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A vacina do crack

Três laboratórios estão desenvolvendo vacinas que ensinam o sistema imunológico a neutralizar a cocaína e o crack. Em ratos e macacos, funcionou – agora, os cientistas querem testar em humanos. Se der certo, elas podem revolucionar a luta contra as drogas. Mas essa nova arma também tem um lado perigoso.

Por Bruno Garattoni e Tiago Cordeiro
15 jun 2023, 16h28

OOs povos indígenas do Peru mascam folhas de uma planta, a Erythroxylon coca, há mais de mil anos. Ela contém cocaína, mas não tanto: após longos 90 minutos mastigando as folhas, a concentração da droga no corpo fica entre 38 e 95 nanogramas por ml de sangue(1).

Já quando uma pessoa cheira cocaína em pó, a coisa é bem diferente. Ao inalar a primeira carreira, com 0,1 grama, a corrente sanguínea já recebe 347 a 517 ng/ml da droga(2). Cinco a dez vezes mais, de uma só vez.

Quando a droga é fumada, na forma de pedras de crack (cloridrato de cocaína misturado com bicarbonato de sódio e água), pior ainda. Porque aí ela entra pelos alvéolos pulmonares, cai na corrente sanguínea e chega ao cérebro em menos de 20 segundos (se consumida na forma de pó, isso leva 1 a 2 minutos). Fumar crack causa um efeito quase tão rápido quanto injetar cocaína na veia.

Seja qual for o meio de aplicação, a cocaína age da mesma forma ao penetrar no cérebro: ela se conecta a uma proteína chamada DAT (sigla em inglês para “transportadora de dopamina”). Como seu nome diz, essa proteína controla a quantidade de dopamina – um neurotransmissor relacionado a sensações prazerosas.

Só que a DAT é inativada pela cocaína. Aí ela não consegue “enxugar” o excesso de dopamina no cérebro, e o nível desse neurotransmissor dispara (causando agitação, euforia e demais efeitos típicos da droga).

Se usada de forma crônica, com frequência, a cocaína também reduz a ação do GABA (ácido gama-aminobutírico), que é o principal neurotransmissor inibitório(3). Ou seja: ela faz o cérebro pisar no acelerador, ao mesmo tempo em que desliga o freio.

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Uma combinação diabólica, que a torna altamente viciante e difícil de largar. Um estudo brasileiro, feito com adolescentes de Porto Alegre que usavam crack e passaram por um período de reabilitação, apontou que 65,9% deles voltaram a consumir a droga um mês depois(4). Após três meses, 86,4% haviam recaído.

Ilustração de múltiplas bolas em tons de vermelho voando pelo jogo de pinball, no fundo é possível ver o painel no fundo do pinball com um cérebro.
A cocaína e o crack fazem com que o cérebro fique inundado de dopamina. Isso provoca agitação, euforia – e vício. (João Montanaro/Superinteressante)

O vício se combate com educação, prevenção, tratamento, psicoterapia, apoio social. Mas e se existisse uma vacina que ajudasse a evitar, ou largar, a cocaína e o crack? Existem três: e elas já foram usadas, com sucesso, em ratos e macacos.

Agora, seus criadores pretendem começar os testes em humanos. As três vacinas funcionam de formas diferentes. Mas todas têm em comum certas características que complicam as coisas – e podem torná-las perigosas. 

A droga e o vírus

A pioneira das três vacinas é a dAd5GNE, que está sendo desenvolvida há uma década por cientistas da Universidade Cornell, nos EUA. “O problema da cocaína é que ela é composta por moléculas muito pequenas, que o sistema imunológico não identifica”, explica o médico Ronald Crystal, diretor do projeto.

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Por isso, eles criaram uma vacina que utiliza um vetor viral (mesma estratégia empregada nas vacinas da Covid criadas por AstraZeneca e Johnson & Johnson). A base é um adenovírus, o Ad5, que já circula em humanos e causa resfriados leves. Ele é acoplado a uma molécula chamada GNE – cuja estrutura é parecida com a da cocaína.

Está pronta a vacina, que é injetada em três doses ao longo de dois meses. A ideia é que o organismo aprenda a produzir anticorpos contra a molécula GNE. Aí, quando/se a pessoa usar cocaína ou crack, esses anticorpos se conectarão às moléculas da droga.

Com isso, o conjunto ficará grande demais para atravessar a chamada barreira hematoencefálica (uma camada de células que reveste o cérebro e barra a maior parte das moléculas). E a droga não fará efeito. A vacina, caso você esteja se perguntando, também não “dá barato” – porque as moléculas dela também não conseguem penetrar no cérebro.

O imunizante se mostrou eficaz em testes com ratos e macacos(5). “Concluímos que a vacina produz altos níveis de anticorpos para cocaína, tanto contra o uso diário [da droga] quanto para doses maiores, e sem reações adversas”, diz Crystal.

Os animais vacinados receberam doses moderadas de cocaína (simulando o tal “uso diário” de um viciado humano), e também quantidades maiores de vez em quando.

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Em vários pontos do estudo, alguns ratinhos foram sacrificados e tiveram os cérebros analisados em laboratório. O objetivo era ver se a vacina estava mesmo bloqueando a droga. Estava sim: em ratos que receberam uma dose de cocaína, a vacina reduziu em 55% a quantidade da substância no cérebro.

A proteção se manteve, e até melhorou um pouco, com o uso contínuo da droga: após três doses de cocaína, 64% dela foi bloqueada e não entrou no cérebro. A redução não é total porque os anticorpos presentes no organismo não conseguem se conectar a todas as moléculas da droga antes que ela penetre no cérebro (não dá tempo).

Mas a diminuição foi suficiente, no estudo, para suprimir os efeitos da cocaína: os ratinhos vacinados ficaram calmos, sem andar freneticamente pelas gaiolas, mesmo após receber a droga.

Em macacos, os resultados foram ainda melhores. Lembra daquela proteína cerebral, a DAT, que citamos no começo do texto? Em animais não-vacinados, que receberam uma dose de cocaína, a droga conseguiu inativar 62% dessa proteína, em média. Com isso, os cérebros deles ficaram inundados de dopamina – e os bichos demonstraram os sintomas típicos do uso da droga. Normal.

Mas, em macacos vacinados, o resultado foi muito diferente (6)Exames de tomografia computadorizada revelaram que parte da cocaína até penetrou no cérebro, mas ela não conseguiu anular nem 20% da proteína DAT.

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Ou seja, o narcótico realmente não fez efeito (em humanos, para que a ação da cocaína comece a ser sentida, a droga precisa anular pelo menos 47% da proteína DAT presente no cérebro(7)).

Ilustração de uma bola branca entrando no jogo, junto com um botão de “Clique aqui” que redireciona para o infográfico completo sobre o vetor viral.
As vacinas imitam o formato das moléculas de cocaína – para que o sistema imunológico se torne capaz de reconhecer, e bloquear, a droga. (João Montanaro/Arte/Superinteressante)

Os estudos foram relativamente curtos (13 semanas para os roedores e 7 para os primatas), mas suficientes para que os cientistas da Universidade Cornell recebessem, em 2016, permissão do governo americano para testar a dAd5GNE em seres humanos.

O estudo, que está sendo executado em parceria com o National Institute on Drug Abuse, foi desenhado para ter 150 participantes: um grupo recebendo placebo, e outro a vacina. A coleta de dados termina ao final de 2023, e a pesquisa deverá ser concluída (8) em junho do ano que vem.

Ou seja, uma demora de anos para algo que já poderia estar pronto – os cientistas pretendem acompanhar as pessoas por um período de oito meses. O problema é que há outros fatores envolvidos. “A maior dificuldade é recrutar voluntários. E, mais ainda, garantir que eles continuem participando”, admite Crystal.

Isso porque os participantes do estudo precisam ser usuários habituais de cocaína ou crack. Por questões éticas, os cientistas não podem aplicar a droga nos voluntários (como é feito nos testes em animais). Então a única forma de saber se a vacina realmente funciona é verificar se, após recebê-la, a pessoa reduz o uso de entorpecentes no seu dia a dia.   

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Outra exigência do teste: antes de ser vacinado, cada voluntário precisa dar uma pausa na cocaína – e ficar 30 dias sem usá-la. “É uma estratégia para testar com maior segurança os níveis de anticorpos”, diz Crystal.

Essa explicação não é lá muito convincente (em tese, o uso prévio da droga não interfere com o efeito da vacina, já que o sistema imunológico não detecta  as moléculas da cocaína).

A abstinência prévia pode ser, na verdade, uma tentativa de selecionar voluntários mais estáveis, sem os problemas de comportamento desencadeados pelo uso de cocaína.

Uma equipe da Universidade Federal de Minas Gerais, que também está desenvolvendo uma vacina contra a droga, lidou com essa questão de forma inteligente: decidiu focar sua pesquisa em gestantes.

“Nós recebemos, no hospital da universidade, muitas mulheres grávidas viciadas. Sabemos dos danos que a droga provoca nesses casos, e gostaríamos de reduzir esse prejuízo”, diz o médico Frederico Garcia, que é pesquisador da UFMG e um dos líderes do estudo.

De fato, o uso de cocaína ou crack na gravidez tem consequências muito graves. A mulher pode sofrer pré-eclâmpsia severa (um tipo de hipertensão que pode levar à morte), aborto espontâneo ou parto prematuro com complicações.

A droga também contrai os vasos sanguíneos da placenta, estrangulando o fluxo de nutrientes para o feto, que pode apresentar baixo peso, malformações e até síndrome de abstinência – já que, durante a gravidez, ele recebe a droga por meio do cordão umbilical.

O bebê já nasce viciado. “Esses recém-nascidos não dormem bem, não mamam. As mães, que já estão fragilizadas, e poderiam ter nos bebês um incentivo para evitar o vício, acabam por doar as crianças”, diz Garcia.

A vacina brasileira, assim como a americana, também utiliza a proteína GNE – que é estruturalmente parecida com a cocaína. A diferença é que essa molécula não é acoplada a um vírus, mas a uma segunda proteína, chamada KLH, extraída de um molusco [veja infográfico abaixo].

Ilustração de uma barreira sendo colocada por uma mão com luvas, impedindo as bolas vermelhas de entrarem no jogo. Junto da ilustração, possui um box com um botão de “Clique aqui” que redireciona para o infográfico completo sobre os testes feitos em ratos.
A vacina induz a formação de anticorpos. Eles ficam no sangue, e se conectam às moléculas da droga – impedindo que entrem no cérebro. (João Montanaro/Arte/Superinteressante)

A vacina já foi aplicada em ratos, e funcionou. Em testes com 26 ratas grávidas, que receberam cocaína durante a gestação, houve 30% menos abortos. A vacina gerou ninhadas com 27% mais filhotes, e eles eram em média 50% maiores.

Os ratinhos também não nasceram com síndrome de abstinência da droga – e receberam anticorpos contra a cocaína por meio do leite materno. Os resultados (9) foram publicados em 2021 em uma revista científica importante, a americana Molecular Psychiatry.

“Está tudo pronto para a próxima etapa, os testes em humanos”, diz Garcia. A molécula GNE-KLH já foi patenteada, inclusive. Para chegar ao estágio atual, os cientistas da UFMG tiveram o apoio de uma série de instituições, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas e a Câmara dos Deputados.

Os pesquisadores da UFMG já enviaram à Anvisa um pedido de autorização para os estudos clínicos, em voluntários, que levariam aproximadamente dois anos. O problema é conseguir verba e segurança jurídica – já que a cocaína é uma droga ilegal.

“Temos recursos humanos e técnicos para realizar os testes clínicos dentro da UFMG”, afirma o professor. “Mas falta investimento e acesso a lotes da droga, de forma segura.” Isso porque a síntese da molécula GNE, que é o elemento ativo da vacina americana e também da brasileira, requer cocaína como matéria-prima (10).

Enquanto nos EUA parte da droga apreendida pela polícia é destinada a estudos científicos, no Brasil as cargas costumam ser totalmente incineradas. “Não conseguimos encontrar parceiros dispostos a participar, porque o acesso às substâncias [necessárias] não é devidamente regulamentado”, diz Garcia, que ressalta a importância da pesquisa.

“Diante dos testes pré-clínicos, sabemos que a vacina é eficaz para bloquear a circulação da molécula de cocaína [no organismo], e não tem efeitos colaterais significativos. É uma solução inovadora, para uma doença contra a qual não se tem remédio”, resume.

Uma doença grave, e que vem piorando. As ruas das metrópoles, e até de cidades médias, têm cada vez mais gente viciada, jogada pelos cantos. E essa população é ainda maior do que parece. Segundo o Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas, elaborado pela Fiocruz e pelo IBGE, 1,4 milhão de brasileiros entre 12 e 65 anos já usaram crack pelo menos uma vez (11).

E esse dado é de 2015, bem anterior à explosão da cracolândia paulistana, por exemplo. Outros países têm problemas similares: um relatório publicado pelo ministério da Justiça dos EUA, também em 2015, estimou que 8,8 milhões de americanos já tinham experimentado crack (12).

Faz tempo que o crack e a cocaína são problemas sociais. E faz tempo que a ciência tenta encontrar uma resposta a eles. As pesquisas começaram nos anos 1990, e duas vacinas anticocaína chegaram a ser testadas em humanos.

Elas tiveram certo êxito, mas revelaram alguns problemas sérios, que são aparentemente insolúveis – e também afetam as vacinas atuais.

 

A dose e o efeito

As primeiras tentativas de criar uma vacina antidrogas aconteceram no começo dos anos 1970. Elas miraram na morfina (13), um analgésico opioide que pode ser altamente viciante, e na heroína, cujo uso ilegal estava se tornando um problema nos EUA.

Não foram adiante (em parte porque já existia a metadona, um remédio que pode ser usado para tratar o vício em opioides). Em meados dos anos 1980, com a disparada no uso de cocaína, a ciência se voltou para ela.

O primeiro passo concreto veio em 1992, quando pesquisadores do Jefferson Medical College criaram uma vacina anticocaína e a aplicaram em ratos (14), com resultados promissores.

Mas o estudo mais impactante, que realmente mostrou que aquela ideia poderia funcionar, surgiu em 1995. Um de seus autores era o neurocientista George Koob, que hoje dirige o National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism, nos EUA (e também participou ativamente do desenvolvimento da vacina dAd5GNE).

Esse teste (15), realizado em camundongos, mostrou que a vacina conseguia bloquear os efeitos psicoativos da cocaína. A partir daí, começaram a surgir várias pesquisas do tipo.

O neurocientista Thomas Kosten, do Baylor College of Medicine, em Houston, inventou uma vacina com moléculas de norcocaína (um derivado da droga) acopladas a uma proteína produzida pela bactéria V. cholerae, que causa a cólera. Em 2002, ela chegou aos testes em humanos, quando foi aplicada em 24 ex-usuários de cocaína.

Nesse teste pequeno, ela falhou em 30% dos pacientes (e, nos demais, teve um efeito considerado fraco). Kosten tentou outra vez em 2009, novamente com resultados insatisfatórios.

Mesmo assim conseguiu uma parceira, a farmacêutica britânica Xenova, e financiamento para desenvolver a vacina – que recebeu o nome provisório de TA-CD. Finalmente as coisas pareciam andar bem: os voluntários vacinados produziam anticorpos capazes de impedir que a cocaína chegasse ao cérebro.

O balde de água fria veio na última fase do estudo, com 130 pessoas, em 2014. Ela mostrou que, embora produzissem anticorpos, os vacinados não estavam largando a cocaína (16).

A eficácia da TA-CD, ou seja, a quantidade de usuários que deixaram de usar a droga por duas semanas, foi de míseros 24% (contra 18% entre os voluntários que receberam placebo).

Aí a Xenova tentou desenvolver outra vacina, a TA-NIC, que produziria anticorpos para a nicotina e ajudaria tabagistas a pararem de fumar. Não deu certo – mesmo destino da NicVAX, da Nabi Biopharmaceuticals.

As pesquisas com vacinas antidrogas foram acompanhando a evolução delas. Na última década, o abuso de analgésicos opioides se tornou um problema gravíssimo nos EUA: a cada ano, 75 mil pessoas morrem de overdose desses medicamentos, que são altamente viciantes e cada vez mais usados com fins recreativos.

A primeira resposta veio em 2016, quando a americana Opiant Pharmaceuticals assumiu o desenvolvimento de uma vacina antiopioides originalmente criada pelo Walter Reed Army Institute, a divisão de pesquisas médicas do Exército dos EUA. Ela ainda não foi testada em humanos.

No final de 2022, a Universidade de Houston anunciou uma nova vacina contra o fentanil, que já foi testada com sucesso em ratos (17). O fentanil é um dos opioides mais fortes que existem: 100 vezes mais potente do que a morfina e 50 vezes mais que a heroína. De cada 10 pessoas que tentam largá-lo, oito acabam recaindo.

A vacina da Universidade de Houston usa o sufentanil, um derivado do fentanil, acoplado a uma proteína chamada CRM197 (versão geneticamente modificada de uma toxina produzida pela bactéria que causa a difteria). Após os bons resultados nos testes em ratos, os cientistas pretendem começar os testes em humanos em 2024.

Em tese, é possível desenvolver vacinas contra praticamente qualquer droga, com uma exceção notável. “Uma vacina contra o álcool poderia atacar o funcionamento dos sistemas digestivo e metabólico”, explica Garcia, da UFMG.

Isso porque o intestino humano abriga bactérias que produzem etanol naturalmente – se houvesse uma vacina antiálcool, elas poderiam ser atacadas pelo sistema imunológico.

Todas as vacinas antidrogas, inclusive as desenvolvidas pela Universidade Cornell e pela UFMG contra cocaína e crack, padecem do mesmo problema: elas precisam ser reaplicadas com frequência.

Quando você pega uma infecção ou toma uma vacina qualquer, o seu organismo produz anticorpos contra o invasor (o vírus, bactéria, ou elementos dele presentes na vacina). Depois de um tempo esse processo para. Os níveis de anticorpos caem naturalmente. E tudo bem: o corpo pode voltar a fabricá-los caso necessário.

Só que, para bloquear moléculas de droga, isso não funciona – porque elas chegam muito rapidamente, em minutos ou segundos, ao cérebro. Não dá tempo de fazer anticorpos em quantidade suficiente; o único jeito é manter os níveis deles no sangue sempre elevados, com doses periódicas das vacinas antidroga. 

Os estudos realizados até hoje foram bem curtos, com duração de poucas semanas. Mas já ficou claro que as vacinas teriam de ser reaplicadas com frequência – uma vez por semestre, por exemplo, ou até mais.

Uma possível solução está em outro imunizante anticocaína, que está sendo desenvolvido pela Universidade Duke, nos EUA. Ao contrário das outras vacinas, injetadas no braço, ela é inalável, podendo ser aplicada pelo próprio paciente. Em ratos, se mostrou eficaz: eliminou os sintomas comportamentais da cocaína (18).

Ilustração das bolas vermelhas pulando a barreira colocada na ilustração anterior. Junto da ilustração, possui um box com um botão de “Clique aqui” que redireciona para o infográfico completo sobre a vacina inalável.
As moléculas de cocaína chegam rapidamente ao cérebro. Então é preciso ter anticorpos já prontos, circulando no sangue, contra elas. (João Montanaro/Arte/Superinteressante)

A proposta dessa vacina é neutralizar a droga já nas vias aéreas, antes mesmo de ela cair na corrente sanguínea. “Vacinas aplicadas em uma mucosa têm maior probabilidade de induzir anticorpos do tipo IgA”, diz o imunologista Herman Staats, líder do estudo.

A imunoglobulina A, ou IgA, é um anticorpo de ação rápida, a primeira linha de defesa do organismo contra doenças. Ele serve para ganhar tempo, enquanto o corpo fabrica outro tipo de anticorpo, o IgG, que circula no sangue e é mais poderoso – mas demora para ficar pronto.

A vacina da Universidade Duke é focada na cocaína em pó, e não funciona contra o crack (porque ele é absorvido pelos alvéolos pulmonares, e não através da mucosa nasal, que é onde esse imunizante age). Ainda não há previsão de testes em humanos.   

As vacinas antidroga têm outro grande porém: elas bloqueiam ou enfraquecem o efeito de determinada substância, mas não fazem nada contra a dependência psicológica.

Isso significa que o viciado pode acabar consumindo mais cocaína ou crack, para tentar sentir algum efeito. “As pessoas precisariam de doses muito grandes da droga, ministradas muito rápido, para superar a barreira proporcionada pelos anticorpos”, admite Staats. Nessa situação, haveria risco de overdose.

A tendência ficou clara nos testes da vacina TA-CD: quanto mais anticorpos havia no sangue de cada voluntário, maior também o nível de cocaína na urina dele. Os viciados estavam aumentando o consumo da droga, em busca da sensação que tinham antes de serem vacinados.

“Os pesquisadores levaram para os testes pessoas que não estavam dispostas a abandonar o vício. Nesses casos, a vacina realmente não é suficiente”, diz Garcia, da UFMG.

Além do perigo de overdose, e a possibilidade de que os viciados aumentem seu consumo de cocaína ou crack, também haveria outra questão. Da mesma forma que parte da sociedade hoje defende o encarceramento dos usuários de drogas, poderia haver um clamor pelo uso forçado dos imunizantes.

“O usuário poderia ter que escolher entre a prisão ou uma vacina”, afirma o médico australiano Wayne Hall, pesquisador da Universidade de Queensland, em um artigo sobre as implicações éticas das vacinas antidrogas (19).

E esse processo pode estar sujeito a abusos. “O tratamento coercitivo [obrigatório] poderia se tornar uma forma de punição, sem supervisão judicial”, adverte Hall.

Em suma: as vacinas anticocaína ou crack têm efeito curto, podem acabar aumentando o consumo da droga, ou se transformar em instrumento de opressão contra pessoas já fragilizadas.

Ilustração do botão de start com uma caveira aceso, enquanto o resto do tabuleiro está desligado.
As vacinas não tratam a dependência psicológica. O viciado pode acabar usando até mais droga, para tentar sentir algum efeito – e correr risco de overdose. (João Montanaro/Superinteressante)

Esses são seus três riscos. E eles são “estruturais”, ou seja, têm a ver com o próprio mecanismo de ação das vacinas e a resposta da sociedade a elas. Não são problemas que possam ser resolvidos em laboratório.

Ao mesmo tempo, não parece razoável descartar os imunizantes. Se passarem nos testes em humanos, eles poderão ser armas valiosas – desde que não encarados como uma solução mágica. “A vacina é complementar à terapia, uma ferramenta para fortalecer a vontade de parar”, diz Ronald Crystal, da Universidade Cornell.

O uso de drogas – dos povos indígenas e suas folhas milenares até os viciados urbanos – tem um emaranhado de causas biológicas, psicológicas e sociais. Para cada caso individual há uma série de explicações, que podem envolver desde traumas passados até a predisposição genética para comportamentos compulsivos. “A vacina é a estratégia mais promissora para o tratamento de dependência química. Mas, sem o paciente estar motivado, não adianta”, afirma Garcia, da UFMG.

Para que a pessoa consiga se levantar, enxergar uma luz e ver que é possível deixar o vício, ela precisa de ajuda. A vitória contra uma droga nunca vai depender só de outra droga  – mesmo que seja uma vacina. É necessário, também, algo bem maior e mais forte: o apoio da sociedade. 

***

Fontes (1) Plasma levels of cocaine in native peruvian coca chewers. D Paly e outros, 1980. (2) Detection of cocaine and its metabolites in whole blood and plasma following a single dose, controlled administration of intranasal cocaine. EL Menzies e outros, 2019. (3) Cocaine-Evoked Synaptic Plasticity of Excitatory Transmission in the Ventral Tegmental Area. C Luscher, 2013. (4) Predictors of early relapse among adolescent crack users. R Lopes-Rosa e outros, 2017. (5) Cocaine vaccine dAd5GNE protects against moderate daily and high-dose “binge” cocaine use. RG Crystal e outros, 2020.

(6) Adenovirus Capsid-Based Anti-Cocaine Vaccine Prevents Cocaine from Binding to the Nonhuman Primate CNS Dopamine Transporter. RG Crystal e outros, 2013. (7) Relationship between subjective effects of cocaine and dopamine transporter occupancy. ND Vokkow e outros, 1997. (8). Safety Study of a Disrupted Adenovirus (Ad) Serotype Cocaine Vaccine for Cocaine-dependent Individuals. clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT02455479.

(9) The GNE-KLH anti-cocaine vaccine protects dams and offspring from cocaine-induced effects during the prenatal and lactating periods. F Garcia e outros, 2021. (10) Efficient Syntheses of Cocaine Vaccines and Their in Vivo Evaluation. KD Janda e outros, 2018. (11) III Levantamento Nacional Sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira. Fiocruz, 2019. (12) 2015 National Drug Threat Assessment Summary. US Department of Justice, 2015. (13) Antibodies to Morphine, Barbiturates, and Serotonin. S Spector e outros, 1973. (14) A potential vaccine for
cocaine abuse prophylaxis. O Bagsra e outros, 1992.

(15) Suppression of psychoactive effects of cocaine by active immunization. MR Carrera e outros, 1995. (16) Vaccine for Cocaine Dependence: A Randomized Double-Blind Placebo-Controlled Efficacy Trial. T Korsten e outros, 2014. (17) An Immunconjugate Vaccine Alters Distribution and Reduces the Antinociceptive, Behavioral and Physiological Effects of Fentanyl in Male and Female Rats. C Haile e outros, 2022. (18) Novel mucosal adjuvant, mastoparan-7, improves cocaine vaccine efficacy. H Staats e outros, 2020. (19) Ethical issues in using a cocaine vaccine to treat and prevent cocaine abuse and dependence. W Hall e L Carter, 2004.

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