Como funciona o tráfico de pessoas
Eles prometem trabalho numa terra onde os salários são altos, mas colocam suas vítimas numa rede de exploração sexual e escravidão
“Você vai adorar. Consegui um emprego. O trabalho é fácil, o salário é bom e é superdivertido”, disse Victoria, com uma arma apontada na cabeça em Israel. Do outro lado da linha estava sua amiga Ludmila Balbinova, em Tiraspol, na Moldávia. Sol e mar em Israel, trabalhando como garçonete. Por que não? A moça topou. Só não sabia que acabava de ser mais um peixe a cair na rede do tráfico de mulheres para prostituição.
Ludmila não precisava preocupar-se com passagens: a amiga passou o contato de uma mulher que resolveria tudo. Ela foi posta num trem até Odessa, na Ucrânia, e, de lá, em outro para Moscou, com outras dez meninas. Quando chegaram, tiveram os passaportes confiscados e foram presas num quarto por uma semana. Foi aí que a ficha começou a cair para Ludmila. Ela e mais três mulheres foram levadas ao aeroporto.
“Você realmente sabe aonde está indo? Tem certeza de que quer fazer isso?”, perguntou-lhe um policial federal antes de carimbar sua saída no passaporte. Não, não tinha certeza. Ainda assim, seu “guarda-costas” não permitiu que “fizesse nenhuma gracinha”. Em quatro horas de voo, chegariam ao Cairo. No Egito, elas ficaram presas num hotel até serem levadas de jipe a beduínos que as atravessariam pelo deserto até Israel.
Do outro lado da fronteira, as meninas foram entregues aos seus compradores: homens que falavam entre si em hebraico, mas se dirigiam a elas em russo. Eram da máfia russo-israelense.
De 1989 em diante, judeus da ex-URSS puderam arranjar a cidadania israelense. Para criminosos, o novo passaporte serviu de chave para as portas do mundo. E sindicatos russo-judeus desenvolveram a prostituição como seu principal negócio.
Ludmila acabou levada a um bordel em Tel Aviv. Lá, atendia até 20 clientes por noite, sete dias por semana. Quando conseguiu fugir, foi presa como imigrante ilegal. E depois deportada. De volta a seu país, descobriu que era HIV positivo.
O tráfico de pessoas é a atividade criminosa onde o céu e o inferno estão mais próximos um do outro. Esse braço do crime produz um lucro astronômico estimado em US$ 32 bilhões anuais – equivalente ao rendimento líquido da JBS, a terceira maior empresa do Brasil e maior frigorífico do mundo. E isso só é possível porque as pessoas têm esperança. São poucos os casos em que alguém é de fato levado para algum lugar à força. Pelo contrário. A vítima é seduzida com a venda de sonhos de uma vida melhor, de mais segurança e conforto para sua família. Depois, é traficada como mercadoria por uma rede criminosa espalhada por ao menos 118 países do globo. No destino, torna-se vítima de alguns dos mais odiosos crimes. Exploração sexual de mulheres e crianças. Trabalho análogo à escravidão em todos os setores da economia. Servidão doméstica. Casamento forçado. Exploração de crianças e deficientes físicos para obter esmolas. Formação de exércitos de soldados infantis.
Existem 460 rotas de tráfico de pessoas, seja entre países, seja dentro de regiões diferentes de um mesmo país. São 20,9 milhões de pessoas somente em trabalho forçado, segundo a ONU.
O Departamento de Estado americano também produz anualmente um detalhado relatório sobre o tráfico de pessoas em todo o mundo. Segundo ele, há 20 países com uma alta incidência de tráfico sem que o governo faça nada contra. Embora a maioria seja de países pobres da África e da Ásia, há também alguns gigantes, como China, Rússia e Arábia Saudita.
O tráfico de crianças é um dos mais dramáticos. No geral, em 2010 (último dado disponível), uma em quatro pessoas traficadas era criança. Mas em algumas regiões, o número de crianças entre as vítimas supera o de adultos – caso da África, dos Andes, do Sudeste Asiático e dos Bálcãs.
Na Arábia Saudita, crianças são traficadas do vizinho Iêmen, com a ajuda de agentes oficiais de fronteira. Elas sofrem dois tipos de tráfico ao mesmo tempo: são usadas para transportar drogas e, chegando lá, podem ser escravizadas sexualmente.
O tráfico voltado à formação de soldados infantis foi registrado no Chade, República Democrática do Congo, Ruanda e no Equador, segundo o relatório da ONU. Mas também há registros atuais de uso de crianças por grupos separatistas no sul da Tailândia.
Mas os maiores casos na atualidade acontecem na RD Congo (leia mais na página 44). Entre janeiro de 2012 e agosto de 2013, a ONU registrou cerca de mil casos de crianças recrutadas por grupos armados congoleses. Em geral, vítimas são sequestradas e forçadas a se juntar a grupos armados. Em outros casos, escolhem entrar com a promessa de dinheiro, estudo ou emprego. Crianças normalmente começam nos conflitos como carteiros, cozinheiros, espiões, escravos sexuais, vigilantes – e, claro, soldados de combate.
Outro ramo focado em menores de 15 anos é a esmola forçada. Na Mauritânia, garotos locais e outros trazidos de países vizinhos como o Senegal são forçados a pedir esmola nas ruas e precisam pagar cotas diárias para seus “donos”. No Cazaquistão, a lógica é a mesma, com o adicional de que as crianças também acabam sendo coagidas a praticar pequenos crimes e, em casos mais extremos, até mesmo participar de produções pornográficas.
Na Papua Nova Guiné, crianças com até 5 anos são entregues à exploração sexual ou trabalho forçado por seus próprios parentes, conforme o relatório do Departamento de Estado americano. E líderes tribais chegam a trocar crianças e mulheres por armas e vantagens políticas.
O casamento forçado é outro ramo do tráfico de pessoas, que acaba sumindo em comparação com os dois grandes braços – escravidão sexual e trabalho forçado -, mas que tem impacto significativo na China. Lá, a política de filho único levou ao infanticídio de meninas e à consequente falta de noivas. Como o tráfico de pessoas atinge sempre os mais pobres, foi Mianmar que viu suas mulheres levadas à força para se casar com os vizinhos chineses. Somente em 2010, foram registrados 122 casos, segundo a ONU.
Na Tailândia, uma indústria em alta no Ocidente – a da comida tailandesa – esconde o intenso uso de mão de obra traficada, especialmente de homens. Uma pesquisa feita com 430 trabalhadores dessa indústria, que envolve pescado e cultivos de especiarias, 60% responderam já ter passado por experiências de trabalho forçado.
O sistema é medieval: nativos de países da região, especialmente Laos e Camboja, são traficados e levados para alto-mar, onde ficam embarcados por anos a fio, sem qualquer pagamento, forçados a trabalhar na pesca de 18 a 20 horas por dia, sete dias por semana, tendo de lidar com todo tipo de ameaças físicas e psicológicas. Segundo o governo americano, vários daqueles trabalhadores testemunharam capitães matando colegas por estarem doentes ou muito fracos para trabalhar. O cemitério é o mar do Oceano Índico.
Um dos principais desafios para coibir o tráfico de pessoas é como autoridades locais identificam a vítima. As leis locais podem facilmente ver a pessoa traficada não como vítima, mas como imigrante ilegal ou criminoso que merece punição. Assim, uma mulher que é submetida à prostituição, a criança que é usada para coletar esmolas e o trabalhador em condição análoga à escravidão ainda correm o risco de ser presos e deportados. Traficantes de pessoas exploram exatamente esse medo para que as vítimas não busquem ajuda. O medo de se tornar mais uma Ludmila.