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Heróis da resistência: portadores de HIV que sobrevivem por anos

Os cientistas estão querendo saber por que muitas pessoas infectadas pelo vírus HIV conseguem viver anos sem a doença se manifestar.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h33 - Publicado em 31 out 1995, 22h00

Os cientistas querem saber o que essa gente tem de tão especial para deixar o vírus acuado por um tempo muito maior do que o de costume. Por enquanto, há poucas pistas. Mas as pesquisas poderão revelar um contragolpe fatal do organismo para derrotar a mais terrível doença do mundo atual.

Por Lúcia Helena de Oliveira, com a colaboração de Patrícia Logulo, Chris Delboni, Mariela de Castro Santos, Luiz Americano e Rossana Laurell.

Em novembro de 1986, o universo do assistente social Gerson Winkler foi arrasado pelo vírus da Aids. O papel com o timbre de um renomado laboratório acusava que o HIV causador da doença estava escondido no sangue desse gaúcho de, então, 27 anos. Logo veio uma aposentadoria por invalidez, mandando para o espaço um ótimo emprego numa empresa de informática. Os médicos, por sua vez, eram categóricos: para eles, o paciente só sobreviveria uns seis meses. Sem perspectivas, Winkler vendeu tudo o que tinha, do carro ao apartamento. Divorciado, disse adeus às filhas pequenas e partiu para o sonho de uma volta ao mundo. Só que a viagem acabou, o dinheiro acabou e Winkler voltou com saúde de ferro para o Rio Grande do Sul. Ainda assim, ficou esperando a morte, que talvez estivesse atrasada. Passado um ano inteiro, nada. “Tive, aí, uma certeza: iria morrer sim, mas de fome, se continuasse parado, sem emprego”, diz ele, já com nove anos de resistência contra o HIV.

Como 5% dos contaminados pelo temível vírus da Aids, Winkler é considerado um long-term non-progressor (LTNP), definição inglesa para os indivíduos soropositivos em que a doença não progride mesmo após um longo período de infecção pelo HIV. “São organismos absolutamente saudáveis, em que nem sequer as células defensoras do sistema imunológico apresentam qualquer alteração”, explica Anthony Fauci, do Instituto Nacional de Saúde, nos Estados Unidos. “E, no entanto, o vírus está lá, dentro deles”, inquieta-se o especialista, quase impaciente com a charada. Hoje, os casos não-progressivos são, de fato, a peça mais intrigante no quebra-cabeças da Aids.

No início dos anos 90, cientistas ingleses descobriram africanos com mais de dez anos de contaminação pelo HIV sem qualquer sintoma de falência imunológica. Na época, cogitou-se que algo — um componente genético — beneficiaria os soropositivos negros da África. Mas o tempo mostrou que a resistência à Aids não é privilégio de uma raça. Alguns dos recordistas mundiais na luta contra o HIV foram encontrados na Califórnia, Estados Unidos, graças a um estudo anterior sobre a hepatite B, doença do fígado que é sexualmente transmissível.

Ainda na década de setenta, a médica americana Susan Buchbinder, do Departamento de Saúde P��blica de São Francisco, passou a coletar o sangue de mais de 6 700 homossexuais para investigar a incidência de hepatite nessa população. Por sorte, as amostras foram congeladas e quando a Aids explodiu, quase dez anos depois, a especialista resolveu dar uma nova examinada no material que estava armazenado. Assim, ela provou que muitos de seus antigos voluntários já tinham o HIV antes de 1980, quando a Aids nasceu oficialmente. “E parte deles continua passando bem”, garante a médica. “Conheço gente saudável que é portadora há dezoito anos.”

No começo, os cientistas rotularam esses indivíduos de “sobreviventes” da Aids. Só recentemente surgiu a definição de paciente não-progressivo, que é muito mais exata: “Sobrevivente pode ser quem vive muitos anos, apesar de doente”, justifica o pesquisador americano Anthony Fauci. “E, no caso, estamos falando de pessoas nas quais os males relacionados à Aids nem sequer aparecem durante um longo período.”

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A existência de organismos capazes de combater o HIV por muito tempo é mais do que mera curiosidade científica. “Se desvendarmos seus truques, poderemos reproduzir essas estratégias no corpo de quem tende a morrer depressa por causa da doença”, diz Peter Hawley, diretor da Whitman-Walker, a maior clínica para tratamento da Aids em Washington, capital dos Estados Unidos.

Os cientistas partem de duas teorias para explicar o fenomenal talento para briga de alguns infectados. “Neles, na maioria das vezes, as células de defesa são mais ativas”, observa Mark Fineberg, outro pesquisador do Instituto Nacional de Saúde, nos Estados Unidos. Ou seja, o sistema imunológico é capaz de golpear com maior rapidez e eficiência tanto o próprio HIV quanto os agentes de outras infecções.

A segunda teoria é a de que certos subtipos do HIV são adversários fracos — vagarosos no ataque e facilmente intimidados por células de defesa competentes. A fragilidade do inimigo deve ser provocada por defeitos genéticos. “É provável que o segredo seja a combinação dos dois fatores — um sistema imunológico bem dotado e um vírus menos perigoso”, pensa Fineberg.

A princípio, qualquer soropositivo é saudável e capaz de reagir a gripes, resfriados, estresse e outros problemas do dia-a-dia como quem não tem o vírus. O que difere os não-progressivos de outros infectados é que eles conseguem manter a saúde por muito mais tempo. Seu prazo limite, porém, a ciência ainda desconhece. Por enquanto, os pesquisadores procuram peculiaridades no organismo dessa gente.

Exames revelam que, no corpo dos soropositivos resistentes, a quantidade de HIV é bem menor — menos de metade do que se encontra na maioria dos portadores. “Conseqüentemente, a atuação deles também deve ser branda”, raciocina a infectologista carioca Cyntia Alves Pereira de Souza.

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Além disso, nos nódulos linfáticos dos soropositivos que desenvolvem a Aids relativamente depressa, os vírus praticam atos de vandalismo. Os estragos são notados por meio de microscópio antes dos primeiros sintomas maléficos. “Nos pacientes não-progressivos é diferente”, garante o americano Anthony Fauci. “Essas estruturas, onde os vírus se instalam, ficam quase preservadas.”

Até agora, a melhor descoberta é que nesses indivíduos uma outra célula defensora, conhecida por CD-8, pode frear o avanço do vírus, liberando um grande número de moléculas inibidoras. Cerca de 160 pesquisadores do mundo inteiro procuram a chave química capaz de acionar essas células. Quando ela for encontrada, poderá ser criada uma vacina terapêutica — incapaz de prevenir a contaminação pelo HIV, mas com o poder de imunizar quem já estiver infectado. Então, todos os soropositivos do mundo ( só no Brasil, eles são 500 000), ganhariam a resistência da batalhadora minoria não-progressiva.

Dois fatores prejudicam a investigação dos organismos lutadores. Um deles é que nem sempre os soropositivos sabem quando se infectaram, dificultando a garimpagem de casos não-progressivos. O outro fator é a falta de similaridades entre esses casos. No início, desconfiou-se que a inibição do HIV era privilégio de pacientes jovens — mas existem soropositivos resistentes de todas as idades. Os pesquisadores arriscaram, então, analisar a forma de contágio que, no entanto, também não parece ser importante.

Segundo dados do Instituto Nacional de Saúde, nos Estados Unidos, os não-progressivos típicos são o retrato de um bom moço da geração saúde. Cerca de 90% deles praticam exercícios três vezes por semana, quase não bebem álcool e mantêm uma dieta equilibrada. Metade evita tomar remédio por qualquer bobagem. E 80% jamais tragaram um cigarro. Outros estudos apontam que são pacientes menos ansiosos e mais otimistas.

“É complicado apontar a influência das emoções”, diz a infectologista Walkyria Pereira Pinto, professora da Universidade de São Paulo. “É provável que uma boa qualidade de vida até contribua, mas não é determinante da sobrevivência.” Na opinião da médica, só a boa alimentação faz sentido: “Um organismo subnutrido reage mal a qualquer infecção.”

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Na realidade, convive-se melhor com o HIV hoje do que no início da epidemia. As primeiras vítimas da doença sobreviviam apenas dois ou três anos após a contaminação. Atualmente, nos países avançados, a média de sobrevivência é oito anos, sendo que ela tende a aumentar com novos arsenais terapêuticos. “Temos mais informações sobre o comportamento do vírus”, afirma o médico paulista Dráuzio Varella. Ele não tem dúvida de que é preciso evitar a reinfecção, o que é um conceito novo. “Mesmo casais em que ambos são soropositivos não podem abandonar o uso de preservativos nas relações sexuais”, alerta. “Às vezes, um descuido fornece a dose extra de HIV que faltava para se manifestar a doença. Ou, então, o portador adquire uma forma do vírus mais violenta.”

É bom que se comemore a vida cada vez mais longa dos soropositivos. Mas, na mesma proporção em que a sobrevivência deles aumenta, crescem os riscos de transmissão. No mundo inteiro já foram registrados mais de 986 000 episódios de Aids. Desses, 71 110 ocorreram no Brasil. “Cerca de quatro mil pacientes são jovens entre quinze e dezoito anos de idade”, conta a médica Lair Guerra de Macedo, que dirige o Programa Nacional de Combate à Aids. Metade das vítimas brasileiras contraiu a doença em relações sexuais. A contaminação pelo sangue representa 34,7% da incidência, enquanto 2,6% dos contágios são de mãe para filho.

No entanto, as campanhas preventivas continuam raras e de gosto duvidoso. E, uma vez consciente da importância do uso de preservativos, o brasileiro paga caro: a camisinha nacional custa quase um dólar, enquanto o preço nos países avançados é a metade disso. No Japão, onde cada cidadão ganha em média dez vezes mais do que o brasileiro, a camisinha custa dez vezes menos. “Desse jeito, fazer prevenção é como anunciar carro importado para miserável”, critica Dráuzio Varela. “A epidemia continua descontrolada.” E, se o descoberta de portadores não-progressivos é um alento, a realidade da Aids ainda é terrível para a maioria dos infectados.

Para saber mais:

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(SUPER número 7, ano 6)

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(SUPER número 10, ano 10)

Há muito tempo, eles carregam o HIV. E passam bem

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Trabalhar é a válvula de escape do gerente de treinamento João Cristino da Silva, 35 anos, dez deles carregando o HIV. Raramente ele é encontrado em São Paulo, porque orienta o atendimento numa rede de lojas de conveniência espalhadas pelo país. Jamais comunicou à empresa que é portador. “Mas todos devem saber, porque já dei entrevistas e participei de campanhas de prevenção na TV”, desconfia.

“Não faz diferença, pois minha postura impõe respeito em qualquer lugar.” O alto-astral, ele acha, também conta: “Só fico triste quando falta dinheiro”.

Exemplo de felicidade

Fanático pelo Grêmio, o assistente social Gerson Winkler, 36 anos, sempre vai ao estádio torcer pelo tricolor gaúcho. Também não perde um Carnaval — “de preferência no Nordeste”. Adora andar de bicicleta nos parques de Porto Alegre, quando não está trabalhando na Secretária Municipal de Saúde. Há dois meses, ele e seus colegas invadiram os motéis da cidade distribuindo camisinhas. Contaminado pelo HIV há nove anos, Gerson quer servir de exemplo também para outros soropositivos: “Podemos levar uma vida normal e cheia de alegria”, ensina.

Contra a expectativa

“Peguei o HIV aos vinte anos, vivendo um grande amor”, conta o jornalista carioca Pedro Paulo Santana. Isso foi há doze anos. Santana entrou em depressão — “mais pela morte do parceiro do que pelo fato de também estar com o HIV”. Para piorar, sua médica na época admitiu que não sabia como tratar a doença. E a avó lhe deu um terno, para vestir um morto distinto. “Já usei a roupa em vários enterros de pessoas que estavam saudáveis quando todos achavam que eu iria morrer”, diz. “Sou a prova de que, em matéria de Aids, tudo é uma grande dúvida.”

Enquanto o bicho dorme

Ela é fotógrafa, tem 36 anos, já passou por três casamentos e há sete meses descobriu-se soropositiva. A curitibana Fernanda Carvalho de Aquino havia resolvido fazer o teste de Aids com o namorado, antes de abolirem o preservativo. O resultado dela deu positivo. O namoro acabou. Mãe de três adolescentes, ela deve ter o vírus há cinco ou sete anos, período em que chegou a engordar. “Tem um bichinho que está dormindo na minha mãe”, explica Lamec, de 11 anos. Enquanto o HIV não desperta, Fernanda trabalha, faz ioga e malha duas horas por dia numa academia.

Convivência com o vírus

Em 1987, o paulistano José Araújo Lima recebeu o resultado positivo de teste de Aids e entrou em pânico: “Viajei para o Japão e para China, onde fiquei quatro anos, fazendo faxina e sendo ajudante de cozinha.” Lá fora, não contou para ninguém que tinha o vírus. Mas tanto segredo era sufocante e ele voltou para o Brasil. Hoje preside o Grupo de Incentivo à Vida (GIV), que apóia aidéticos e soropositivos. “Não estou ansioso pela descoberta da cura. Minha preocupação é viver bem com o HIV”, diz Araújo, com ar tranqüilo.

Entre os recordistas

O artista plástico americano Robert Anderson, 42 anos, já está acostumado a doar sangue para ser estudado em vários centros de pesquisas do mundo. Há dez anos, esse californiano de São Francisco descobriu que era portador do HIV. Mais tarde, reexaminando amostras sangüíneas coletadas em 1979, os médicos confirmaram que Rob está infectado desde aquela época, pelo menos.

Nesses dezesseis anos, porém, nunca teve sequer um resfriado forte. “Antes mesmo de saber que era portador, aprendi a meditar”, diz ele. “Por isso, adoto atitudes positivas.”

As várias faces do mal

Quando altera-se a ordem dos genes do HIV, surge um tipo diferente, com táticas próprias para agredir o corpo humano.

Existem dois subtipos de vírus da Aids, chamados B e C. Durante muito tempo, tentou se descobrir qual deles era mais devastador. Hoje se sabe que tanto um quanto outro podem ter variações tremendamente agressivas. A descoberta mais recente foi realizada por cientistas da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Eles notaram que o subtipo C tem facilidade para invadir macrófagos, células de defesa presentes no pênis e na vagina — por isso esse vírus seria mais freqüente em quem se contaminou em relações heterossexuais. Já a maioria dos soropositivos homossexuais masculinos costuma ter o subtipo B, que prefere infectar células chamadas monócitos, presentes na mucosa anal.

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