Feitos de carne e silício
Chips implantados no corpo e computadores feitos de neurônios prometem redefinir o limite entre o orgânico e o cibernético
Rafael Kenski
Aos 53 anos, tudo que o americano John Ray conseguia fazer era balançar levemente a cabeça e os olhos. Um derrame sofrido dois anos antes havia tirado quase todos os seus movimentos e, apesar de ele continuar perfeitamente lúcido, não conseguia falar ou escrever nenhuma palavra. Foi assim até abril de 1998, quando surgiram os primeiros sinais de mudança. Algumas letras começaram a aparecer na tela de um computador colocada sobre o seu leito. Um “P”, depois um “H”; lentamente, apareceu a palavra “Phil” no monitor. Era uma homenagem ao neurologista Philip Kennedy, da Emory University, em Atlanta, Estados Unidos, o homem que desenvolvera o sistema que permitia a Ray movimentar um cursor de computador apenas com a força do pensamento.
A pesquisa de Philip consistiu em implantar eletrodos do tamanho de uma ponta de caneta no córtex cerebral de Ray, mais especificamente na parte responsável pelo controle dos movimentos do corpo. Quando Ray pensa em mover a mão, a atividade elétrica ao redor do eletrodo aumenta e é captada pelo aparelho, que envia a informação para um computador. Depois de processados, esses sinais se traduzem no movimento do cursor, que pode ser controlado pelo paciente para acionar ícones ou formar frases – lidas a seguir por uma voz sintética. “Pessoas que estariam imóveis podem agora falar e até navegar na internet”, diz o neurologista.
Assim como Philip, diversos pesquisadores ao redor do mundo buscam aliar máquinas a sistemas orgânicos. Médicos, biólogos e engenheiros se juntam na tarefa de entender e reproduzir em mecanismos artificiais as propriedades dos seres vivos. Um híbrido de homem e máquina pode ser assustador para muitas pessoas, mas para esses cientistas é apenas um desafio. “Perguntar se os computadores um dia serão mais inteligentes do que os seres humanos depende do que você acha que é um computador e o que você considera um ser humano”, afirma Ray Kurzweil, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, e um dos principais inventores americanos segundo a revista Time. “Na segunda metade do século XXI, não existirá uma distinção muito clara entre os dois.”
A julgar pela tecnologia atual, ainda está longe o tempo em que construiremos um Robocop ou um computador tão sentimental quanto o HAL de 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Mas pesquisas recentes mostram que a fusão entre células e metais, neurônios e transistores, matéria orgânica e sintética pode não estar tão longe assim.
Uma impressionante demonstração dessa união aconteceu em agosto desse ano, quando o neurobiólogo brasileiro Miguel Nicolelis, que trabalha na Duke University, na Carolina do Norte, Estados Unidos, conseguiu ligar o cérebro de um macaco a um braço artificial. Ele introduziu diversos eletrodos na cabeça do animal e coletou, durante dois anos, os sinais cerebrais emitidos durante o movimento dos braços. Essas informações foram enviadas a um computador e deram origem a fórmulas matemáticas que “traduziam” os movimentos em linguagem binária. Dessa forma, foi possível “entender” os deslocamentos do braço do animal e enviar as informações para um robô, que repete esses movimentos em tempo real. Os mesmos sinais foram enviados, via internet, para um laboratório localizado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, a quase 1 000 quilômetros de distância, onde controlaram outro braço mecânico. “A pesquisa mostrou que conseguimos extrair informações do cérebro e as transformamos em movimentos simples, mesmo que ainda não saibamos como o sistema nervoso opera para chegar a esses resultados”, diz Miguel.
O próximo passo será desenvolver próteses capazes de enviar informações diretamente para o cérebro, para que tetraplégicos recuperem o sentido do tato. Além disso, Miguel prevê que, no futuro, robôs enviados a Marte poderão ser controlados diretamente pelo pensamento de pesquisadores na Terra, que terão as mesmas sensações de quem caminhasse no solo do planeta vermelho. “Para isso, precisamos entender melhor como o cérebro transmite informação e sermos capazes de reproduzir movimentos mais elaborados, como os dos dedos da mão”, diz Miguel.
Apesar de ainda estarmos longe de uma era de seres mistos, frutos da fusão entre o orgânico e o cibernético, as aplicações desse tipo de tecnologia já podem ser vistas hoje. Além de fazer paralíticos se moverem, a substituição de tecidos humanos por aparelhos artificiais tem conseguido operar o milagre de fazer os cegos enxergarem. The Dobelle Institute, uma companhia de Nova York, criou um sistema que permite a pessoas sem qualquer visão observarem letras com 5 centímetros de altura a 1,5 metro de distância. O aparelho é formado por uma câmera digital e um detector de distância instalados em óculos especiais, que mandam as informações para um computador preso na cintura. Ali, os sinais são convertidos em impulsos elétricos e enviados para o cérebro, onde formam a imagem.
A solução, no entanto, não é definitiva: é que, não bastasse a baixa resolução da imagem, a área de visão do paciente fica restrita a um pequeno túnel de poucos centímetros. Outra solução foi apresentada pela companhia americana Optobionics, que desenvolveu uma “retina artificial”. Trata-se de um chip capaz de converter luz em sinais elétricos. Colocado no fundo do olho, ele envia imagens diretamete para o nervo óptico.
Para desenvolver próteses mais aperfeiçoadas, é preciso antes descobrir a forma como o sistema nervoso opera. A solução encontrada por alguns pesquisadores foi criar sistemas híbridos, metade biológicos e metade artificiais. “Quando conseguimos fazer uma máquina dialogar com o cérebro, é sinal de que demos um passo adiante para compreendê-lo”, afirma Sandro Mussa-Ivaldi, da Northwestern University Medical School, em Chicago, Estados Unidos. Com esse intuito, ele apresentou, em agosto último, um robô de duas rodas, controlado pelo cérebro de uma lampréia.
Sandro selecionou a parte do sistema nervoso do animal responsável pelo equilíbrio e orientação e o ligou ao robô. A máquina, por sua vez, possui uma câmera que envia para os neurônios informações a respeito da intensidade da luz. O resultado foi um aparelho que, de acordo com a luminosidade, se dirige para ambientes mais claros, mais escuros ou simplesmente fica girando em círculos. “O cérebro é, sem dúvida, o computador mais poderoso que existe. Se o compreendermos melhor, poderemos criar sistemas artificiais mais desenvolvidos e, talvez, máquinas que utilizem tecidos biológicos”, afirma Sandro.
Em busca do controle do poder de processamento do cérebro, cientistas estão pesquisando até que ponto os neurônios podem se transformar em chips de computador. Peter Fromherz, do Instituto de Bioquímica Max Planck, em Munique, Alemanha, fez células cerebrais crescerem de maneira organizada em circuitos de silício, o material do qual são feitos os processadores. Ao mesmo tempo, desenvolveu um método para que neurônios consigam trocar eletricidade com circuitos metálicos sem que as células sejam destruídas no processo. Ele espera criar uma rede de milhões de neurônios igual à do cérebro, mas que consiga funcionar em harmonia com alguns elementos inorgânicos, como transistores de computador. “A experiência abre caminho para a construção, no futuro, de computadores feitos de neurônios e para a implantação de chips no nosso cérebro”, afirma Peter.
Pesquisadores de Engenharia Mecânica da Universidade do Sul da Flórida, Estados Unidos, estão concentrados em outra parte do corpo: o estômago. Em julho de 2000, eles trouxeram a público pela primeira vez um robô que, assim como os humanos, funciona à base de comida. Basta dar a ele um torrão de açúcar para vê-lo funcionar por cerca de 15 minutos. “É um exemplo da corrente moderna da robótica que resolve os problemas utilizando as mesmas soluções observadas na natureza”, diz Stuart Wilkinson, o criador do robô. Ele acredita que esses aparelhos estarão entre nós dentro de dez anos.
“Podemos programá-los para se alimentarem de qualquer tipo de matéria orgânica – principalmente as não utilizáveis pelo homem, como capim”, diz Stuart. Por outro lado, nem toda a matéria que eles absorvem pode ser convertida em energia e um dos problemas dessa tecnologia será decidir o que fazer com as fezes de robô. Mesmo assim, as aplicações programadas para essas máquinas vão desde aparelhos que cuidam do jardim, alimentando-se de restos de grama, até máquinas que vivem em encanamentos e devoram folhas que entopem a tubulação. “Sistemas parecidos com esse, mas miniaturizados, estão sendo testados dentro do corpo humano, para monitorar diabetes alimentando-se da glicose presente no sangue”, diz Wilkinson.
Enquanto a ficção vai se transformando em realidade, cientistas já se perguntam se o corpo humano aceitará, enfim, esses elementos como partes de sua estrutura, continuando a exercer suas funções normalmente. “O nosso cérebro está o tempo todo redefinindo a noção que ele tem do corpo, mas será que ele é dinâmico o suficiente para incluir braços mecânicos, câmeras digitais e cursores de computador?” questiona Miguel Nicolelis. Ele próprio responde: “Ainda não sabemos ao certo, mas temos pistas de que a resposta é sim”.
As dúvidas se estendem sobre questões como até que ponto poderemos reproduzir a natureza em laboratório e qual o limite para a fusão entre o homem e a máquina. Será possível um dia transportar a nossa consciência para um computador? Por enquanto, só há resposta para perguntas como essa no terreno da ficção científica. Na vida real, o que interessa aos pesquisadores no momento é analisar o ser humano em todos os detalhes de seu processo biológico, a fim de aprender a controlá-lo e a reproduzi-lo.
Outra dúvida instigante é se, dotados de neurônios, estômagos e olhos orgânicos, as máquinas passarão a ser consideradas como seres vivos e inteligentes. Se as tecnologias se misturam, é possível que a nossa noção do que é orgânico e do que é cibernético desapareça, como profetizou Kurzweil. Segundo o intelectual americano Erik Davies, autor do livro Techgnosis (ainda inédito no Brasil), esse processo já começou. “É provável que, daqui para a frente, viveremos em um ambiente em que artefatos irão interagir conosco e responderão às nossas perguntas”, diz Erik. “Então, nos acostumaremos a contracenar com as nossas máquinas e a adotar a atitude da criança que olha para o seu urso de pelúcia e acredita que ele está vivo.”
Para saber mais
Na Internet:
Artificial vision
https://www.artificialvision.com
Membrane and Neurophysics – Peter Fromherz
https://www.biochem.mpg.de/mnphys
The Gastrobotics Institute at the University of South Florida
Neural Signals Inc.
rkenski@abril.com.br
Robô faminto
Inspirada no nosso sistema digestivo, esta máquina digere torrões de açúcar, de onde obtém energia para funcionar
1. Digestão
O torrão de açúcar entra pelo “esôfago” e cai em um tanque com solventes e microoganismos que o digerem. Esse processo libera uma grande quantidade de elétrons, que são bombeados para o vagão do meio
2. Alimentação
A solução vai para seis câmaras com paredes de metal, que absorvem os elétrons e os enviam para o motor do robô. A corrente elétrica só fica completa quando os elétrons são descarregados em um outro líquido com oxigênio
3. Respiração
O terceiro vagão funciona como um “pulmão” do robô. Ele possui uma bomba de ar, parecida com as de aquário, que oxigena a água. Esse líquido é bombeado para o segundo vagão, onde serve para descarregar elétrons.
Você ainda vai ter um
Empresa anuncia processador subcutâneo para monitoração permanente de pessoas
Em agosto de 1998, Kevin Warwick causou polêmica ao implantar um chip em seu braço. Enquanto caminhava pelo seu local de trabalho – o Departamento de Cibernética da Universidade de Reading, Inglaterra –, sistemas eletrônicos detectavam a sua presença e emitiam saudações, destravavam portas e acendiam luzes. O intuito era mostrar como esses implantes transmitem informações úteis no dia-a-dia.
Pode parecer delírio, mas chips semelhantes a esse tendem a virar moda dentro de pouco tempo. E é possível que você tenha um. A empresa americana Applied Digital Solutions pretende lançar comercialmente um processador que, colocado sob a pele, deve produzir maravilhas, acionado apenas pelo calor do corpo.
O aparelho terá sensores que enviam informações como temperatura, pulsação e pressão sangüínea para uma estação de controle. Um sistema de posicionamento por satélite nele embutido permitirá a localização da pessoa no caso de emergência médica. Segundo a empresa – que espera faturar mais de 100 bilhões de dólares com o produto – será possível utilizá-lo também para encontrar seqüestrados ou controlar presos em liberdade condicional.
A desvantagem da engenhoca é que ela pode registrar tudo o que você fizer, por onde você andar. Isso, obviamente, abre a possibilidade de que empresas ou o governo venham a bisbilhotar ainda mais a sua vida.