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Cicatriz: O corpo em restauração

Passo a passo, todas as tarefas que o organismo tem de executar para construir a cicatriz após um ferimento.

Por Lúcia Helena de Oliveira
Atualizado em 11 jan 2017, 13h27 - Publicado em 28 fev 1993, 22h00

Quando alguém se machuca, o organismo começa imediatamente a restituir a área perdida no ferimento. Constrói, assim, a cicatriz.

Ao se olhar de perto, muito perto, qualquer machucado à-toa é um tremendo desastre. A barreira da pele racha; células que deviam permanecer associadas se separam; nervos se esgarçam; vasos sangüíneos se rompem. O microscópio mostra que o resultado de uma espetadela de agulha ou de um arranhão com a lâmina de barbear, por exemplo, tem lá suas semelhanças com o efeito destruidor de uma bomba. Para consertar o estrago, reconstruindo a região do corpo em ruínas, os organismos vivos acionam um dos mais instigantes mecanismos biológicos — a cicatrização.

Sem ela, toda ferida seria uma brecha fatal, servindo de entrada para micróbios e de saída para o sangue. Mas, apesar de sua importância, os cientistas ainda não conhecem direito cada detalhe desse fenômeno.

Acredita-se que os vasos sangüíneos sejam o ponto de partida. O tecido interno das veias e artérias, conhecido por endotélio, é impermeável. No entanto, quando o sangue vaza dali, entra em contato com estruturas permeáveis. As moléculas do plasma, a parte líquida da composição sangüínea, conseguem entrar, por exemplo, nos espaços entre as células dos músculos e da derme. Encharcados dessa maneira, esses tecidos passariam a liberar uma série de substâncias capazes de dar o primeiro impulso à formação da cicatriz.

Certos tipos de células sangüíneas, as chamadas plaquetas, também reagem ao ambiente estranho, o lado de fora dos vasos em que estão acostumadas a correr. Elas, que antes circulavam livres e soltas, colam umas nas outras e se empilham nas bordas dos vasos lesados por onde o sangue está escapando. Depois, amontoadas, começam a soltar microbolsas que, ao estourar, esparramam seu conteúdo. Trata-se de substâncias que vão se juntar a outros ingredientes sangüíneos para, numa espécie de complô, modificar uma proteína circulante, o fibrinogênio.

Cercado por essas moléculas, o fibrinogênio não tem saída a não ser mudar de cara e, até, de nome. Transforma-se, então, em fibrina e assume a forma de um fio, capaz de tecer uma teia de trama tão fina, que as células do sangue não conseguem atravessar. Essa teia é o coágulo, que logo depois se desidrata e, ao secar desse jeito, forma a popular casquinha do machucado. Sob a sua proteção, acontecerá a cicatrização propriamente dita.

Nem sempre, porém, tudo acontece dessa maneira: quando se cortam grandes artérias, a pressão do fluxo sangüíneo é forte o bastante para arrebentar a teia de fibrina. Daí, só restam a linha e a agulha, para costurar o rasgo da pele. Com a sutura medicinal ou com a emenda natural de fibrina, não importa, a região machucada logo começa a emitir pedidos de socorro.

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Na área lesada, falta oxigênio pela ausência da circulação, e os nervos ou foram cortados ou deixaram de enviar suas costumeiras mensagens, intoxicados por substâncias resultantes da morte de células vizinhas. Esse conjunto de efeitos funciona feito um sinal de S ao cérebro.

“É acionada uma série de mecanismos, típicos da inflamação, cujos sintomas são calor, rubor e dor”, explica o imunologista Mário Mariano, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. “O sistema nervoso reage, ordenando a abertura de pequenos vasos sangüíneos, que antes não estavam funcionando. Aliás, essa é a causa da vermelhidão ao redor da área machucada”, descreve.

A medida facilita a chegada de um batalhão de glóbulos brancos ao local do acidente. Entre eles, os chamados fagócitos, cujo nome, do grego, significa células capazes de comer. “Elas trabalham como lixeiros, limpando a área”, define o professor Mariano. “Engolem e digerem micróbios, que tentam aproveitar o rombo da ferida para invadir organismos sadios. Além disso, destroem os restos de células mortas no ferimento.” Enquanto fazem o seu serviço, os fagóticos ainda liberam uma diversidade de moléculas, cuja imensa família é conhecida por citoquina.

Esse nome, mais uma vez de origem grega, significa ativador de célula. Não é para menos. Certas citoquinas, como a interleucina VI (IL6), estimulam a síntese de proteínas, acelerando a reparação dos tecidos. A interleucina I (IL1), por sua vez, ajuda na quimiotaxia, ou seja, provoca a migração de mais e mais células de defesa para a região em perigo. Há, ainda, o TNF (sigla em inglês de Fator de Necrose Tumoral) e outras substâncias, que aumentam a permeabilidade dos vasos, permitindo a saída de alguns glóbulos brancos, para atacar direto na vizinhança arrasada.

Esse mesmo tipo de citoquina induz à formação de microvasos sangüíneos sob a casca da ferida. Essas pequenas artérias serão usadas para levar nutrientes e oxigênio às células encarregadas de trabalhar pesado, enquanto durar a cicatrização. Quando o serviço estiver terminado, no entanto, os vasinhos descartáveis serão eliminados.

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“Esses são apenas exemplos, porque a cada dia são descobertas novas cito-quinas, com funções di-versas”, esclarece o imunologista. O único efeito colateral de algumas dessas substâncias é provocar febre, comum quando alguém sofre um corte muito grande.

“Temos fortes suspeitas de que as citoquinas são imprescindíveis na cicatrização”, reforça o gastroenterologista Sérgio Mies, da Faculdade de Medicina da USP, que é especialista em fígado — órgão capaz de se regenerar completamente, quando lhe arrancam um pedaço. Mies desconfia de que as citoquinas estejam envolvidas na mudança de metabolismo das células participantes da cicatrização (veja quadro). “Elas passam a desprezar oxigênio, para retirar a energia exclusivamente da glicose. Isso, quem sabe, torna o processo mais rápido e eficiente.”

Outras substân-cias fundamentais para a cicatrização são liberadas pelos macrófagos, soldados de elite do exército de fagócitos, que se acumulam no ferimento. Cerca de três dias após o corte, quando estão no auge de sua comilança — ou fagocitose, como preferem os cientistas —, os macrófagos passam a secretar moléculas muito especiais. A entrada delas em cena marca o início daquela que talvez seja a etapa mais importante, ou seja, a produção dos materiais que irão soldar o rombo no tecido e formar a cicatriz.

As moléculas produzidas pelos macrófagos vão agir no tecido conjuntivo, que em condições normais liga as diversas estruturas corporais, feito uma argamassa. Ele é constituído por diversos tipos de fibras e fibroblastos, células que em geral estão adormecidas. “Uma vez ativadas, graças à ordem química enviada pelos macrófagos, essas células passam a secretar duas substâncias, que irão unir a ferida”, diz Mariano.

Uma delas é o colágeno, comparável aos ferros de uma construção; a outra é a chamada matriz extracelular, uma mistura de moléculas de proteínas e açúcares, com função semelhante à do cimento, que dá sustentação às barras de metal. Na verdade, os fibroblastos só conseguem trabalhar a ple–no vapor, porque são alimentados por aqueles vasinhos recém-criados por algumas citoquinas.

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Uma outra célula acelera ainda mais o serviço. Trata-se da miofibroblasto, que se agarra ao colágeno: feito um elástico, ela aproxima as extremidades das fibras, que antes estavam bem separadas. Com isso, faz pressão no sentido de fechar o corte. Apesar dessa força, a reconstrução do tecido conjuntivo costuma demorar cerca de dez dias. Pouca gente percebe que é tão demorada a cura de um machucado e esse prazo vale também para um simples furo de agulha, que some, superficialmente, em menos de três dias. Na verdade, por baixo da pele, ele leva tanto tempo para cicatrizar quanto um corte grande.

Quando termina a cicatrização, as bordas da ferida estão reunidas, as células danificadas já foram varridas da área pelos macrófagos lixeiros, os vasinhos usados para nutrir os fibroblastos desaparecem. Resta, sob a pele nova em folha, um tecido praticamente desprovido de células — que, diga-se de passagem, costuma ser idêntico na maioria das espécies animais. Decididamente, ele não é igual ao que havia ali, isto é, ao tecido conjuntivo. Pode, sim, ser comparado à camada de cola em um vaso de porcelana restaurado.

É por isso, por exemplo, que doentes com cirrose hepática costumam morrer. A doença, afinal, pode ser descrita como um processo de cicatrização desgovernado. Por motivos ainda não muito bem esclarecidos, os fibroblastos do fígado das pessoas com cirrose entram em hiperatividade e secretam enormes quantidades de fibras de colágeno. A cicatriz resultante cresce sem parar — e ela, por ser um material inerte, não faz o trabalho habitual do fígado. Por sua vez, sobra cada vez menos espaço para as legítimas células hepáticas, que em número menor não dão conta do recado, pois o volume de serviço continua o mesmo. No final, elas entram em falência.

Conhecer cada detalhe dos mecanismos de cicatrização deve auxiliar na criação de medicamentos tanto para cirrose como para outros males, que os cientistas acreditam terem a ver com certos aspectos desse fenômeno — é o caso dos tumores, em que as células se multiplicam desenfrea- damente. A indústria farmacêutica também está investindo na criação de remédios capazes de acelerar a recuperação de pacientes gravemente feridos.

Igual a antigamente

Sabe-se que, ferido, o organismo não perde tempo. No instante seguinte a um corte, por exemplo, as células epiteliais já começam a se multiplicar. Curiosamente, elas proliferam a cerca de 3 milímetros das bordas do ferimento e ninguém conhece a razão de manterem essa distância. Aos poucos, as células novas vão deslizando, para mergulhar por baixo da crosta de sangue e tapar o buraco recém-criado. Embora esteja ocorrendo simultaneamente, isso não faz parte do processo de cicatrização.

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“A nova pele será idêntica à anterior. Por isso, falamos em regeneração”, ensina o imunologista Mário Mariano, da Universidade de São Paulo. “Porque, na cicatrização, o pedaço restituído nunca é igual ao que havia ali antes. A cicatriz, afinal, é apenas uma massa de colágeno, não importando a região do corpo em que se encontre.”

Existem apenas pistas sobre os mecanismos que disparam a regeneração. Uma hipótese é a de que o epitélio cortado liberaria moléculas, as chamadas trefonas, capazes de agir feito um hormônio ou fator de crescimento. Outra possibilidade seria a de que, unidas, as células da pele produziriam substâncias inibidoras de sua multiplicação. Uma vez dissociadas, perderiam esse freio e passariam a se replicar. Nem todos os tipos de células têm esse privilégio.

“Os neurônios são insubstituíveis”, exemplifica o gastroenterologista Sérgio Mies, também da USP. Seu interesse pelo tema é lógico, pois ele é considerado uma das maiores autoridades brasileiras em cirurgias do fígado — e este órgão é campeão em matéria de capacidade de regeneração, assim como a pele e as mucosas do aparelho digestivo. “No caso do fígado, podemos extirpar 80% dos tecidos, que ele volta a crescer e a funcionar normalmente”. Existe a hipótese de que as células com capacidade de se regenerar sejam aquelas com ciclo de vida relativamente curto. “As do fígado vivem cerca de três meses”, conta Mies. “Portanto, dentro desse prazo, o fígado teria de regenerar outro fígado, novinho em folha. Mas há muitas controvérsias sobre essa teoria.”

Marcas do passado

Por melhor que seja o serviço, o acabamento nunca é perfeito: sob o epitélio completamente regenerado, a camada de colágeno dá à cicatriz uma coloração que destoa do restante da pele. Em geral, a marca do machucado acaba sendo mais clara. Não é só isso: observada no microscópio, a cicatriz tem sempre um relevo diferente, ou seja, é ligeiramente mais alta ou mais baixa do que a superfície cutânea em que se encontra.

Às vezes, porém, os defeitos são bem mais sérios. Isso porque todas as etapas para a construção de uma cicatriz devem ocorrer simultaneamente. “Quando isso não acontece, e uma engrenagem trabalha mais depressa do que outra, forma-se uma marca exageradamente saliente”, explica o cirurgião plástico Marcus Castro Ferreira. “Então, falamos em cicatrizações patológicas.” Elas se dividem em duas espécies, a hipertrófica e a quelóide.

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Professor da Universidade de São Paulo, o cirurgião explica que as pessoas costumam confundir esses tipos: “Para elas, qualquer cicatriz mais elevada é quelóide, quando a hipertrófica é muito mais comum, principalmente em crianças”.

Na verdade, quanto mais jovem é a pessoa, maior a sua capacidade de produzir colágeno. Às vezes, essa produção ultrapassa a necessidade, em relação ao tamanho do rombo que o organismo precisa tapar. A massa de colágeno, então, transborda, ressaltando a cicatriz. “Nos idosos, ocorre o contrário”, conta Ferreira. “Como tendem a produzir menos colágeno, sua cicatrização acaba ficando ótima do ponto de vista estético. No final, quase não ficam marcas.”

Segundo o cirurgião, as cicatrizes hipertróficas adquiridas na infância tendem a desaparecer, à medida que a pessoa vai crescendo. O grande desafio dos cirurgiões são, de fato, as cicatrizes quelóides. Mais freqüentes em negros e orientais, elas costumam ser avermelhadas ou escuras, coçam e doem muito.

Pior: em geral não se limitam à área lesada, ou seja, não param de crescer, cobrindo a região vizinha sã. “O problema é que, só depois de um ano, conseguimos distinguir se uma cicatriz é quelóide ou hipertrófica”, diz Ferreira.“Esta última pode melhorar bastante ou até desaparecer com uma cirurgia plástica. A quelóide, por sua vez, pode até se agravar, depois de uma operação.”

Por esse motivo, muitos médicos preferem tratar essas cicatrizes com medicamentos que inibem a produção de colágeno. “A cortisona tem esse efeito”, exemplifica o médico. “Mas ela deve ser injetada no machucado antes do início da cicatrização.” Outra indicação é a radioterapia, mas essa desperta bastante controvérsia. Aplicam-se emissões de raios gama, numa tentativa de destruir as células fibroblastos, produtoras de colágeno, situadas no tecido conjuntivo.

“Só que a radiação não diferencia o que é bom do que é ruim”, alerta Ferreira. “O tratamento acaba aniquilando, junto, tecidos sadios. Além disso, ainda não sabemos se ele pode detonar um câncer de pele.” Na sua opinião, a radioterapia deve ser considerada apenas em casos extremos, como o de pessoas com cicatrizes quelóides na região da boca, que não conseguem falar e nem sequer se alimentar direito, por causa do problema.

As pessoas com tendência à cicatrização anormal po–dem recorrer ainda às chamadas colas biológicas, que diminuem a distância entre as bordas do corte. “Com isso, a adesão do tecido é facilitada e a deposição de colágeno acaba se tornando menor”, revela Ferreira. Infelizmente, a maiorias das colas biológicas ainda está em fase de testes e, algumas delas, vêm mostrando efeitos tóxicos.

Por enquanto, só se encontra disponível uma versão australiana, à base de fibrina humana. “Ela é eficaz, mas tem o enorme inconveniente de ser fabricada a partir de sangue”, lamenta Ferreira. “Em tempos de disseminação da Aids, sua aplicação pode ser tremendamente perigosa.”

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