Biologia do mal
Vírus e bactérias usados como instrumentos de guerra não são nenhuma novidade. Mas os avanços da engenharia genética podem tornar as armas biológicas cada vez mais perigosas - e mais acessíveis aos terroristas.
Maria Fernanda Vomero
O ano é 1995. Membros da seita japonesa Verdade Suprema espalham gás sarin, substância química que ataca o sistema nervoso, no metrô de Tóquio. Treze passageiros morrem e mais de 5 000 pessoas são hospitalizadas. Apesar da opção pelo gás, a idéia original era empregar armas biológicas – ou seja, usar agentes infecciosos para provocar o surto de uma doença. A seita empreendeu nove tentativas malsucedidas em um período de cinco anos. Integrantes pulverizaram ruas da capital japonesa com bactérias e toxinas, mas usaram cepas fracas dos microorganismos e técnicas erradas de disseminação. Alguns deles chegaram a viajar ao Zaire a fim de buscar amostras do vírus ebola e, com ele, desenvolver uma arma biológica.
Voltemos agora ao início da década de 30, durante a ocupação japonesa da Manchúria, região no nordeste da China. Ali, uma unidade militar instalada na província de Pig Fan desenvolveu e testou exaustivamente armamentos biológicos, matando milhares de prisioneiros de guerra com carbúnculo, cólera e peste bubônica, entre outros agentes. Essa foi a mais famosa ofensiva do gênero. Mas o exército japonês não parou por aí. Cidades também sofreram ataques de aviões, que despejavam culturas de microorganismos sobre bairros residenciais, reservatórios de água e depósitos de alimentos. Milhões de pulgas infectadas foram espalhadas para desencadear epidemias de peste. A interrupção dos testes só ocorreu no fim da Segunda Guerra Mundial. “Foi esse programa do Japão, bem sofisticado para os padrões da época, que introduziu as armas biológicas no âmbito militar”, diz o médico Roque Monteleone Neto, do Departamento de Assuntos Nucleares e Bens Sensíveis, do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Depois disso, a tenebrosa destruição causada pelas bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki abafou o debate sobre os limites para as pesquisas com armas biológicas. Na época, já vigorava um tratado assinado em 1925, na Suíça, que proibia o uso, pelos exércitos, de gás asfixiante e de métodos bacteriológicos de combate. Mas nem o Japão nem os Estados Unidos haviam assinado tal acordo.
Durante a Guerra Fria, o aperfeiçoamento dos meios bélicos de dispersão de agentes infecciosos – e dos próprios microorganismos – continuou a ser feito na surdina. Em 1972, passou a valer outro tratado, em vigência até hoje, banindo todos os passos necessários para desenvolver uma arma biológica: produção, estocagem, posse, transferência de agentes infecciosos e meios de propagação que denotem fins hostis. Ele foi ratificado por 144 países, após a Convenção das Armas Biológicas (BWC, na sigla em inglês). “Apesar dessas proibições, não há mecanismos para fiscalizar o cumprimento do tratado”, diz Roque Monteleone. Alguma nação pode violar o compromisso sem que o resto do mundo saiba, como de fato já aconteceu.
Por isso mesmo, neste mês de agosto, representantes de países signatários da BWC – o Brasil, entre eles – voltam a se reunir na Suíça para definir procedimentos que façam valer as regras do tratado de 1972. Novembro deste ano é o prazo final para estabelecer um protocolo de verificação que obrigue os países a declarar se realizam ou não pesquisas com agentes infecciosos – e, em caso afirmativo, revelar que microorganismos são esses e quais as instalações onde tais pesquisas são feitas. O protocolo prevê também que uma comissão, ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), visite laboratórios e cheque as declarações. O assunto está em pauta desde 1995, quando se formou o chamado Grupo Ad Hoc – que reúne 50 dos 144 países signatários do acordo. O motivo? Os programas ofensivos do Iraque na área biológica.
“Foi durante a Guerra do Golfo, em 1991, que descobrimos o programa de armamento biológico no Iraque”, afirma Roque, que trabalhou como perito da comissão das Nações Unidas, designada para inspecionar os projetos bélicos iraquianos. “Em 1995, o governo de Saddam Hussein admitiu a existência desses planos.” Os cientistas iraquianos chegaram a produzir 8 000 litros só de carbúnculo, ou antraz, a bactéria mais usada na produção de armas biológicas.
O carbúnculo foi também o causador de uma epidemia na cidade de Sverdlovsk (hoje Yekaterinburg), na antiga União Soviética, em 1979. Mais de 100 pessoas morreram repentinamente. As autoridades atribuíram o fato à ingestão de carne contaminada. Mas, em 1992, o presidente russo Boris Ieltsin reconheceu que as mortes haviam sido causadas pela dispersão involuntária do carbúnculo nas redondezas de uma instalação militar voltada ao aperfeiçoamento de armas com agentes patogênicos. Tanto os soviéticos quanto o Iraque tinham assinado o tratado de proibição de armamento biológico – daí, o esforço do Grupo Ad Hoc em definir o mais rápido possível um protocolo de verificação.
“As armas biológicas são uma das mais sérias ameaças à paz no século XXI”, afirma o biofísico americano Steven Block, da Universidade Stanford, na Califórnia. “Felizmente, foram pouco utilizadas até hoje. Mas os testes realizados mostram que, se fossem efetivamente adotadas, funcionariam como armas de destruição em massa”, diz o inglês Malcolm Dando, do Departamento de Estudos da Paz da Universidade de Bradford. Estimativas feitas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), na década de 70, equiparam o efeito de 1 tonelada de carbúnculo ao de três bombas atômicas. O cenário seria diferente, mas não menos aterrorizante, começando por hospitais lotados e poucas vacinas disponíveis para os milhares de pacientes atingidos. Levaria dias para o agente infeccioso ser identificado. Plantas e animais também seriam contaminados, mas o bombardeio biológico deixaria intactas construções e vias. A cidade não sumiria do mapa, como após um ataque nuclear. Sofreria um ataque invisível, sem cor nem cheiro.
Não há informações precisas sobre quais nações teriam programas biológicos em andamento. Dados como esses são obtidos por agências de inteligência e mantidos em sigilo. “Rússia e Iraque admitiram publicamente que sim. Há uma certeza razoável de que Irã, Coréia do Norte e Líbia também tenham programas do tipo. Outras listas incluem China, Taiwan, Síria, Israel, Índia e Paquistão, mas esses casos não passam de suposição”, diz o americano Donald Henderson, do Centro de Estudos para Biodefesa Civil da Universidade Johns Hopkins, em Nova York.
Teoricamente, qualquer organismo que provoque alguma doença no homem ou que traga danos à agricultura ou à pecuária pode se tornar agente de uma arma biológica – seja ele vírus, bactéria, toxina ou fungo. Mas, na prática, não são muitos os que causam enfermidade ou morte e que podem ser manipulados e dispersos de maneira eficaz. “Há uma série de critérios para incluir um microorganismo na categoria de agente: ser altamente contagioso, funcionar como ameaça para a produção econômica ou ter grande capacidade de disseminação”, diz a médica Marília Beatriz Marques, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Em geral, a transmissão do agente se dá pelo ar e, por isso, o meio mais utilizado para lançar o micróbio é o aerossol. No caso das doenças que precisam de um animal transmissor (a peste bubônica, por exemplo), a dispersão é feita criando primeiro uma superpopulação de um inseto – como as pulgas usadas no ataque japonês à Manchúria – ou outro bicho.
Governantes e cientistas debatem atualmente o futuro de um dos agentes infecciosos mais potentes: o vírus da varíola, doença oficialmente erradicada no mundo todo em 1980. Restaram apenas alguns estoques do vírus em laboratórios nos Estados Unidos e na Rússia. Um comitê da OMS recomendou a destruição dos últimos exemplares do agente e os países votaram unanimemente pelo fim dos estoques em 2002 – o que significará também o fim da espécie. Pela primeira vez, um ser vivo será deliberadamente extinto.
A decisão tem causado polêmica. Especula-se que alguns dos estoques russos foram parar na mão de terroristas. “Se, porventura, o vírus da varíola emergir de algum lugar ou for usado como arma, teremos como nos defender, mesmo que já não tenhamos a espécie estocada em laboratório: uma vacina produzida a partir de um ‘primo’ da varíola”, diz Donald Henderson, que coordenou o programa de erradicação da doença na OMS. Há discordâncias. “Sou contra a destruição dos estoques”, afirma Roque Monteleone. “Quem garante que esse vírus não será importante no futuro?”
A história registra o uso rudimentar da varíola como arma biológica já no século XVIII. Durante a ocupação da América do Norte, tropas inglesas presentearam os índios com roupas contaminadas com o vírus. “A literatura registra intenções de uso de armas biológicas desde as guerras mais antigas, entre persas, gregos, romanos e mongóis – utilizando, por exemplo, o agente da peste bubônica”, diz Marília. No século XIV, os tártaros tentavam conquistar a cidade de Kaffa (atualmente Feodossia, na Ucrânia), mas sofreram uma epidemia de peste. Converteram seu infortúnio em arma: catapultavam os cadáveres para dentro dos muros da cidade. As forças de defesa caíram, vitimadas pela moléstia que, de lá, se espalhou por toda a Europa: a célebre Peste Negra, que matou um terço da população do continente naquela época.
Mas se o uso de armas biológicas é tão antigo, o que explica a atual onda de preocupação com essa questão? “O motivo são os sensacionais avanços da engenharia genética, que tornam cada vez mais fácil a produção de novas armas biológicas e complicam a imunização contra elas”, diz a americana Patricia Lewis, diretora da Unidade de Desarmamento da ONU. Já se conhecem seqüências completas do genoma de pelo menos mais de 30 microorganismos. Na teoria, nada impede que um supervírus seja produzido em laboratório, formado por pedaços de DNA de outros. Ou que microorganismos normalmente inofensivos sejam manipulados para adquirir elevado potencial tóxico ou infeccioso. O progresso da biotecnologia também torna essas técnicas mais acessíveis a terroristas. Fabricar armas biológicas envolve menos recursos e uma infra-estrutura bem mais simples do que armas químicas e nucleares. Microorganismos
crescem com facilidade e uma quantidade pequena deles já serve para fazer um baita estrago. “A produção dessas armas aproveita equipamentos e materiais normalmente utilizados para fins pacíficos, como o desenvolvimento de vacinas, o que dificulta muito a identificação de programas de armamento biológico”, diz Henderson. A ameaça é real. Como se proteger?
“A engenharia genética cria novas possibilidades de ataque”, diz Malcolm Dando, “mas os mesmos avanços podem servir para aperfeiçoar tratamentos de saúde.” Na opinião dos especialistas, a primeira estratégia de defesa é combater o uso da biotecnologia em favor do mal. Além disso, esse conhecimento tem de ser investido no desenvolvimento de biossensores, capazes de identificar rapidamente agentes infecciosos no ar, na terra, ou em alimentos. Outra medida é um controle rígido das pesquisas com agentes biológicos. “Também teremos de estar preparados para detectar e diagnosticar rapidamente uma possível epidemia e evitar que se espalhe”, diz Henderson. Isso significa mais estoques de vacinas e políticas eficientes de saúde pública.
E o Brasil nessa história toda? Segundo Roque Monteleone, até hoje nenhum país da América Latina desenvolveu programas do gênero. “Para nós, esse é um assunto distante: tanto em relação ao uso das armas biológicas, que não temos, quanto à ameaça de ataque”, diz. “Mas o Brasil possui um grande atrativo: a biodiversidade.” Seria uma grande vantagem para os interessados descobrir novos microorganismos infecciosos, para os quais ainda não existe vacina e cujos sintomas ainda são desconhecidos. Aí está, portanto, mais um motivo para o Brasil proteger sua biodiversidade: para que não seja usada por terceiros com objetivos belicosos.
Para saber mais
Na internet:
https://www.brad.ac.uk/acad/sbtwc/btwc
https://www.fas.org/bwc/agr/main.htm
Cultivados para arrasar
Estes são os microorganismos favoritos de quem quer espalhar morte e doença
Varíola (vírus)
Doença transmitida pelo ar, altamente contagiosa. Provoca calafrios, febre alta e dores nas costas, seguidas de erupções na pele. Se tratada a tempo, a morte pode ser evitada.
Ebola (vírus)
Contagioso pelo ar, pelo contato com animais e sangue, sêmen ou saliva infectados. Dissolve os órgãos internos. Após uma semana de febre e fadiga, muitos pacientes entram em estado de choque e morrem. Não tem cura.
Peste bubônica / Yersinia Pestis (bactéria)
Transmitida do rato para o homem, tendo a pulga como intermediária. Provoca inflamação e ruptura de gânglios linfáticos. Progride rapidamente levando à insuficiência respiratória e, em seguida, à morte.
Carbúnculo ou antraz / Bacillus anthracis (bactéria)
O preferido para a guerra biológica. Contamina pela ingestão, inalação ou contato com os esporos. As formas gastrointestinal e pulmonar são as mais graves, provocando a morte em poucos dias.
Brucelose / Brucella sp (bactéria)
Os primeiros hospedeiros são os animais. É transmitida ao homem pela ingestão de laticínios contaminados. Os sintomas podem se prolongar por meses: febre intermitente, dores nas articulações e sudorese noturna. Recaídas são freqüentes.
Febre tifóide / Salmonella typhi (bactéria)
O contágio ocorre por ingestão de água ou de alimentos contaminados pelo bacilo. As complicações causadas são hemorragia intestinal, inflamação da vesícula biliar, colapso circulatório, pneumonia e meningite. Fatal, se não for tratada.
Botulismo / Clostridium botulinum (toxina)
O contágio se dá por alimentos – enlatados, em geral – por meio de uma toxina liberada pela bactéria. A doença é causada pela presença dessa toxina no alimento e não pela bactéria, que não sobrevive dentro do corpo. Taxa de mortalidade: cerca de 65%