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Por dentro da Formula E

A tecnologia, as disputas e os bastidores do primeiro campeonato de carros elétricos – que já atrai mais montadoras do que a F-1 e tem corridas sem piloto

Por Bruno Garattoni Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 13 jun 2018, 11h55 - Publicado em 26 jul 2017, 17h47

Faz um calor selvagem e as nuvens, escuras e carregadas, ameaçam estourar a qualquer momento. Um sábado bom para ficar em casa. Mas o Circuito de Puerto Madero, montado nas ruas de Buenos Aires, está cheio de gente. Atraídos pelos ingressos baratos (R$ 60), milhares de argentinos vieram conhecer a Fórmula E: o primeiro campeonato de carros elétricos, que está em sua terceira temporada e tem sido apontado como possível sucessor da Fórmula 1. Isso porque, ao mesmo tempo em que as grandes montadoras vão se afastando da F-1 (sobraram Mercedes, Renault, Honda e Fiat-Chrysler, dona da Ferrari), a maioria delas está ou pretende estar na Fórmula E: BMW, Volkswagen (com a marca Audi), Citroen, Renault e Jaguar participam da categoria, que também já atraiu o interesse de Mercedes, Porsche e Ferrari. As empresas adoram a Fórmula E porque, além de desenvolver tecnologias que poderão ser empregadas nos carros elétricos de rua, o futuro dos transportes, ela custa dez vezes menos do que a F-1: com US$ 30 milhões por ano, você monta uma equipe de ponta.

A corrida vai começar daqui a pouco. Mas, antes dela, vamos presenciar algo que nunca foi tentado – e pode ser um marco na evolução do automóvel. Dois carros autônomos, totalmente controlados por computador, vão tentar correr entre si. Talvez você pergunte: o que tem de mais? Afinal, os carros autônomos são uma realidade tecnológica há vários anos – a frota do Google, por exemplo, já rodou 4 milhões de km nos EUA, sem nenhum acidente. Mas ela anda a 40 km/h, obedece às leis de trânsito, dá passagem a outros veículos e sempre tem uma pessoa a bordo, pronta a assumir o comando. Aqui é bem diferente. Os dois carros elétricos do projeto Roborace, que acompanha a Fórmula E e irá fazer sua primeira corrida daqui a pouco, chegam tranquilamente a 200 km/h (isso porque são protótipos; na versão final, vão passar de 300 km/h). E não são programados para evitar riscos, mas para dirigir o mais agressivamente possível, fazendo de tudo para tentar ultrapassar um ao outro. Em suma: muita coisa pode dar errado.

Por isso mesmo, o clima é tenso. Quando os carros são levados para fora dos boxes, a multidão fica em silêncio. Dois engenheiros entram na pista com laptops. Depois de um tempo que parece interminável, dão comandos simultâneos – e os carros começam a andar. Largam rápido mas com prudência, respeitando o espaço um do outro, e somem depois de dobrar a primeira curva. Está dando certo, está acontecendo. Parece inacreditável. Especialmente porque, aqui, ninguém acredita muito no Roborace, que o pessoal da F-E enxerga com desdém. “Eu espero que continue sendo uma coisa totalmente separada”, respondeu o inglês Adam Carroll, piloto da equipe Jaguar, quando perguntei se ele aceitaria correr contra um carro-robô. Carroll, seu companheiro de equipe e o diretor do time (que está estreando na F-E e convidou a SUPER para assistir à corrida) chegam a rir da possibilidade. Mas os carros autônomos estão mostrando, na prática, que sabem andar rápido.

Até que, 30 segundos depois, um estrondo metálico acaba com tudo. Os engenheiros do Roborace saem correndo e centenas de espectadores vão atrás. Lá chegando, todos encontram a mesma cena embaraçosa. Um dos dois carros se acidentou e está com a frente totalmente destruída. Pior, bateu sozinho e da forma mais burra possível: simplesmente virou o volante antes da curva. A primeira corrida de carros autônomos termina em vexame, sob gargalhadas dos argentinos. Ainda não chegou o dia em que será possível dispensar os pilotos. Na Fórmula E, eles são mais importantes do que nunca – inclusive por uma razão controversa.

Por dentro de um Fórmula E

Alguns componentes são padronizados, iguais em todos os carros – para conter os custos e deixar as corridas mais equilibradas. Outros variam radicalmente.

(Leo Natsume/Thales Molina/Superinteressante)

1. Recuperador de energia
Quando o carro freia, nas curvas, o virabrequim (eixo central do motor) não para no ato: ele continua girando, por inércia. O recuperador aproveita esse movimento para gerar eletricidade, que é usada para recarregar a bateria do carro.

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2. Bateria de lítio
Pesa 200 kg e é a maior peça do carro. É carregada (na tomada) antes da largada. Sempre que o piloto freia, durante a corrida, ela recupera um pouco de energia. É fabricada pela Williams, na Inglaterra, e idêntica em todos os carros. Vai dobrar de potência em 2018.

3. Pneus
São aro 18, bem altos, e produzidos pela Michelin. Rodam em pista seca e molhada (mas, até hoje, não choveu em nenhuma corrida).

4. Chassi
Feito de fibra de carbono, tem 5 metros de comprimento e é feito na Itália pela empresa Dallara. É o mesmo para todas as equipes. Sua nova versão, que estreia ano que vem, poderá dispensar o aerofólio traseiro.

5. Câmbio
Transfere a força do motor para as rodas. A maioria dos carros tem duas ou três marchas. A exceção é o Renault, cujo câmbio tem apenas uma. Por isso, ele não perde potência em trocas de marcha – e é o mais veloz.

6. Motor
Cada equipe desenvolve o seu. Pode ser longitudinal, montado de comprido no carro (como o da ilustração), ou transversal: que vai de lado, formando um ângulo de 90 graus com o chassi. O motor transversal usa um câmbio mais simples, com apenas uma marcha, o que deixa o carro mais rápido

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Dois motores
A equipe NextEV tem a proposta mais radical: seu carro usa dois motores elétricos, ambos transversais. Mas ele é mais pesado – e tem andado mal.

 

Concurso de likes

O automobilismo é um esporte objetivo: o cronômetro mostra quem está mais rápido e ponto final. Mas a Fórmula E muda um pouco essa lógica. É que, na semana que antecede cada corrida, você pode votar no seu piloto preferido, pelo site da F-E ou pelo Twitter. Aí, os três mais votados podem usar o FanBoost, um botão que dobra a potência do carro por 5 segundos (se preferir, o piloto pode ir dosando esse bônus ao longo da corrida). É o suficiente para decidir uma vitória. E não depende de talento nas pistas – mas de popularidade na internet.

“Alguns pilotos são famosos, já correram na F-1”, resmunga o neozelandês Mitch Evans, o outro piloto da equipe Jaguar. Ao contrário do colega Adam, um manso veterano de 34 anos, Mitch tem 23 anos e é bem arrogante (característica presente, vale destacar, em quase todos os pilotos de ponta). Correu três anos na GP2, principal categoria de acesso à Fórmula 1, mas não é muito conhecido. Não tem como competir em popularidade com estrelas como o brasileiro Lucas di Grassi e o suíço Sebastian Buemi, que já pertenceram à F-1 – mesmo caso do alemão Nick Heidfeld, do francês Jean-Eric Vergne e do brasileiro Nelsinho Piquet (que também foi campeão da Fórmula E na primeira temporada).

Na corrida de Buenos Aires, os mais votados são o alemão Daniel Abt, Buemi e Di Grassi – que também fez a pole position, e por isso está dispensado de outra particularidade da Fórmula E: a corrida virtual. A cada etapa da categoria, os pilotos disputam dez voltas, num simulador, contra gamers locais. Aqui, foram nove pilotos contra apenas um leigo: o argentino Santiago Michoni, que gosta de jogar online e venceu todos os outros inscritos nas rodadas eliminatórias. Contra os profissionais, ele chegou em sexto. A última corrida virtual, que aconteceu em janeiro em Las Vegas, foi vencida por um piloto amador – mas terminou em confusão. O finlandês Olli Pahkala derrotou dez outros gamers, e todos os 20 pilotos da F-E, no simulador. Só que, por uma falha de software, seu carro estava com FanBoost demais, e ele tomou uma punição. A vitória ficou com outro gamer: o holandês Bono Huis, que levou US$ 225 mil e convite para guiar um F-E de verdade (experiência que ele achou “bem natural”).

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A integração da Fórmula E com o mundo online também inclui a própria exibição das corridas, que além de passarem na TV (no canal Fox Sports) também são transmitidas pela internet – em realidade virtual. É pelo app Virtually Live, compatível com os capacetes Oculus Rift e HTC Vive. Dá para ver a corrida numa arquibancada virtual ou de dentro dos carros. É uma sensação muito imersiva, mas cansa. Por isso, tiro o capacete virtual e vou até a reta de Puerto Madero ver a largada – a de verdade.

As luzes se apagam e os carros arrancam furiosamente, com a aceleração instantânea dos motores elétricos. Mas, justamente por serem elétricos, eles não fazem quase nenhum barulho: você só ouve um assobio, causado pelo atrito dos pneus com o chão. Na primeira curva, o suíço Buemi já tenta assumir a ponta. Ele ganhou o campeonato do ano passado e está liderando o deste ano – porque corre pela equipe Renault, que tem o melhor carro. Na Fórmula E, o chassis, os pneus e as baterias do carro são iguais para todo mundo, mas cada equipe faz seu motor e câmbio. A Renault é a melhor porque seu câmbio tem uma única marcha, contra duas ou três dos outros. Ou seja: ele não precisa trocar de marcha (o que, nos outros carros, desperdiça potência do motor).

Na sexta volta, Buemi já passou todos os outros e está em primeiro, abrindo vantagem. A Renault é tão superior que até seu segundo piloto, o fraquíssimo Nico Prost (filho do tetracampeão de F-1 Alain Prost, que atualmente chefia a equipe na Fórmula E), está em quinto. Mas a corrida não está decidida. Porque, na metade dela, todo mundo tem que parar – e literalmente trocar de carro. As baterias da Fórmula E só duram meia corrida (o que, na pista da Argentina, dá 19 voltas), e por isso cada piloto para no box, desce do seu carro e pula em outro, idêntico, que usa dali em diante. Trocar só a bateria seria complicado e perigoso. Então troca-se o carro inteiro.

É uma cena curiosa, mas que vai acabar. As novas baterias da F-E, que serão fornecidas pela McLaren a partir de 2018, terão o dobro da potência: 54 kilowatts/hora, o suficiente para uma corrida inteira sem pit stop. Elas geram 230 watts por quilo de peso, ou seja, são praticamente tão potentes quanto as da Tesla, maior fabricante de carros elétricos (falando na Tesla, ela optou por não participar da F-E e prepara o seu próprio campeonato, com carros de rua bombados: é o Electric GT, que tem estreia prometida para novembro).

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Dá tudo certo para Buemi, que volta em primeiro e lidera a corrida até o fim. Di Grassi é terceiro, e vê a vantagem do suíço no campeonato crescer para 29 pontos. (Na Jaguar, Mitch chega em 13o, e o veterano Adam é apenas 17o). A corrida terminou, e a Fórmula E se despede da Argentina. Ano que vem, o Brasil tomará seu lugar no campeonato, com uma corrida nas ruas de São Paulo.

Sem piloto, mas com direção

Protótipo do Robocar, primeiro carro de corrida autônomo, usa vários tipos de sensor para mapear obstáculos e saber onde está.

(Leo Natsume/Thales Molina/Superinteressante)

1. Computador central Drive PX2
Foi desenvolvido pela empresa americana nVidia para guiar carros autônomos. Tem quatro processadores, que juntos são capazes de executar 24 trilhões de operações por segundo.

2. Gancho
Serve para rebocar o carro em caso de acidente.

3. Torre central
Contém uma câmera de TV, que capta imagens em 360 graus, e um tubo de pitot (sensor de velocidade de alta precisão, usado em aviões).

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4. Sensores laser
Disparam pulsos de luz para medir, em tempo real, a distância entre o carro e os objetos em volta. Usam a tecnologia LIDAR (Light Detection and Ranging), a mesma empregada no carro autônomo do Google.

5. Assoalho estendido
Ajuda a dispersar o ar que passa sob o carro, “grudando-o” ao chão.

 

A volta por cima

Berlim, 10 de junho. Quatro meses, e três corridas, se passaram desde Buenos Aires. O brasileiro Di Grassi está 22 pontos atrás de Buemi (cada vitória vale 25). Os engenheiros e mecânicos da Roborace, por sua vez, estão prontos para tentar de novo. O projeto tem sede na Inglaterra, mas é financiado pelo russo Denis Sverdlov, sujeito de ideias pouco comuns (ele é dono da YotaPhone, empresa que criou um curioso celular de duas telas). A meta da Roborace é ser um campeonato de verdade, com equipes competindo para ver quem cria o carro-robô mais veloz. Está longe disso. Mas o projeto não é tão mambembe quanto parece. O cérebro do Robocar é um nVidia PX2, mesmo computador que a Volvo usa em seus veículos robóticos – e em versão mais avançada. “Nossos sistemas estão cinco anos à frente dos testados em carros de rua”, diz Victoria Tomlinson, porta-voz da Roborace. Pode até ser. Mas, depois do vexame na Argentina, os engenheiros preferem correr com apenas um carro. Escaldado pelo acidente, o robô começa guiando devagar. Mas pega confiança, alcança 200 km/h e completa oito voltas – na melhor delas, é apenas 8% mais lento que um piloto humano. Um ótimo resultado, que quase classificaria o robô numa corrida de Fórmula 1 (cujo regulamento permite pilotos até 7% mais lentos que o pole position). Claro: o F-1 é um carro mais rápido e difícil de guiar, daria mais trabalho ao computador. Mas o robô já aparece no retrovisor dos pilotos humanos – e não vai parar enquanto não estiver na frente.

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