Sem imprensa livre não há fatos, só propaganda
Autoridades de direita e de esquerda têm um incômodo ponto em comum: não lidam bem com o conceito de liberdade de imprensa. E sempre que podem usam de seu poder para acuar jornalistas. Isso não cabe numa democracia.
“Porra, rapaz, pergunta pra sua mãe.” Respostas assim se tornaram recorrentes em frente ao Palácio da Alvorada. Também foi diante da residência oficial do presidente da República que o atual morador insultou Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, repórter que denunciou o uso de mensagens ilegais durante a campanha presidencial: “Ela queria dar o furo”, disse em tom jocoso. “Furo” é quando uma informação relevante é apresentada por um veículo de comunicação antes de seus concorrentes. No jargão dos tios do pavê, a gente sabe que é outra coisa.
Desde a redemocratização, Bolsonaro é o chefe do Executivo que mais se sente incomodado com a imprensa livre. E a falta de educação é só a faceta folclórica desse ódio. O presidente criou um cercadinho à frente do Palácio para constranger jornalistas que fazem sua cobertura, colocando-os lado a lado com seus seguidores mais raivosos.
Nesse contexto de perene conflito, Bolsonaro elegeu o Grupo Globo como o subversivo supremo. “Vocês, da TV Globo, o tempo todo infernizam minha vida, porra.” O presidente já ameaçou não renovar a concessão pública da emissora, que vence em 2023, mas cuja continuidade pode ser decidida até abril de 2022, ainda no seu mandato atual.
Nessa fúria contra a TV dos Marinho, o capitão encontra a empatia de um antecessor: Lula. Em janeiro deste ano, o petista comparou o jornalismo da Globo ao nazismo. E chegou a defender Bolsonaro quando o assunto foi a relação com a imprensa. “Acho que tem crítica que ele faz que é correta. Na greve dos jornalistas de 1979, os donos de jornais descobriram que não precisavam tanto de jornalistas, que poderiam fazer jornalismo sem precisar do jornalista. O Bolsonaro está provando que é possível fazer notícia sem precisar dos jornais, da televisão.”
Lula também vê com bons olhos um mundo sem os aborrecimentos que o jornalismo traz ao exercício do poder. Ainda no seu primeiro mandato, em 2004, encaminhou ao Congresso um projeto de lei para criar um Conselho Federal de Jornalismo. Esse órgão teria a função de “orientar, disciplinar e fiscalizar” a imprensa, com o poder de punir jornalistas. O projeto, que acabaria barrado pelo Congresso, tinha um precedente mais pesado nas “17 recomendações à imprensa” que a Polícia Federal distribuiu em 1969, na vigência do AI-5.
A “recomendação” número 7 dos militares era o nirvana sonhado por qualquer governante: “Não publicar nenhuma notícia que provoque tensões entre as autoridades”. Naquele mesmo 2004, o jornalista americano Larry Rohter provocou tensões assim, e por isso, mesmo sem ditadura, chegou a ter seu visto revogado. O motivo foi uma reportagem para o New York Times, em que ele comentava os supostos riscos ao país por causa dos hábitos etílicos de Lula.
A tradição de beligerância contra a imprensa não é só nossa, claro. Além da repressão à informação em regimes totalitários, como o da China ou o da Arábia Saudita, a relação também tem fases de estresse agudo nos EUA, onde a liberdade de imprensa sempre foi um dos pilares da democracia. E isso não começou com os tweets de Donald Trump.
De George Washington a Trump
“Não estou inclinado a continuar sendo esbofeteado nos jornais por um bando de escribas infames.” A afirmação é do fim do século 18, quando o primeiro presidente americano, George Washington, desistiu de se candidatar a um terceiro mandato. Apesar da chateação, Washington foi um herói da democracia: durante seu governo, os EUA lançaram a Primeira Emenda à Constituição, que estabeleceu a liberdade de imprensa no país. Direito pétreo que alguns de seus sucessores tentaram cercear.
Especialmente Richard Nixon, nos anos 1970, que seria levado à renúncia pela graça do jornalismo investigativo. Antes que o escândalo de Watergate viesse à tona, em reportagens do Washington Post, Nixon abusou do seu poder para grampear jornalistas e pressionar empresas de comunicação. Sua aversão ao jornalismo profissional só encontraria um par à altura na Casa Branca mais de quatro décadas depois.
Trump é a grande referência de Bolsonaro no trato com a imprensa. Tuiteiro compulsivo, busca ridicularizar repórteres acusando suas matérias de FAKE NEWS (assim mesmo, em letras garrafais). Mas a ofensiva do presidente americano não fica só na retórica. Após atacar repetidamente a cobertura política da CNN, seu governo se opôs a uma fusão da empresa que controla a emissora, a Time Warner, com a AT&T – numa clara retaliação pessoal.
O caso foi para a Justiça, que acabaria aprovando o acordo em 2018, ao constatar que o governo não tinha evidências que justificassem um freio antitruste. Em outro momento, após uma série de hostilidades contra o Washington Post, Trump ordenou que o Serviço Postal americano revisse as taxas aplicadas à Amazon – Jeff Bezos, o dono da empresa, também é proprietário do Post.
Liberdade de imprensa não é um salvo-conduto para a difamação. Cercear essa liberdade, porém, é matar a vaca para eliminar o carrapato. A Lei tipifica calúnia e difamação como crime. Quem se sente ofendido tem todo o direito de buscar uma desforra na Justiça.
O que não cabe numa democracia é a tentativa de censura prévia – seja às grandes empresas de comunicação, seja a blogueiros independentes, seja a qualquer cidadão que deseje se expressar publicamente sem ferir a Lei.
O STF, por exemplo, fez bem ao ter aberto o inquérito das fake news. Estão apurando a existência de uma rede bolsonarista de notícias falsas que prega o terrorismo contra o Judiciário e o Legislativo, algo que requer investigação. Mas o Supremo precisará de bom senso para não transformar o inquérito num precedente de censura a qualquer um que critique instituições da República.
Porque uma imprensa livre é o raio X que permite ver governos por dentro. E essa transparência é ambiente desconfortável para a corrupção, o golpismo e as ineficiências de qualquer governante. As instituições são obrigadas a responder pelos seus atos. Cabe, assim, aos eleitores julgar seus representantes com base em fatos. E sem imprensa não há fatos. Há apenas o mundo permanentemente cor-de-rosa da propaganda oficial.