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A outra face de Chagas

Cientistas descobriram um segundo microorganismo responsável pela doença transmitida pelo barbeiro. Agora, será necessária uma nova estratégia para erradicar o mal.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h31 - Publicado em 31 mar 2000, 22h00

Ivonete D. Lucírio

Abriu-se uma frente de batalha inimaginada na guerra contra o mal de Chagas. Depois de noventa anos, a ciência descobriu que o inimigo não é só um, mas dois – o que exige novas estratégias para o controle da propagação da doença. Descoberto em 1909 pelo sanitarista mineiro Carlos Chagas (1878-1934), o Trypanosoma cruzi sempre foi o principal adversário, embora se soubesse desde a década de 70 que havia dois grupos desse protozoário, identificados como Z1 e Z2. Há dois anos, os pesquisadores Ricardo Souto e Bianca Zingales, da Universidade de São Paulo, juntos com Otávio Fernandes, da Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, suspeitaram que os dois grupos, na verdade, eram espécies diferentes. Em abril passado, em um simpósio internacional, no Rio de Janeiro, eles anunciaram sua tese.

“Essa descoberta nos ajudará a entender melhor a epidemiologia da doença”, confirmou à SUPER o médico João Carlos Dias Pinto, do Instituto Renè Rachou, em Minas Gerais. O bichinho descoberto por Chagas era do grupo Z1, responsável por mais de 75% dos casos da doença e mais agressivo para o homem que o Z2, recém-identificado. Apesar de bem adaptado ao Brasil, o Z1 é originário do hemisfério norte.

Segundo Bianca Zingales e o biólogo molecular Marcelo Briones, da Universidade Federal de São Paulo, as duas espécies começaram a se diferenciar na Pré-História. “Há 80 milhões de anos havia apenas um tripanossomo”, diz Briones. Com a separação dos continentes, dois grupos ficaram isolados, evoluindo separadamente. Quando as Américas se juntaram, várias espécies de mamíferos migraram para o sul carregando o Z1, somando-se aos bichos portadores de Z2 daqui (veja infográfico). A origem do inimigo faz muita diferença, pois os animais contaminados pelo protozoário são outros. Afinal, o barbeiro pica os bichos, infecta-se e transmite a doença ao homem ao picá-lo depois.

Antes da descoberta de Souto, Zingales e Fernandes, acreditava-se que o gambá era o principal reservatório de tripanossomos da floresta.

“Mas agora ficou claro que, por ser originário do sul, ele carrega apenas o do grupo Z2, menos maléfico”, diz Briones. Quem transporta o perigoso Z1 são os roedores, como a capivara e a cotia. É neles que os cientistas precisam ficar de olho.

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“Como essa descoberta é recente, terá de haver uma mudança na estratégia de combate do mal”, diz o infectologista José Rodrigues Coura, da Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro. Será necessário estabelecer um controle sobre a população de roedores das matas para evitar que os carregadores do tripanossomo se aproximem dos humanos – o que só encurtaria a viagem propagadora do barbeiro. Ao mesmo tempo, deve-se intensificar o combate ao inseto transmissor nas cidades.

Cerco ao barbeiro isola o mal

Dentro do organismo, o tripanossomo prolifera em silêncio. Ao longo dos anos, ele ataca principalmente dois órgãos, o coração e o esôfago. Quando a vítima percebe, resta pouco a fazer. Não existe ainda um remédio capaz de dar cabo do protozoário depois que ele já se instalou nos músculos (veja infográfico). Mas o bioquímico Julio Urbina, do Instituto Venezuelano de Investigações Científicas, está próximo de conseguir uma droga capaz de matar o tripanossomo em qualquer parte do organismo.

“O medicamento que estamos desenvolvendo inibirá a produção de ergosterol, uma substância parecida com o colesterol, indispensável para a reprodução do tripanossomo”, disse Urbina à SUPER. “Mas só teremos a certeza de seu bom funcionamento em humanos dentro de três anos, depois de mais testes”, ressalva. A única droga existente hoje, chamada benzonidazol, consegue acabar com o tripanossomo somente na fase aguda, ou seja, logo após a picada, quando ele entra no sangue.

Situação sob controle

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É impossível saber quantos brasileiros estão contaminados hoje. Estima-se que sejam cerca de 5 milhões. Nem todos, porém, desenvolvem a doença. “Cerca de 30% apresentam problemas de coração, como a arritmia e o enfraquecimento da musculatura do órgão, e outros 10% de esôfago”, diz o infectologista José Rodrigues Coura. Os demais muitas vezes nem ficam sabendo que carregam o tripanossomo no organismo. Os fatores que determinam a sorte do portador são pouco conhecidos. “Mas sabemos que os homens têm mais risco de adoecer do que as mulheres”, afirma Coura. Mas, a longo prazo, quem contrai a doença morre dela.

O mal de Chagas é tipicamente sul-americano. Apesar de o tripanossomo viver no organismo de vários animais que habitam a América do Norte, o barbeiro de lá tem hábitos diferentes. Ao picar suas vítimas para sugar sangue, ele não defeca. Como a doença é transmitida pelas fezes do inseto (veja infográfico), o mal não existe por lá.

Na América do Sul, a doença está sob controle em várias regiões, resultado do esforço conjunto iniciado em 1990 por Brasil, Chile, Argentina e Uruguai para exterminar os vetores nas cidades (veja mapa). Existem cerca de 46 espécies de barbeiro, mas apenas oito invadem as casas, em geral construções de barro ou madeira cuja decomposição oferece um ambiente confortável para o inseto.

Ao longo dos últimos vinte anos, o Ministério da Saúde dedetizou 20 milhões de casas. “A idéia não é erradicar o barbeiro, mas acabar com as colônias domiciliares”, explica o sanitarista Fabiano Pimenta, da Fundação Nacional de Saúde – mesmo porque apenas 0,8% deles está contaminado com o tripanossomo. Como não é possível acabar de vez com o vetor – nem pôr um fim a esse micróbio que sobrevive há 380 milhões de anos –, o melhor é mantê-lo o mais afastado possível do homem.

Algo mais

No início do século, o barbeiro, transmissor do mal de Chagas, recebeu esse nome porque picava principalmente a face de suas vítimas. No clima frio das montanhas do sul de Minas Gerais, onde o inseto era abundante, a população mantinha o corpo coberto, expondo apenas o rosto, quando dormia.

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Cada um para o seu lado

A separação dos continentes induziu à formação de dois grupos diferentes de tripanossomo.

1. Há 380 milhões de anos, quando havia apenas uma grande massa de terra no planeta, surgiram os tripanossomos. Provavelmente, habitavam o corpo de répteis.

2. Há 80 milhões de anos, os continentes começaram a se separar. Alguns animais que carregavam no seu organismo o tripanossomo, como os antepassados dos felinos e dos roedores, ficaram na porção que se transformaria na América do Norte.

3. Outros hospedeiros do micróbio, como os ancestrais do gambá e do tatu, vieram para a porção que se tornaria depois a América do Sul.

4. Durante 70 milhões de anos, os dois continentes ficaram separados. O tripanossomo que vivia na América do Norte se adaptou a hospedeiros roedores, antepassados da paca e da capivara. Na Améria do sul, o micróbio evoluiu no organismo dos ancestrais do gambá e do tatu.

5. Há 5 milhões de anos, os continentes se juntaram. Houve, então, uma debandada de animais do norte para o sul, carregando com eles a forma mais agressiva de tripanossomo, o Z1.

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6. Quando surgiu o homem, o Z1, desenvolvido em roedores como a paca e a capivara, foi transportado pelo barbeiro para o organismo humano, propagando o mal de Chagas. Já o tripanossomo Z2, originário do sul, é menos perigoso, pois tem dificuldade para se adaptar ao corpo humano.

Ataque lento

O tripanossomo pode passar anos dentro do corpo produzindo um estrago silencioso.

1. O barbeiro, chamado de vetor, pica um animal ou homem para sugar seu sangue. Aí, infecta-se com o tripanossomo, que vai parar no seu estômago.

2. Ao engolir o sangue de uma próxima vítima, deposita suas fezes – com o tripanossomo misturado – no mesmo lugar.

3. As fezes provocam uma alergia. Ao se coçar, o indivíduo empurra o microorganismo para dentro do seu corpo.

4. Depois de um tempo circulando no sangue, o tripanossomo se instala de vez em dois órgãos: o esôfago e o coração.

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5. No coração, ele invade as células musculares, causando inflamação. O processo, que pode durar vários anos antes de provocar sintomas, deixa lesões que dificultam o funcionamento do órgão.

6. No esôfago, o tripanossomo destrói as células que controlam a a contração e o relaxamento do órgão. Assim, o doente passa a ter dificuldade para engolir.

Tudo começou com a malária

O mineiro Carlos Chagas era médico e sanitarista especialista em malária, doença que ajudou a erradicar da cidade de Santos, no litoral de São Paulo. Por isso, em 1909, foi chamado à pequena cidade de Lassance, em Minas Gerais, para ajudar a controlar a doença. A malária dizimava os operários que construíam a Estrada de Ferro Central do Brasil, impedindo o término da obra. Mas a maleita não era o único mal da população. Muitos se queixavam de problemas no coração. Chagas notou a abundante presença de um inseto sugador de sangue nas residências, o barbeiro, e decidiu investigar se ele poderia ter algo a ver com as doenças cardíacas. Levou exemplares para seu laboratório improvisado, dentro de um vagão de trem desativado. No tubo digestivo do inseto encontrou a causa do mal que atingia aqueles mineiros e milhares de outros brasileiros. Batizou-o de Trypanosoma cruzi em homenagem a outro médico ilustre, o amigo sanitarista paulista Oswaldo Cruz (1872-1917).

Zona de risco

A eliminação do barbeiro das áreas urbanas já livrou boa parte da América do Sul do mal de Chagas. Mas em algumas regiões o vetor ainda invade as casas e oferece risco de contágio.

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