Inverno: Assine Digital Completo por 5,99

Diretor da FDA é acusado de distorcer dados envolvendo novo tratamento para a Covid-19

No anúncio de aprovação emergencial para o uso de soro convalescente, um oficial da FDA citou que o tratamento salvaria "35 pessoas em 100" – o que não corresponde aos dados concretos.

Por Bruno Carbinatto
Atualizado em 26 ago 2020, 18h07 - Publicado em 26 ago 2020, 17h03

A agência reguladora americana Food and Drug Administration aprovou, de forma emergencial, o uso de plasma convalescente (retirado de pessoas que se curaram do coronavírus) para tratar pacientes internados com Covid-19. No anúncio feito no último domingo, o presidente Donald Trump e dois membros de seu governo comemoraram a decisão, citando um dado animador: esse tratamento reduziria a letalidade da doença em 35%. Isso significaria que “35 em cada 100 pacientes com Covid-19 poderiam ser salvos” com o tratamento, nas palavras de Stephen M. Hahn, comissário da FDA.

Só há um problema: esse dado não é verdadeiro, como logo apontaram diversos cientistas. Na verdade, ainda não existem estudos demonstrando se o uso de plasma convalescente de fato é eficaz – muito menos cravando uma redução de letalidade como essa. O assunto ganhou a mídia e o comissário foi acusado de fraudar dados e convidado a se retratar publicamente pelo erro.

Mas, afinal, de onde surgiu esse número? Em sua decisão, a FDA citou um estudo feito pela organização médica Mayo Clinic. A pesquisa ainda está em pre-print, o que significa que não foi revisada por outros cientistas e publicada em uma revista especializada. No trabalho, os pesquisadores avaliaram o uso de tratamento com plasma convalescente em vários pacientes com Covid-19 em diferentes etapas da doença. O estudo não foi randomizado e controlado, ou seja, não incluiu um grupo que recebeu placebo para se comprovar a eficácia do tratamento.

Os resultados indicaram que o uso de plasma convalescente pode ter bons resultados, especialmente se ele for aplicado no início dos sintomas. Mas isso é apenas uma sugestão: o próprio trabalho afirma que são necessários novos estudos clínicos randomizados controlados para se provar a eficácia do tratamento. Aí é que entra o problema: os 35% citados pela FDA não estão presentes no estudo; o dado também não está sequer escrito na autorização emergencial emitida pela agência, nem na análise feita por cientistas do governo americano que embasou a decisão. Em entrevista ao New York Times na segunda-feira, um dos autores do estudo disse que não sabia da onde o número havia sido tirado.

Mais tarde, a situação ficou mais clara. O que parece ter acontecido foi uma confusão com um dado de um sub-grupo muito restrito do estudo. Em pacientes com menos de 80 anos e não entubados, os que receberam plasma com alto nível de anticorpos teve uma letalidade de cerca de 6,5%, enquanto os que receberam um plasma com um nível menor de anticorpos tiveram uma letalidade de aproximadamente 10%.

Continua após a publicidade

Ou seja, a letalidade foi 35% menor no grupo que recebeu mais anticorpos em relação ao grupo que recebeu menos anticorpos. Isso nem de longe diz que 35 em cada 100 pessoas seriam salvas pelo tratamento – esse dado só poderia ser obtido comparando um grupo que recebeu o tratamento com outro que não recebeu.

Além disso, o número foi garimpado em um sub-grupo dos dados detalhados sobre os pacientes do estudo, e não representa os resultados da pesquisa como um todo. Em seu Twitter, uma das porta-vozes da FDA tentou justificar o número publicando esse dado, afirmando que ele significaria que “o tratamento foi benéfico para 35% das pessoas”. Ela logo foi corrigida por cientistas e se retratou, deixando claro que o valor se referia a letalidade relativa entre dois grupos específicos de pacientes, mas insistiu na premissa de que isso provaria que o tratamento eficaz, o que não é verdade.

https://twitter.com/FDASpox/status/1297706985039835136

Continua após a publicidade

Também em seu Twitter, o comissiário Stephen M. Hahn se pronunciou. “Eu fui criticado por comentários que fiz no domingo sobre os benefícios do plasma convalescente. A crítica é inteiramente justificada. O que eu deveria ter dito melhor é que os dados mostram uma redução do risco relativo, não uma redução do risco absoluto”, disse. Ele também disse que a decisão da FDA não foi motivada por razões políticas e que a autorização emergencial não significa que o tratamento deixará de ser acompanhado, e se estudos posteriores mostrarem que ele é ineficaz ou perigoso, a autorização poderá ser retirada.

https://twitter.com/SteveFDA/status/1298071620414824452

O tratamento com plasma convalescente é uma aposta dos médicos contra a Covid-19 já há algum tempo. Ele se baseia no fato de que pessoas que se curam da doença possuem anticorpos contra o coronavírus em seu sangue, que, se forem transferidos para pessoas em condições graves, talvez ajudem na batalha pela vida. Mas não se sabe se isso de fato é eficaz: há poucos estudos do tipo, a maioria com amostragem baixa e/ou não randomizados e controlados.

Continua após a publicidade

É consenso entre a FDA, a OMS, a Mayo Clinic e a maioria dos cientistas de que é necessário uma pesquisa que atenda a todos esses requisitos para cravar se o medicamento é eficaz, e ela ainda não existe. O projeto britânico RECOVERY, que vem testando tratamentos contra a Covid-19 e provou a eficácia de remédios como a dexamestasona, está fazendo um ensaio clínico controlado com o soro, mas os resultados ainda não foram publicados.

A postura da FDA, por sua vez, levantou preocupação entre pesquisadores americanos, visto que a agência é a maior autoridade de saúde no país quando se trata de avaliar a eficácia e segurança de medicamentos e de possíveis vacinas que virão. Embora cientistas se dividam entre apoio ou crítica à aprovação emergencial do tratamento, a maioria desaprovou o malabarismo estatístico feito pela agência no pronunciamento.

“Pela primeira vez, parece que os oficiais de comunicação e pessoal da FDA deturparam grosseiramente dados sobre uma terapia ”, disse ao New York Times Walid Gellad, líde Centro de Política e Prescrição Farmacêutica da Universidade de Pittsburgh. “E isso é um grande problema.”

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 5,99/mês*
OFERTA RELÂMPAGO

Revista em Casa + Digital Completo

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
A partir de 10,99/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.