A gente não quer só lei trabalhista. A gente quer liberdade para trabalhar.
As relações de trabalho mudaram. Se continuarmos tratando-as como uma luta de classes entre patrões e empregados, os dois lados só têm a perder.
Não é de hoje. O projeto de lei que regulamenta a terceirização dos contratos de trabalho no Brasil está circulando pela Câmara há 11 anos. Mas parece que ninguém fora de Brasília discutia o assunto a sério até abril, quando, ”de repente” ele foi aprovado pelos deputados. A partir daí, o debate pegou fogo. Esse projeto de lei, a princípio, permite às empresas contratar terceirizados para realizar suas ”atividades-fim”. Por exemplo: hoje, a Embraer pode usar faxineiros terceirizados, de outras empresas, sem ter de cuidar dos direitos trabalhistas deles. Mas com os operários que exercem a atividade-fim da companhia – fabricar aviões – é outra história: precisa contratar diretamente, responsabilizando-se por FGTS, férias, 13º… Só que agora as coisas podem mudar. Se o projeto de lei virar lei de fato, qualquer empresa vai poder terceirizar à vontade. Ou quase: no momento em que escrevemos, o projeto já foi emendado 240 vezes, caminha sem pressa no Senado e há chances de Dilma vetar.
Mas a discussão continua bem acesa. De um lado, alguns defendem que a terceirização vai criar mais empregos, já que desonera as empresas. De outro, essa lei é o primeiro passo para a extinção dos direitos trabalhistas.
O maior erro nessa história talvez seja esse mesmo: polarizar a discussão, reduzindo-a ao maniqueísmo de defender a CLT como o bem e qualquer flexibilização nas leis trabalhistas como o Lado Negro da Força. Ou vice-versa.
Não é uma coisa nem outra. A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), vale lembrar, foi criada há quase um século, em 1934. Era uma época em que praticamente não havia regra para a relação entre empregador e empregado que não fosse a Lei Áurea. Quando Getulio Vargas anunciou o texto final da CLT o fez com toda a pompa. Os pôsteres da época mostram uma foto enorme dele olhando para os trabalhadores, como um grande protetor. Populismo à parte, fazia todo o sentido, já que a relação entre empresários e empregados não era exatamente um exemplo de justiça social.
O debate em torno da terceirização, agora, passa pela mesma lógica que produziu a CLT: a ideia de que empresários não são confiáveis, e sempre tentarão tirar o máximo do couro do trabalhador, até o limite do permitido em lei. Caberia ao Estado, então, proteger quem trabalha de quem explora sua mão de obra.
Se você concorda ou não com isso, é uma questão de ponto de vista. Mas não dá para negar que os empregados também sofrem com as leis de hoje.
Pegue o caso do FGTS. Todos os empregadores devem aplicar 8% do salário dos funcionários com carteira assinada no Fundo de Garantia pelo Tempo de Serviço. A obrigação se deveu à desconfiança do governo de que o empregador não reservaria a multa que paga na hora de demissão (um salário por ano trabalhado). Só que, no processo, o Estado também tirou o direito do empregado de achar um destino melhor para esse dinheiro, que é dele. Bom, o fato é que o FGTS rendeu 30% menos que a inflação do ano 2000 para cá. Ou seja: aniquilou um terço do poder de compra dos trabalhadores. No fim das contas, é o governo pegando emprestado de quem trabalha, pagando juros reais negativos.
Dá uma olhada:
E o problema não é só o FGTS.
É também a falta de flexibilidade da CLT. Se uma mãe, ao fim da licença- maternidade, por exemplo, decidir amamentar até mais tarde, não pode fazer um acordo para trabalhar meio período ganhando menos, mesmo que queira. Por essas, não falta quem resolva pendurar a carteira de trabalho e tentar a sorte como freelancer. E fica o paradoxo: o excesso de proteção da CLT acaba justamente aumentando a fatia de trabalhadores que não contam com proteção nenhuma.
No fundo, precisamos reformar a legislação trabalhista, permitindo outros tipos de contratação mais flexíveis, que ampliem a liberdade de escolha tanto das empresas quanto dos empregados.
O Uber serve de exemplo. Recentemente ele foi considerado ilegal em algumas cidades brasileiras justamente por não se adequar às leis que regem o trabalho. Para quem não sabe, o Uber é um aplicativo que permite a qualquer motorista oferecer caronas cobrando por elas, como se fosse um táxi. Essa intermediação deu tão certo que o Uber já vale US$ 40 bilhões (sete Embraeres).
Engraçado é que o conceito de ”atividade-fim” , essencial para uma lei da terceirização, perde sentido nessa nova economia mediada por aplicativos. Os motoristas dos sedãs pretos que andam nas metrópoles não são ”do Uber”. Nem recebem pelo Uber – só usam o aplicativo como intermediário para conseguir, na falta de um termo melhor, microcontratos temporários com seus clientes. Tem mais. As estrelas de YouTube que vemos em cartazes de publicidade ganham salários de executivo de multinacional, mas não são funcionárias do Google, o dono do YouTube. Nada disso é regulado.
E claro: não é só a nova economia que está desprotegida pela CLT. As diaristas que o digam.
Então, o que acontecerá quando esse monte de freelancers, terceirizados, precários e pessoas que fazem bico em geral precisarem de férias, licença ou ficarem doentes? Não há lei trabalhista que dê conta. E aí entramos em outro ponto da discussão: talvez o Estado não precise assumir tantas responsabilidades por seus cidadãos para que a sociedade seja justa.
Não existe salário mínimo na Dinamarca, por exemplo. O que tem é uma grande liberdade para contratar ou demitir. Também não há obrigação de férias remuneradas ou 13º. E nem por isso as empresas escravizam seus funcionários – muito pelo contrário, já que o padrão de vida na Dinamarca é praticamente dinamarquês. Sem piada: os serviços públicos funcionam tão bem quanto os privados e o desemprego fica na casa dos 4%, o menor da Europa, onde a média está em 10%. Lá, a lógica não é segurar o emprego do cidadão, ou deixar mais difícil mandá-lo embora. Mas sim garantir que ele tenha uma vida digna mesmo que o salário não dê conta ou que ele esteja desempregado.
Ou seja: a responsabilidade não é só do empresário, mas de toda a sociedade, que paga alguns dos impostos mais altos do mundo. Então fica a pergunta: será que estamos dispostos a mudar quem paga a conta, ou continuaremos tratando o assunto como se ele se resumisse a uma luta de classes entre patrões e empregados? Uma dica para a resposta: a década de 1930 já terminou.
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