Cogumelos, charme e veneno
Cercados de lendas e apreciados do mundo inteiro, os cogumelos formam espécies muito peculiares, que ajudam a limpar a matéria orgânica acumulada nas flores
Gisela Heymann
Segundo antigas lendas irlandesas, pequenos seres imaginários chamados duendes costumavam aparecer nas florestas durante a noite, para brincar e dançar com as fadas. O lugar escolhido pelos homenzinhos para suas festas era sempre o interior do que as histórias chamavam, apropriadamente, de anéis de duendes, ou seja, uma circunferência formada por dezenas de cogumelos cujo diâmetro pode medir até 6 metros. Os cogumelos – que de fato assumem muitas vezes essa configuração – serviram para delimitar o espaço da festa e para que os duendes ali se sentassem. Dizia-se ainda que uma série de castigos desabaria sobre quem se atrevesse a desmanchar um desses círculos. Em muitos outros países existiam também histórias fantásticas sobre cogumelos, seus poderes mágicos e os perigos que apresentam.
Isso reflete na realidade, o fato de que durante muito tempo pouco se soube sobre esses estranhos fungos, alguns dos quais capazes de produzir efeitos não menos bizarros em quem os consome. Diz uma história que a nobre italiana Lucrécia Bórgia (1480-1519) costumava oferecer aos seus inimigos poções à base de cogumelos venenosos. Outra lenda sustenta que o imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821) só conseguiu gerar um filho graças aos efeitos afrodisíacos das trufas – espécie de cogumelos subterrâneos. Já povos antigos que habitavam a região de Kamchatka, extremo leste da União Soviética, mascavam algumas espécies alucinógenas, a pretexto de encontrar assim o espírito nelas oculto.
A razão para tanto folclore é simples: segundo a bióloga Vera Bonini, do Instituto de Botânica de São Paulo, existem nada menos de 200 mil espécies desses fungos, assumindo formas e cores diversas, capazes de brotar até em meios os mais inóspitos. Os cogumelos são, na verdade, apenas uma parte visível a olho nu de fungos já desenvolvidos em escala microscópica. Extremamente resistentes, os fungos podem se associar a algas, formando os liquens, e assim habitar tranqüilamente as geleiras dos pólos.
Da mesma forma, podem ocorrer em desertos, no alto das montanhas, no interior das cavernas, em densas florestas ou em campos abertos. Mas a fama dos cogumelos não é feita só de fantasias, que certamente nasceram de acidentes com espécies venenosas ou alucinógenas.
Os champiginons, como dizem os franceses, ou funghi, como são chamados pelos italianos, figuram hoje entre os pratos mais apreciados no mundo inteiro. Não que seu uso culinário seja recente: na antiga Roma, Júlio César (100-44 a.C.) deu o próprio nome ao cogumelo preferido, Amanita Caesare. Mas talvez a mais antiga espécie de que se tem notícia seja a que os japoneses cultivam há mais de dois milênios: a shii-take – Leutinus edodes –, que nasce em troncos de árvores mortas. Na França, onde são muito consumidos, as experiências de cultivo foram realizadas, pela primeira vez, por Olivier de Serres, agrônomo da corte de Luís XIV, no século XVII.
O cientista fermentava pedaços de terra revolvida com matéria orgânica decomposta e sobre ela jogava esporos, que fazem o papel das sementes, da espécie Agaricus bisporus. No entanto, foi apenas no século passado que esse alimento passou a ser largamente consumido, a despeito das advertências sobre seus perigos. Em 1835, em sua viagem pelo oceano Pacífico o naturalista inglês Charles Darwin observou os hábitos alimentares dos nativos da Terra do Fogo, no extremo sul da Argentina. Darwin notou que mulheres e crianças comiam enormes quantidades de fungos em estado natural. Os cogumelos representavam seu principal alimento, com acréscimo de alguns frutos silvestres. Os nativos sabiam muito bem o que comiam.
Embora sejam constituídos em 90 por cento de água, os cogumelos têm um surpreendente potencial nutritivo. “Uma pessoa de 70 quilos pode muito bem se alimentar de 200 gramas diários de cogumelos e mais uma pílula de ferro, único composto em que são deficitários”, explica a bióloga Vera Bonini. Por terem grande quantidade de proteínas – 4 por cento de seu peso, mais, por exemplo, que a batata, o pimentão, a berinjela ou a cenoura -, os cogumelos estimulam a atividade imunológica do organismo, deixando-o mais resistente a doenças. Não é à toa que os franceses os batizaram de carne dos pobres. Mas seus valores nutritivos não param por aí. Os cogumelos ainda são ricos em vitaminas do complexo B e fósforo.
Parece fora de dúvida dizer que os fungos fazem parte do reino vegetal, mas, por estranho que pareça, não é bem assim. Os cientistas preferem classificá-los à parte, tantas são suas diferenças em relação às plantas. A maior e mais importante delas é o fato de os cogumelos não possuírem clorofila, o que os impede de obter seu alimento a partir da energia solar, mediante a fotossíntese, como é regra no reino vegetal. Os fungos se nutrem da degradação de matéria orgânica do solo, árvores mortas, folhas secas – ou até de estrume de animais, como é o caso do cogumelo do gênero Psilocybe, extremamente alucinógeno, por sinal um dos poucos venenosos encontrados no Brasil.
Reconhecer se um cogumelo é comestível ou venenoso é mais difícil do que se pode imaginar. Os métodos populares conhecidos são considerados insuficientes pelos especialistas, como verificar se sua coloração muda ao toque das mãos, se têm um anel na parte superior do talo ou ainda por suas tonalidades ou manchas. Na verdade, para distinguir o que é o que no mundo dos cogumelos, todos esses fatores são importantes, além de muitos outros, como, por exemplo, o tamanho, a cor dos esporos, a forma do anel ou pequenas escamas que podem aparecer na parte superior do chapéu. Em certas regiões da Europa, sair em busca de cogumelos após a chuva, de preferência no outono, é atividade bastante comum, e a sabedoria passa de pai para filho.
Mesmo assim, ocorrem, a cada ano, alguns casos de envenenamento, às vezes mortais. Mas as raras fatalidades não chegam a desencorajar as famílias, que saem a campo munidas até de livros de identificação. Depois de classificadas, as espécies comestíveis se transformam quase sempre numa festejada e suculenta omelete. Efêmeros e frágeis, os cogumelos, porém, não esperam muito até serem colhidos. Algumas espécies têm brevíssimos ciclos de vida: em horas, nascem, crescem, murcham ou se transformam em um simples borrão de tinta, como é o caso do gênero Coprinus, que em apenas seis horas se autodestrói, ficando reduzido a uma pequena mancha escura.
A vida de um fungo começa quando dois esporos da mesma espécie caem no solo ou em outro material propício à germinação. Cada um deles forma pequenos filamentos (hifas) pela duplicação de suas células. Uma grande quantidade de hifas emaranhadas forma o micélio, que se parece com uma teia de aranha microscópica. Quando dois micélios se juntam, os citoplasmas de suas células (conteúdo gelatinoso onde o núcleo está mergulhado) se unem e elas reiniciam o processo de duplicação. As células com dois núcleos se subdividem, dando origem a mais filamentos, cada vez mais próximos uns dos outros. Essas fibras se organizam, emergem da terra e formando o corpo do cogumelo. Primeiro nasce o talo, ou estipe, depois o chapéu, ou píleo, e por último as lamelas, que se encontram protegidas embaixo do píleo.
Nelas, algumas células fundem seus núcleos formando outras, chamadas basídeos. Em seguida, pelo fenômeno da meiose, esse único núcleo se divide em quatro, que serão os esporos, responsáveis pela reprodução (veja esquema). O número de esporos produzido em cada cogumelo é estarrecedor: trilhões deles se espalham pelo campo das maneiras mais inesperadas. A ação do vento é, sem dúvida, a maior responsável pela sua dispersão, e eles podem percorrer quilômetros até cair no chão. Outras espécies emanam um forte cheiro, que atrai os insetos; depois que estes encostam no cogumelo, saem carregados do finíssimo pó. Mas há espécies que contam com o acaso, como, por exemplo, o Lycoperdon perlatum. Minúscula e muito diferente dos cogumelos tradicionais, essa espécie se parece com uma almofadinha que contém um orifício na parte de cima. Seus esporos são formados no interior do cogumelo, de onde só conseguem sair sob pressão da pata de um animal, ou caso caia um temporal, ou ainda se qualquer outra força os pressionar, como a um tubo de pasta de dentes.
Como não são capazes de transformar energia solar em alimento, os cogumelos contam com poderosos recursos: uma série de enzimas capazes de dissolver e transformar substâncias como a clorofila e a lignina encontradas nas plantas. Cada espécie produz tipos diferentes de enzimas, de acordo com os compostos que devem absorver. “Se os fungos não exercessem essa função degradadora, certamente grande parte da floresta estaria repleta de detritos vegetais, como toras de árvores e folhas mortas”, explica o biólogo paulista Gilberto Martho. “Os fungos junto com as bactérias, são imprescindíveis na reciclagem da matéria orgânica e na transformação do detrito em alimento aproveitável.”
Se, de um lado, eles ajudam a manter o ecossistema, de outro são ferozmente combatidos, por estragar madeiras recém-abatidas ou mesmo já secas, que seriam usadas na produção industrial. Mas alguns cogumelos se utilizam ainda de outra fonte de alimento. As deliciosas trufas, por exemplo, sobrevivem apenas quando associadas a outros vegetais, especialmente o carvalho. Neste caso, quando os micélios se unem, estendem sua “teia até a raiz da árvore, de onde recebem alimentos que se formam pela fotossíntese. Em troca, cedem outras substâncias já degradadas.
Já os orelhas-de-pau, ou poliporídeos, nascem em árvores vivas, e delas se alimentam durante anos, formando uma espécie de grande concha, extremamente dura e resistente. As espécies proporcionam um banquete de surpresas: cogumelos fluorescentes, que podem ser fotografados à noite, ou com aspecto de alga marinha ou de um singelo ninho de passarinho. Calcula-se que existam no Brasil centenas de espécies. A maioria é menor e mais seca que na Europa, já que o clima não é úmido o bastante. De qualquer forma, muitos cogumelos ainda se prestam às mais fantasiosas fábulas, enquanto outros, às reais delícias da arte culinária. .
Para saber mais:
(SUPER número 10, ano 4)
Ao gosto brasileiro
Ao contrário dos orientais, acostumados a consumir vários tipos de cogumelos, no Brasil apenas duas espécies são apreciadas: o Agaricus, mais conhecido como champignon, e o Pleurotus, cogumelo gigante de gosto acentuado. O primeiro começou a ser cultivado em 1953, em pequenas quantidades. Com a vinda de imigrantes da ilha de Formosa, poucos anos depois estabeleceu-se uma cultura permanente, em especial no município paulista de Moji das Cruzes, responsável hoje por cerca de 70 porcento da produção nacional, estimada em 3 mil toneladas por ano. Os Estados Unidos, o maior produtor mundial, colhem anualmente por volta de 135 mil toneladas. A produção brasileira atende apenas ao mercado interno, devido aos preços elevados e à falta de controle de qualidade.
Segundo Edson de Souza, técnico de laboratório do Centro de Pesquisa de Cogumelos Comestíveis (CEPEC) de Moji das Cruzes, as indústrias responsáveis pelo processamento do cogumelo, para conservação (em lata ou em vidro) ou comercialização em estado cru, costumam lavar o fungo com bissulfito de sódio, um sal capaz de clarear o alimento, mas que tem efeitos cancerígenos. A legislação brasileira permite o uso do composto em concentrações prefixadas. Para o professor de Farmácia Andreyus Korolkovas, da USP, “a substância de fato faz mal ao organismo, mas apenas em grandes quantidades; por via das dúvidas, é recomendável que se lave cada cogumelo antes de consumi-lo”.