Saudade pode reduzir sintomas de depressão, sugere pesquisa com cientista brasileiro
Estudo pioneiro mostra que transformar sentimentos negativos em saudade pode ser uma estratégia terapêutica.

“A saudade mata a gente“? A música pode até dizer que sim, mas um novo estudo sugere que o sentimento pode fazer o contrário e reduzir sintomas de depressão.
A pesquisa investiga uma possibilidade inédita de tratamento da doença que afeta mais de 11 milhões de brasileiros, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Ela foi desenvolvida por pesquisadores do King’s College de Londres, no Reino Unido, e pelo brasileiro Jorge Moll Neto, neurocientista e idealizador do IDOR Ciência Pioneira, uma iniciativa independente de investimento em pesquisas de ponta.
O estudo, que foi publicado na revista Frontiers in Psychology, já declara em seu título que a “saudade é boa”. “Embora envolva elementos de perda, [a saudade] também pode carregar amor, conexão e significado”, explicou Jorge Moll à Super.
Com base em debates entre os pesquisadores – que até falaram de bossa nova, um gênero musical inteiro praticamente baseado na saudade – e estudos anteriores que mostraram que a nostalgia pode ajudar a encontrar um sentido para a vida, os cientistas desenvolveram a hipótese de que “a saudade poderia funcionar como um recurso emocional útil na psicoterapia”. E deu certo.
Explicando com música
A palavra pode ser brasileira, mas o sentimento é universal. Milhares de músicas e livros já foram escritos sobre a saudade, que os pesquisadores ingleses que trabalharam com Moll chamam de “longing”. Essa emoção, que os cientistas definiram como “sentimento de amor por algo no passado”, está em todo canto da cultura brasileira, mas pouco presente nos papers e pesquisas científicas.
O estudo pioneiro avaliou 39 pessoas que relataram sentimentos intensos e frequentes de autocrítica. A autocrítica “está fortemente ligada à depressão porque gera um ciclo de culpa e desvalorização pessoal”, explica Moll. Essa cobrança excessiva alimenta sentimentos de tristeza, inadequação e desesperança, que formam um quadro depressivo.
Os participantes foram convidados a criar um filme de 10 minutos com fotos, músicas e vídeos pessoais. A primeira parte do projeto audiovisual foi feita com materiais que evocavam as emoções de tristeza e autocrítica. A segunda virava a chave, trazendo coisas que evocavam a saudade. Eles assistiram ao vídeo por uma semana, uma vez ao dia, refletindo sobre esses sentimentos.
As lembranças afetivas do passado mudavam o tom do vídeo e ajudavam os participantes a transformar seus sentimentos negativos em saudade. Depois de uma semana com o filme, as pessoas apresentaram uma redução dos sintomas depressivos de autocrítica.
O engajamento com o estudo foi alto: das 39 pessoas selecionadas, só três desistiram do processo. As outras 36, que responderam questionários para avaliar a frequência de possíveis sintomas depressivos em graus leve e moderado antes e depois de participar do experimento, apresentaram respostas positivas ao tratamento dos cientistas. Ninguém apresentou sentimentos adversos, como um aumento de sensações de angústia.
O melhor jeito de explicar é recorrendo à maior obra-prima sobre o sentimento, a música Chega de Saudade, escrita por Vinicius de Moraes e Tom Jobim e eternizada na voz e violão de João Gilberto.
Nas estrofes, o tom é menor, a melodia é triste e o cantor lamenta a perda de sua amada: “Sem ela não há paz, não há beleza, é só tristeza e a melancolia que não sai de mim”. Assim que ele canta isso e reflete sobre a saudade que sente, a música dá uma virada.
No coro, o tom fica maior, a melodia vira feliz, o ritmo se incrementa e as cordas e o piano chegam para acompanhar o cantor enquanto ele sonha com uma nova vida ao lado de seu amor. “Há menos peixinhos a nadar no mar do que os beijinhos que eu darei na sua boca!” Ele encontra a possibilidade de felicidade do outro lado da saudade.
A psicologia e a psiquiatria já avançaram muito no tratamento da depressão, mas muitas pessoas que sofrem com a doença não respondem aos tratamentos que a ciência conhece atualmente. Alguns pacientes podem levar anos para encontrar a terapia que funciona, e várias nunca encontram. “Precisamos de abordagens mais personalizadas e criativas”, argumenta Moll.
Trazer a saudade para a conversa sobre tratamentos psicoterapêuticos possíveis é importante para pensar em possibilidades inovadoras de terapia, que possam alcançar mais pessoas e se aproximar da realidade emocional e cultural delas. Todo mundo sente saudade. De forma mais eloquente e na voz do Milton Nascimento: “Em volta desta mesa velhos e moços/Lembrando o que já foi/Em volta desta mesa existem outras falando tão igual”.
Esse estudo é uma prova de conceito, ou seja, um “teste inicial para avaliar se uma ideia é viável, segura e promissora”. Por isso, os experimentos foram feitos com uma amostra não clínica, isto é, os voluntários eram pessoas que se sentem prejudicadas por causa da autocrítica frequente e intensa, mas que não tinham diagnósticos de transtornos mentais.
Isso é necessário porque é a primeira vez que a ideia é testada, e é preciso checar a segurança do método para evitar submeter pessoas vulneráveis a algo que poderia piorar a condição delas. Agora que os resultados foram promissores e ninguém apresentou sentimentos negativos, o tratamento “bossa nova” pode ser testado em estudos maiores e controlados, com pacientes diagnosticados.
O estudo teve baixa participação de homens, então análises futuras podem estudar comparações de gênero. Além disso, os cientistas também querem investigar os mecanismos cerebrais por trás da saudade e entender se ela pode oferecer um potencial terapêutico em outros casos.