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Quer demarcar fronteiras para a liberdade de expressão? Cuidado.

Mudanças nos limites para o que pode e o que não pode ser dito são algo inevitável, e benéfico. Mas é preciso parcimônia: sem o choque aberto de ideias sacrificaríamos a coragem intelectual da espécie humana.

Por Lygia Maria
20 Maio 2022, 09h45

No final dos anos 1980, o editor da revista Hustler, Larry Flynt, foi acusado de difamação por publicar uma propaganda de bebida alcoólica em que o famoso pastor evangélico Jerry Falwell diz que fez sexo com a própria mãe quando estava bêbado.

Tudo mentira, óbvio. Tão óbvio que o próprio pastor disse, no julgamento, que dada sua moral ilibada, ninguém acreditaria nessa história. O júri inocentou Flynt de difamação. Ou seja, para um discurso ser considerado difamatório, nos EUA, é preciso que seja passível de ser considerado verdadeiro. Mas condenou-o por “causar desconforto emocional”.

Flynt apelou à Suprema Corte. Os juízes, então, decidiram que o princípio da liberdade de expressão, garantido pela Primeira Emenda, não protege figuras públicas de sofrerem ataques discursivos que provoquem estresse emocional, mesmo que os ataques se baseiem em informações falsas: “O ‘espaço para respirar’ que a liberdade de expressão requer para florescer deve tolerar declarações falsas ocasionais, para que não haja um efeito inibidor intolerável no discurso que tem valor constitucional”.

Em suma: a decisão favorável a Flynt não diz que o conteúdo da paródia tem valor, mas que a liberdade para publicá-la sim.

Se lembrarmos da recente decisão do STF aqui no Brasil contra o deputado Daniel Silveira, que atacou ministros do Supremo e a entidade impessoal da Democracia – segundo decisão da corte –, notamos diferenças sobre os limites da liberdade de expressão.

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Isso se deve ao fato de que os EUA são o país que segue mais à risca o modelo de liberdade de expressão do filósofo britânico John Stuart Mill. Isso não quer dizer que a visão americana sobre o tema seja a melhor, nem que a de Mill seja superior à de outros pensadores. Mas essa diferença nos alerta para o fato de que não há uma visão unívoca sobre a liberdade de expressão e, principalmente, de que criticar decisões como a do caso de Daniel Silveira não é um descalabro ético. Ou seja, não devemos tratar a liberdade de expressão como um tabu.

Mas, afinal, qual é a visão de Mill sobre a liberdade de expressão? De forma bastante sintética: tudo pode ser dito, contanto que o dito não faça mal (to do harm) a alguém. É o famoso “princípio do dano” (harm’s principle) de Mill. Parece bastante amplo, não? A paródia da Hustler não passaria pelo princípio, já que o pastor afirmou que o anúncio lhe causou um dano: estresse emocional.

Porém estresse emocional ou incômodo não são suficientes para Mill. A ideia do “dano” é a de que o discurso invada diretamente os direitos de outra pessoa. Regimes democráticos nos garantem muitos direitos, mas não o de vivermos sem nos sentirmos ofendidos; no caso de pessoas públicas e governantes, menos ainda.

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Segundo Mill, no ensaio Sobre a Liberdade, “deve haver liberdade total para professar e discutir qualquer doutrina, por mais imoral que ela seja”. Por quê? Porque é a partir do choque de ideias díspares que podemos nos aproximar da verdade sobre os objetos e temas que nos são caros. Caso contrário, ideias viram meras crenças. Sem o debate livre de ideias, e o desconforto causado por muitas delas, teríamos uma falsa pacificação que sacrificaria a coragem moral e intelectual da espécie humana.

Porém mesmo Mill faz ressalvas. A mais famosa é a seguinte: é aceitável publicar em um jornal que comerciantes de milho são responsáveis pela fome dos mais pobres, mas não é aceitável que se diga isso diante de uma turba raivosa na frente da casa de um comerciante de milho. Logo, contexto é fundamental: onde se fala, quando, quem fala e para quem.

Em resposta a Mill, afirma-se com razão que, atualmente, temos mais conhecimento científico sobre os efeitos psicológicos adversos causados por ofensas, principalmente nos mais jovens. Além disso, com a internet, redes sociais e smartphones, temos muito mais canais de interação social e de publicação de discursos. Ou seja, as noções de tempo e espaço, de público e privado, transformaram-se radicalmente. Podemos ser agredidos verbalmente por um desconhecido no aconchego do nosso lar agora por algo que postamos dez anos atrás e ainda perder o emprego por isso.

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A liberdade de expressão só se torna um tema polêmico em sociedades que garantem liberdade de expressão, porque só aí se passa a considerar os limites que devem ou não ser impostos e por qual agente. Com a recente compra do Twitter pelo empresário Elon Musk, viu-se uma preocupação com as consequências dessa transação. Muitos disseram que sairiam do Twitter, que a visão radical sobre liberdade de expressão de Elon Musk tornaria a rede social um ambiente tóxico, cheio de ofensas e fake news.

Não deixa de ser curioso, até engraçado, que estejamos em pânico com um possível excesso de liberdade. Apesar do que pode vir por aí, creio que uma sociedade que se preocupa com muita liberdade de expressão é bem melhor do que uma que ainda luta para obtê-la – como a chinesa, a russa ou a iraniana.

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Quando já conquistamos o principal, tendemos a nos focar em filigranas de forma até paranoica. Um exemplo é a obsessão por palavras e expressões consideradas ofensivas a priori, sem contexto, como “criado mudo”, “feito nas coxas” etc. Inventaram etimologias racistas para esses termos e exigem que eles sejam eliminados do léxico, acusando de racismo quem os usa. Além disso, muitos dos que apoiam esse acinte à liberdade de expressão estão preocupados com o que Elon Musk pode vir a fazer no Twitter – justamente a plataforma usada para divulgar essas etimologias falsas.

Transformações sociais e tecnológicas devem ser consideradas e muitos países estão buscando atualizar suas legislações. Entre a liberdade total e a proibição geral – que não são defendidas em nenhuma democracia –, há uma gama de gradações. Precisamos desmoralizar o debate, no sentido de não tachar de fascista quem é a favor de limitações nem de racista/machista/homofóbico quem é contra.

Mudanças são benéficas e necessárias. Até conservadores como Edmund Burke concordam: “Um Estado sem meios de mudança não dispõe de meios para conservar-se”. Espécie de mudança na continuidade. No caso, seria interessante conservar algo da visão libertária de Mill sobre este aspecto vital do Homo sapiens: sua capacidade quase inesgotável de imaginar e de compartilhar sua imaginação.

Lygia Maria é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.

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