As surpresas de Netuno
O segundo planeta mais distante do Sol se revela um mundo turbulento, circundado de satélites e anéis. Sua lua, Tritão, é uma atração à parte, com geleiras e vulcões de nitrogênio congelado.
Martha San Juan França
Nunca mais o planeta Netuno será considerado apenas um mundo gigante, meio azul meio verde, quase desconhecido, nos confins do sistema solar. Desde meados do ano passado, quando a sonda americana Voyager 2 sobrevoou os topos das nuvens coloridas, Netuno ganhou uma luzidia cédula nova de identidade, com foto e impressão digital para astrônomo nenhum pôr defeito. As imagens da Voyager 2 revelaram, ao contrário do que se pensava, um planeta ativo, com tempestades e ventos arrasadores, circundado por nada menos de oito luas e cinco anéis, além de uma camada de poeira. Tritão, antes um satélite apagado desse mundo distante, tornou-se depois das imagens da Voyager 2 um dos mais curiosos corpos do sistema solar.
Sabia-se pouco sobre Netuno, é certo, mas havia bons motivos para isso. Oitavo planeta em ordem de afastamento do sol, situado a 4,3 bilhões de quilômetros da Terra, Netuno está tão distante que não é visível a olho nu, assim como Plutão. Mesmo com o auxílio do maior telescópio brasileiro, o refletor de 1,6 metro do Laboratório Nacional de Astrofísica, em Minas Gerais, parece um minúsculo círculo de luz com uma cor meio estranha brilhando no céu, como descreve o astrônomo Roberto Martins, do Observatório Nacional do Rio de Janeiro, que há poucos meses observou o astro noites a fio para medir a órbita de seus satélites. Foi preciso que a Voyager 2, no seu giro de doze anos pelos planetas gigantes, que a levou às vizinhanças de Júpiter, Saturno e Urano, passasse a 4850 quilômetros de Netuno no dia 25 de agosto último, para que se pudesse finalmente dar uma boa olhada nesse remoto mundo verde e no seu curioso satélite, Tritão.
Os estudos anteriores à sonda haviam mostrado que Netuno é o quarto maior planeta do sistema, depois de Júpiter, Saturno, e Urano, o que já não é pouco. Com diâmetro de 50 mil quilômetros, é quatro vezes maior que a Terra. Desde que foi descoberto em 1846, ainda não completou uma volta em torno do Sol. Explica-se: está tão distante que seu movimento de translação dura 164 anos e 280 dias terrestres. À distância que se encontra do Sol, não é de admirar que seja gelado. A temperatura ali fica na marca de 200 graus centígrados negativos. Em Tritão, considerado o lugar mais frio do sistema solar, desce a menos de 240 graus.
Netuno guarda a honra de ser o primeiro planeta cuja existência foi deduzida por cálculos matemáticos antes da observação ótica. Desde o fim do século XVIII se suspeitava que um corpo estranho estava alterando a trajetória prevista de Urano, até então o planeta mais distante conhecido. Ao estudar o movimento deste astro, o astrônomo inglês John C. Adams (1819-1892), em Cambridge, e seu colega francês Urbain Le Verrier (1811-1877), em Paris, descobriram, cada qual por si, que as alterações da órbita de Urano se deviam à influência de um astro ainda mais afastado do Sol. Embora Adams e Le Verrier tivessem concluído os cálculos praticamente juntos, não tiveram a mesma sorte na divulgação dos resultados.
As observações do astrônomo inglês, enviadas ao Observatório Real de Greenwich, não foram levadas a sério. Já Le Verrier comunicou suas conclusões ao Observatório de Berlim. Ali, na noite de 23 de setembro de 1846, o alemão Johann Galle (1812-1910) viu o planeta Netuno pela primeira vez. Por sugestão de Le Verrier, Netuno, que possuía uma cor azul esverdeada, recebeu o nome da versão romana do deus grego do mar, originalmente Poseidon. Seus satélites Tritão, avistado um mês depois, e Nereida, observado apenas em 1949 receberam seus nomes em homenagem a figuras da mitologia marinha.
Além de influir, na órbita de Urano, Netuno também se parece com ele. Tem quase a mesma composição, massa e tamanho. Como Urano, Netuno tem um centro rochoso envolvido numa bola gigante de neve suja. Essa capa congelada parece feita de água e metano. Em volta fica a atmosfera: hidrogênio e hélio misturados com metano. E por sinal o metano, que absorve a luz vermelha, é o responsável pela cor azul esverdeada do planeta. Essa aparência bizarra de Netuno, Urano e dos outros grandes planetas, tão diferentes da Terra e de seus vizinhos Vênus (SUPERINTERESSANTE número 10, ano 3) ou Marte (SUPERINTERESSANTE número 2, ano 3), tem uma explicação que remonta à formação desses astros.
À medida que se vai além de Marte no sistema solar, penetra-se nos domínios dos planetas gigantes, formados por pequenos núcleos rochosos encapados por grandes esferas de compostos voláteis liquefeitos e gases. Ali não existem superfícies sólidas, a não ser nos satélites. Isso porque a matéria-prima da nebulosa que formou os planetas há 4,6 bilhões de anos variou de acordo com a vizinhança do Sol (SUPERlNTERESSANTE número 11, ano 2). Os mais próximos se tornaram ricos em minerais resistentes ao calor, como ferro, óxidos e silicatos. Os mais distantes, de temperatura mais baixa, concentraram os elementos voláteis: hélio, hidrogênio e outros compostos seus, como metano (CH4), amônia (NH3) e água (H2O).
O crescimento desses astros pode ser comparado ao de uma bola de neve”, explica o astrônomo Oscar Matsuura, da Universidade de São Paulo. “O material de que são compostos se agrega com facilidade e, por isso, quanto mais cresceram, mais atraíram outros elementos à sua volta.” Matsuura, que dedicou dezessete dos seus 50 anos ao estudo dos cometas, acabou por se tornar também um interessado na formação do sistema solar. Ele explica que, durante bilhões de anos, este canto do Universo foi o cenário de uma batalha cósmica, na qual asteróides, cometas e meteoros colidiam com o que encontrassem pelo caminho. “As testemunhas mais evidentes desse período turbulento são as milhares de crateras da Lua”, indica o astrônomo.
Quando um desses corpos caía na atmosfera de Netuno ou de qualquer outro planeta gigante, obviamente não deixava crateras como provas do choque. Para Matsuura, “existe uma longa história de colisões também no sistema solar exterior”. O astrônomo confirma assim informações da NASA, onde geólogos e astrônomos, que trabalharam na interpretação das imagens das sondas espaciais como a Voyager 2, não se cansam de constatar que poucas coisas permaneceram intocadas nessa parte mais afastada do Sol. Uma evidência disso são os anéis.
Nenhum planeta do sistema interior tem anéis, todos os exteriores, com exceção de Plutão, têm pelo menos um. No caso de Netuno, desde 1984, os telescópios terrestres mostraram o que pareciam ser anéis incompletos, chamados arcos. “Se fossem realmente arcos, seriam os primeiros avistados ao redor de um planeta”, comenta o astrônomo Jair Barroso, do Observatório Nacional do Rio de Janeiro. Barroso especializou-se numa técnica de observação conhecida como ocultação de estrelas. Ou seja, utilizando um fotômetro fotoelétrico rápido acoplado ao telescópio, ele registra a passagem de um astro por trás de outro um fenômeno que ocorre às vezes em ínfimos um ou dois segundos.
Assim foram percebidos os anéis de Urano e os supostos arcos de Netuno. No começo de agosto de 1989, a Voyager 2 mostrou que entre estes últimos havia segmentos poeirentos muito tênues, por isso mesmo não observados da Terra. As imagens mostraram pelo menos cinco anéis, um deles tão tênue que parece uma camada de poeira. Eles lembram incontáveis luazinhas geladas orbitando o planeta. Podem representar relíquias de um período em que cometas e asteróides batiam nos planetas e se fragmentavam, sendo então capturados pela gravidade do planeta. Ou podem ser restos de uma lua que vagou muito perto e foi despedaçada pela atração de Netuno.
A Voyager 2 descobriu também seis novos satélites rodeando Netuno, designados temporariamente 1989 N1 a N6. “Todos são pequenos e apagados pelo brilho do planeta. Por isso nunca puderam ser avistados da Terra”, explica Roberto Martins, o pesquisador de satélites, do Observatório Nacional. As seis luas recém-descobertas tem entre 50 e 200 quilômetros de diâmetro, com exceção da primeira, que chega a 300 quilômetros, quase do tamanho de Nereida. As imagens de suas superfícies escuras, frias e esburacadas reforçam as teorias de catástrofes durante a sua formação. Como a Lua terrestre cheia de crateras, os pequenos satélites netunianos permaneceram intocados nos últimos bilhões de anos.
Nereida, pouco observada pela sonda espacial, tem uma estrutura física ainda desconhecida. Seu formato é irregular e a órbita, a mais excêntrica de todos os satélites: chega a cerca de 1 milhão de quilômetros de Netuno e se afasta para quase 9 milhões de quilômetros de distância. Tritão, por sua vez, com um diâmetro de 4 mil quilômetros, é um dos maiores satélites do sistema solar. Curiosamente, gira em sentido contrário ao das outras luas e ao do próprio planeta. Por causa disso, e da atração gravitacional do astro maior, está se aproximando inexoravelmente de Netuno, e daqui a 100 milhões de anos deverá se partir em pedacinhos, formando talvez um magnífico anel em volta do planeta. “Provavelmente Tritão foi capturado pela atração gravitacional netuniana”, especula o astrônomo Matsuura. “Todavia, a captura requer condições muito especiais”, ressalva.
Segundo ele, a ciência ainda não tem respostas definitivas sobre a formação dos satélites, apenas algumas hipóteses. “Ou são pedaços do planeta despedaçados pelo choque provocado pela passagem de um grande corpo naquele período de catástrofes, ou objetos espaciais condensados na época de formação do planeta: como estão um pouco mais distantes, não se espatifaram transformando-se em partículas de poeira congelada, como ocorreu com os anéis.”
Com tantas informações novas sobre os planetas gigantes, desde o encontro da mesma Voyager 2 com o planeta Urano, há três anos, a equipe da NASA responsável pela sonda vinha aguardando as surpresas de Netuno. O planeta começou a ser observado atentamente muitos meses antes da aproximação máxima. Esperava-se então que as imagens revelassem um mundo tranqüilo, como acontecera na passagem pelo seu irmão mais parecido. Mas desde o princípio começaram a surgir sinais de turbulência. A atmosfera de Netuno revelou faixas distintas e gigantescos pontos escuros. que significam tempestades. As câmeras da nave espacial captaram imagens belíssimas de bancos paralelos de nuvens douradas fazendo sombra sobre nuvens azuis mais embaixo. Havia furacões, um deles com mais de 13 mil quilômetros de extensão, ou seja, com dimensões equivalentes ao diâmetro da Terra inteira.
Essa superventania, que gira na contramão, ou seja, no sentido oposto ao da rotação do planeta, dá uma volta completa por Netuno em 18 horas e 20 minutos, duas horas a mais do que o dia local. Chamada Grande Mancha Escura, ela demonstrou ser mãe fecunda: mais ao sul de onde girava, a Voyager 2 registrou duas manchas menores. Uma delas, uma nuvem branca de metano, se desloca tão rapidamente, a mais de 800 mil quilômetros por hora, que foi apelidada galhofeiramente pelos técnicos da NASA de Scooter (patinete, em inglês). A outra mancha, sem um nome especial, mas quase tão rápida, apresenta como peculiaridade um núcleo mais claro, provavelmente também de metano.
Onde Netuno consegue tanta energia para sustentar fenômenos climáticos desse porte é um perfeito mistério. No caso da Terra, a energia vem do Sol, mas a 4,5 bilhões de quilômetros, Netuno recebe bem menos radiação. Mesmo assim sua atmosfera chega a ser mais dinâmica do que a de Júpiter, seu irmão maior. “Pode ser que o planeta não tenha terminado de se acomodar e possua uma fonte interna de calor”, admite Matsuura. “Como Netuno possui campo magnético, isso ajudaria a trazer essa energia para a superfície.” O campo magnético de Netuno foi outra das surpresas da Voyager 2. A sonda registrou um forte ruído de rádio ao passar pela turbulência de gases e partículas que formam a magnetosfera do planeta. Ao sobrevoar o lado escuro de Netuno, as câmeras captaram imagens de uma aurora boreal nas regiões polares. Este, como se sabe, é um fenômeno luminoso produzido pela excitação de moléculas por partículas eletricamente carregadas.
As imagens do maior sócio de Netuno, o satélite Tritão, despertaram ainda mais curiosidade nos cientistas da NASA. Descobriu-se um mundo gelado, digno dos filmes de ficção científica, esculpido de duas formas distintas. Uma delas, bastante lisa, formada por campos brilhantes, como se tivessem sido envernizados por algum tipo de material vulcânico. Outra, mais acidentada, apresenta montanhas, crateras e geleiras de metano e nitrogênio congelado. Nessa região existe pelo menos um vulcão ativo, de onde jorram jatos de gás pressurizados, com toda a probabilidade nitrogênio carregado de cristais de gelo e partículas escuras. Provavelmente Tritão tenha sido um planeta independente, como Plutão, com quem se parece em tamanho e talvez em composição. Por algum motivo, foi capturado por Netuno e entrou em órbita ao redor desse planeta. Por ser muito frio e relativamente grande, é capaz de reter uma atmosfera, sendo um dos três astros conhecidos do sistema solar com atmosfera em parte constituída de nitrogênio. Os outros dois são a Terra e Titã, este uma lua de Saturno quase tão grande quanto o planeta Marte.
Na Terra, como se sabe, a composição da atmosfera, entre outras condições específicas, foi favorável ao desenvolvimento da vida. Alguns cientistas, como o físico Carlos Viana Speller, do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), na cidade paulista de São José dos Campos, estudam, com as informações enviadas pela Voyager 2, a existência na atmosfera de Titã de compostos orgânicos básicos para as moléculas precursoras da vida. Se Tritão possui uma composição favorável, pode merecer um estudo semelhante ao de Titã, comenta Speller. Não é de estranhar. Como observou o astrônomo Edward Stone, da NASA, que recebeu as imagens do satélite, Tritão é diferente de tudo que já havíamos visto, e pode ser considerado um dos mais interessantes corpos celestes.
Para saber mais:
(SUPER número 6, ano 2)