro lado, hoje é impossível imaginar como era antes. Até o final da década de 1980, só os trabalhadores com carteira assinada tinham direito a assistência médica gratuita, pelo finado INPS. Quem fosse autônomo e não tivesse plano de saúde era considerado “indigente”.

A mera existência do SUS, portanto, já é uma vitória. Ainda mais se você levar em conta o quão raro isso é em países populosos. O Brasil é o único com mais de 200 milhões de habitantes a ter um sistema de saúde universal e gratuito. Nos EUA, que têm um PIB per capita sete vezes maior que o nosso, há 28 milhões de indigentes, que não têm assistência nenhuma, nem pública, nem privada.

Lá, existem dois sistemas públicos: o Medicare, que atende idosos sem cobrar, e o Medicaid, para quem vive perto ou abaixo da “linha de pobreza”. Para os padrões brasileiros, a linha de pobreza oficial dos EUA é um luxo. Ela varia de Estado para Estado, mas, na média, dá o equivalente a R$ 10 mil por mês de renda para um lar com quatro pessoas. Vale lembrar que a renda familiar média nos EUA é de R$ 24 mil mensais (cinco vezes a daqui), e que o dólar alto de 2020 acaba inflando os valores americanos na nossa moeda.

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Seja como for, o Medicaid cobre as despesas médicas e hospitalares de quem está até 33% acima dessa linha de pobreza, o que dá 72 milhões de indivíduos.

Não é pouco, lógico. Dá quase um em cada quatro americanos. Mesmo assim, 8,5% da população de lá se situa num grupo peculiar: não se enquadra no Medicaid nem tem dinheiro para bancar um plano de saúde.

A SAÚDE NOS EUA

Em 2007, Michael Moore lançou o documentário Sicko, que mostrava os perrengues desse extrato social. Ali ele apresenta um certo Rick, um sujeito que teve a ponta do dedo médio e do anular decepados numa serra elétrica caseira.

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Rick não tinha plano de saúde. Chegou a um hospital levando as pontas de seus dedos numa sacolinha. Os médicos avisaram: colocar o dedo médio de volta custaria US$ 60 mil. O anular, US$ 12 mil. Sem ter como pagar pelos dois, Rick dispensou o reimplante da ponta do dedo médio, que foi parar no lixo. Essa situação pode complicar a lida com o coronavírus por lá. Em meados de março, a taxa de mortalidade entre os infectados no Estado de Washington, que abriga Seattle, a cidade onde o vírus chegou primeiro, estava em 6,5%. Maior do que no Irã (5%), e equivalente à da Itália (8%).

A Itália é um capítulo à parte. O país tem seus SUS, o Servizio Sanitario Nazionale, e a qualidade é relativamente alta. O problema ali foi a rapidez com que o corona se espalhou – talvez por falta de precauções adequadas nos estágios iniciais. A Itália, afinal, foi o primeiro grande foco da doença no Ocidente, e acabou pega despreparada. Seu sistema de saúde não deu conta de oferecer tratamento adequado.

Sim, não existe remédio contra a Covid-19, mas você pode manter vivo um paciente com os pulmões já em estado grave, com o uso de respirador mecânico, por exemplo, e ganhar o tempo necessário para que o sistema imunológico dele se livre do vírus. Cada minuto a mais conta. E a Itália simplesmente não tinha aparelhos para todo mundo que precisava deles.

Na Alemanha, onde a curva de casos cresceu mais devagar, o índice de letalidade estava bem menor na mesma época: 1%, contra os 8% da Itália. Outro fator que ajudou os germânicos, diga-se, foi o número de leitos de hospital disponíveis. Eles têm 8 para cada mil habitantes. Na Itália, são 3,2. Nos EUA, 2,8.

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A Coreia do Sul também mantém sua taxa de mortalidade por coronavírus abaixo de 1% em boa parte graças aos seus 12,3 leitos para cada mil habitantes. O Brasil? Vem bem atrás. Temos só 1,9 leito para cada mil pessoas – pouco mais do que o Irã (1,5). É possível comparar a quantidade de leitos hospitalares ao redor do mundo aqui.

Ou seja: sem uma ação rápida do poder público para a abertura de mais vagas hospitalares, estaremos diante de uma tragédia. O coronavírus, tal qual a piada lá do início, deve revelar a verdadeira face do nosso sistema de saúde. E, apesar dos méritos do SUS, ela é aterradora.

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