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A cidade pós-coronavírus será mais poluída e desigual

A qualidade de vida no Brasil sofreu com obras que beneficiaram a circulação de carros em detrimento dos pedestres. E a Covid traz de volta esse fantasma.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 18 jan 2022, 08h10 - Publicado em 12 ago 2020, 11h47

Tem cidade feita para carros e cidade feita para gente. Essas últimas são mais adensadas – concentram trabalho e moradia em bairros compactos. Isso evita deslocamentos pendulares diários entre os subúrbios e o centro. Os protagonistas desse ideal de cidade são prédios de uso misto, com apartamentos para várias faixas de renda e escritórios. Em volta, nada de grades ou muros. O piso térreo contém lojas e restaurantes que criam uma continuação da calçada, acessível aos transeuntes.

Nessas cidades menos amigáveis aos carros, as ruas têm espaços para bicicletas e ônibus. Praças e largos são espaços de convivência aconchegantes, e não matagais abandonados. Cidades feitas para carros, por outro lado, dão preferência a ruas largas, viadutos e vias expressas sem cruzamentos, que não servem para comércio ou habitação. Em casos extremos, avenidas são construídas no fundo de vales onde antes havia rios, e acabam cercadas por paredões de concreto árido. É o oposto da rua com fachada ativa, que interage com o passante. O comércio se concentra em shoppings sem janelas; o trabalho, em prédios que são só janelas (de preferência, azuis e espelhadas). 

Nenhuma cidade é só uma coisa ou só outra. Los Angeles, talvez o lugar mais carrocêntrico do mundo, tem áreas em que dá para viver a pé. Manhattan, a menos rodoviarista, onde 76% das residências nem abrigam um carro, também tem suas ruas inóspitas. E o fato é que cidades que pendem mais para os carros geram uma lista de problemas evitados pelas cidades amigas dos pedestres: mais poluição, mais trânsito, menos investimentos em transporte público, córregos mais poluídos (já que só abrigam avenidas nas margens, jamais calçadas). 

Outro reflexo, bem brasileiro, do carrocentrismo são os bairros de classe média das nossas grandes cidades. Nossos condomínios residenciais se tornaram torres muradas, erguidas com o propósito de isolar seus moradores. Nisso, o comércio de rua míngua, e toda interação que o morador tem com a cidade acaba mediada por um carro.     

O coronavírus pode fazer esse problema se exacerbar. O advento do home office para os mais ricos criou um boom no mercado de condomínios afastados do centro, que oferecem mais espaço a um metro quadrado mais em conta. Bacana, não fosse por um problema: isso torna a cidade ainda mais dependente de carro do que já é. Quanto mais condomínios afastados, então, sua urbe vai ficando cada vez mais Los Angeles, e cada vez menos Manhattan. Uma pena, ainda mais levando em conta uma tendência imobiliária pré-pandemia de construir apartamentos menores em regiões centrais – que, em várias cidades, estavam ganhando ciclovias (coisa que há dez anos era ficção).  

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Revitalizações à parte, a grande régua para medir se uma cidade gosta mais de carros ou de gente é o uso de transporte público. E aí temos uma má notícia: entre 2013 e 2018, a demanda por ônibus no Brasil caiu 25% – ainda que muitas prefeituras tenham melhorado a qualidade dos serviços, com sistemas BRT nos moldes da rede exemplar de Curitiba: corredores exclusivos, ar-condicionado e veículos articulados de piso alto, com mais espaço interno. O que aconteceu, então? 

Parte dessa queda pode ser atribuída ao Uber e seus congêneres. Não que eles sejam algo ruim. Melhor um carro particular que transporta cem pessoas por dia do que um que transporta uma só. Mesmo assim, nada é mais eficiente do ponto de vista urbanístico que um bom sistema de transporte de massa. E se a uberização dos deslocamentos atrapalha isso, pior para todos. Outro motivo para a queda está no desemprego. A taxa pulou de 6,4% em dezembro de 2014 a 11% em fevereiro de 2020 (antes da pandemia). E quem não tem emprego se desloca menos. Se ônibus lotado é ruim, ônibus vazio pode ser pior, como vamos ver a seguir.

Sucateamento    

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A maioria das empresas de ônibus brasileiras é remunerada pelas prefeituras pelo número de passageiros transportados, e não pela quantidade de veículos que põem para rodar (ou pela quilometragem total percorrida pela frota). Para obter algum lucro, a lotação média dos ônibus precisa ficar em 6 passageiros por m². Ou seja: o sistema depende de uma lotação muito superior à recomendada pelos epidemiologistas para evitar a transmissão do vírus. E aí temos um problema: é incerto que o transporte público sobreviva à pandemia sem ser sucateado.

O sucateamento amplia a desigualdade: o padrão de vida das pessoas de renda mais baixa afunda, já que elas são obrigadas a usar qualquer sistema de transporte público que houver, seja BRT, seja van clandestina. Enquanto isso, os mais ricos se encastelam em condomínios com múltiplas vagas na garagem. E o sonho de quem ganha menos volta a ser aquele dos anos 1980 e 1990, quando o transporte público era pior que o atual: ter um carro, qualquer carro, a qualquer preço. Um retrocesso brutal.

E o pior é que isso de cidades feitas para pessoas não tem nada de utópico, nem é exclusividade de país campeão de IDH. Pense em Ipanema, um bairro fervilhante, cheio de prédios de uso misto, ou no centro velho de São Paulo, com uma densidade de transporte público comparável à de Paris. Com BRTs, ciclovias, bilhetes únicos e apartamentos novos em regiões centrais, muitas cidades brasileiras ensaiavam uma revolução. A Covid, infelizmente, pode inverter a tendência. E trazer de volta o fantasma do modelo rodoviarista. Que a vacina contra o vírus, quando chegar, também sirva de cura para esse mal. Porque, sem gente andando na rua, não há rua.

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