Como a decadência do Facebook explica a internet
Para Cory Doctorow, um analista do mundo tech, toda plataforma online passa por um ciclo de vida com três fases – que sempre termina mal para usuários, anunciantes e produtores de conteúdo. E a maior rede social do mundo é um exemplo cabal dessa fórmula.
Eu ainda frequento as ruínas do Facebook. Não por nostalgia, mas por economia: o Marketplace – aquele brechó virtual sem taxas lançado no Brasil em 2018 – é ótimo para pechinchar instrumentos musicais. Esse mercado de pulgas online é a única pedra no caminho entre meu dedo e o botão de apagar o perfil, e um atestado da decadência de uma plataforma que já foi o hub da internet.
Hoje, o Facebook é um mexidão desagradável de vídeos clickbait, notícias perniciosas, publicidade personalizada, conteúdo que pagou para aparecer e clones de outros serviços: além do próprio Marketplace, que é uma versão menos inóspita do Craigslist, há um Tinder piorado e os stories – uma adaptação do recurso que o Instagram copiou do Snapchat. Há poucos parentes ou amigos à vista; quanto mais jovem o público, pior a situação.
Essa paisagem desolada é irreconhecível. Nos idos de 2012, eu e meus amigos usávamos a rede de Zuckerberg para organizar rolês, trabalhos e ensaios de banda, ver fotos novas e antigas, compartilhar memes e textões. O Facebook era um lugar para estreitar laços, e, não por coincidência, todos convergiram para lá. Apagar seu perfil, uma década atrás, era equivalente a viver sem Whats hoje, ou sem telefone em 1980.
Como a praça pública dos anos 2010 morreu? O Facebook passou por um processo de decadência em três estágios que o crítico tech Cory Doctorow batizou de enshitification – “esmerdeamento”. Ele o resume assim: “Primeiro, as plataformas são boas com seus usuários; depois, elas abusam dos usuários para tornar as coisas melhores para seus parceiros de negócios; por fim, elas abusam desses parceiros para reaver todo o valor para si mesmas. Então, elas morrem”.
O neologismo não pegou por aqui, mas bombou na mídia gringa e foi considerado a palavra do ano de 2023 pela Sociedade Americana de Dialetos. Essa doença não acomete só a rede de Zuckerberg. De acordo com Doctorow, outros serviços online, como Uber e TikTok, parecem trilhar caminhos parecidos. Ele apresenta alguns casos, estágio por estágio.
1ª fase: além do Facebook, um caso clássico de plataforma que era boa para os usuários a qualquer custo é o da Uber, que operou no prejuízo por toda sua existência – o primeiro ano de lucro foi 2023 –, para oferecer preços baixíssimos e eliminar a concorrência com os taxistas. A Amazon também cobrava preços e fretes impossíveis, subsidiados por investidores esperançosos, para tirar da frente livrarias e outras lojas físicas.
O importante, nos dois casos, era amarrar uma fatia da população ao serviço. Se todos os motoristas da cidade estão na Uber, todos os lojistas anunciam na Amazon e todos os seus amigos postam fotos no Facebook, fica difícil abandoná-los, ainda que essas plataformas se deteriorem com o passar do tempo.
É uma síndrome de Estocolmo um pouco diferente, em que os reféns até podem sair – mas como são incapazes de concordar sobre quem será o próximo sequestrador, acabam permanecendo onde estão.
2ª fase: uma vez que o consumidor final esteja captado e fidelizado, é hora passar a mão na cabeça de fornecedores e outros atores do ecossistema – como a Amazon fez quando ofereceu condições excelentes para que lojistas menores anunciassem dentro de seu site em vez de abrirem um e-commerce próprio.
No caso do Facebook, os tais “outros atores” são a imprensa tradicional, os produtores de conteúdo e claro, a publicidade. Para agradá-los, Zuckerberg aumentou brutalmente a distribuição de notícias e de vídeos publicados no próprio Face por volta de 2014.
Nessa época, o grosso da audiência online dos jornais e revistas passou a vir daí. A indústria da mídia se tornou dependente das timelines. Enquanto isso, a publicidade abraçou o azulzinho não só como um site lotado de gente para ver propaganda, mas também como um vendedor de dados imprescindível para direcionar esses anúncios com precisão.
3ª fase: agora que fornecedores e afins estão domesticados e enfraquecidos, chega o momento de deixá-los para trás. A partir de 2018, o Facebook mudou de política e quase parou de exibir aos usuários os posts de veículos de imprensa que punham links para seus sites: esperava-se que todo o conteúdo produzido por jornalistas estivesse disponível gratuitamente no próprio Face. Esse boicote à distribuição foi o motivo pelo qual a Folha, maior jornal do Brasil, deixou a rede na época.
Enquanto isso, os usuários dão sorte quando encontram parentes e amigos em um feed infestado de publicidade direcionada e conteúdo impulsionado. Os publicitários, por sua vez, pagam cada vez mais caro para obter e usar os nossos dados. A situação só melhora mesmo para os acionistas da Meta: os papéis sobem e os dividendos pingam apesar de devaneios como o Metaverso. Países recém-chegados ao Facebook, como a Índia, inflam o número de usuários e mascaram a debandada de perfis antigos.
Uma degradação similar no IDH online começa a acometer, por exemplo, o TikTok, que quebrou o contrato com a gravadora Universal e silenciou milhões de vídeos com músicas de artistas da casa, como Taylor Swift, The Weeknd, Jão e Anitta. Ruim para quem publica coreografias, ruim para quem fornece a música para dançar, ótimo para a plataforma.
Enquanto isso, a Amazon passou anos convencendo lojistas menores de que era uma boa ideia anunciar produtos dentro da plataforma – algo que Americanas e Magalu também fizeram no Brasil –, mas chegou em 2023 cobrando em média 15% (às vezes, até 45%) do valor dos produtos anunciados em taxas, além de obrigar peixes pequenos a desembolsarem uma grana por espaço nos resultados de busca.
Ainda não existem estratégias bem definidas para combater a deterioração dos serviços prestados por esses oligopólios digitais, nem para lidar com o desolamento que eles legam.
A Amazon gerou um dano irreversível ao comércio local de muitos países, a Uber abriu um precedente cruel no campo dos direitos trabalhistas – hoje, soa aceitável que eles não existam – e o Facebook foi um dos motores da transformação da internet em um punhado de sites que parecem latifúndios murados. Um final lúgubre para o ambiente horizontalizado e democrático que gerou obras coletivas como a Wikipedia e o sistema operacional Linux.
Tudo isso é um problema novo. E o fato de que o estamos discutindo nas próprias redes sociais é um sintoma do quanto é difícil suplantá-las. Um tweet resume a situação: “Eu sou velho o suficiente para me lembrar de quando a internet não era um grupo de cinco sites, cada um consistindo em prints dos outros quatro.” Detalhe: eu vi esse tweet em um print, rodando no Instagram.