Assine SUPER por R$2,00/semana
Continua após publicidade

A vida é um jogo

Comer melhor, fazer exercício, arrumar a casa, salvar o planeta. Todo mundo vive dizendo para você fazer as coisas certas. Mas agora a tecnologia criou um argumento infalível: transformou as obrigações do dia a dia em games que você joga com amigos e desconhecidos e fazem o que era chato virar uma diversão - e já começaram a mudar o mundo.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 19 dez 2011, 22h00

Rafael Kenski

No último mês de setembro, uma comunidade de jogadores deu um importante passo na luta contra a aids. Mergulhados no jogo Foldit, no qual você brinca de encaixar aminoácidos até formar proteínas, eles conseguiram mapear, em poucos dias, a estrutura de uma enzima relacionada ao HIV, um problema que vinha derrotando cientistas e supercomputadores havia mais de uma década. Alguns dos gamers foram até incluídos como autores do artigo científico que divulgou a descoberta.

Foi um feito impressionante, mas está longe de ser o único. Já existem jogos e aplicativos dedicados às mais diversas tarefas, vários dos quais você já pode baixar no seu computador ou celular [veja quadros nas páginas seguintes]. Os elementos normalmente encontrados em games, como ganhar pontos e disputar um ranking com outros jogadores, estão se tornando ferramentas poderosas para motivar as pessoas a resolver problemas. É um movimento que vem sendo chamado de “gamificação”, que promete revoluções (e polêmicas) na educação, na ciência, nas empresas e, pelo pouco que se sabe do potencial dessas mudanças, em quase qualquer atividade humana. Em um dos primeiros cálculos de até onde essa onda pode chegar, o instituto de pesquisas Gartner previu que, em 2015, metade das empresas que investem em inovação terá alguma iniciativa baseada em jogos.

É como se os games já não se contentassem mais apenas em simular a realidade. Eles agora querem construí-la. Hoje, todo mundo é um jogador. Mesmo se você nunca tiver pego num joystick, é provável que tenha algum game no celular – ou goste de jogar algum joguinho na internet de vez em quando. Um levantamento da empresa de pesquisas NewZoo mostrou que 76% dos brasileiros que possuem acesso à internet jogam videogame, espalhados entre todos os gêneros e idades. Mais da metade dos usuários de redes sociais como o Facebook participa de games online. Segundo Jane McGonigal, do centro de pesquisas tecnológicas Institute for the Future, a humanidade passa 3 bilhões de horas por semana jogando. E esse tempo todo gasto já mudou um bocado a nossa realidade.

Isso porque os videogames funcionam com uma lógica diferente daquela que encontramos no dia a dia. O aprendizado é quase sempre por tentativa e erro, sem manual de instruções, e não existem chefes: o universo gira em torno de cada jogador e, em games coletivos, cada missão tem um líder diferente. Todos os obstáculos podem ser quebrados. É por isso que a geração que está chegando ao mercado de trabalho resiste em obedecer a patrões e tem mais vontade de aprender fazendo e mais necessidade de recompensas imediatas, o que as empresas nem sempre conseguem oferecer. Eles foram criados jogando videogames.

Os games também nos ajudam a ganhar novas habilidades. O tempo gasto com joysticks aumenta a percepção espacial e mais coordenação entre o que o olho vê e o que a mão faz. Uma prova disso é que cirurgiões de laparoscopia que são bons jogadores também são mais hábeis durante as operações. Além disso, os jogos ensinam novas maneiras de trabalhar em grupo. Dois relatórios publicados pela IBM mostram que o estilo de organização dos jogadores em games online, como World of Warcraft – grupos informais, com divisão de funções bem clara e decisões rápidas -, é ideal para as empresas modernas. E elas já começaram a perceber isso. Ou seja: o tempo que você gastou no videogame pode ajudar algum dia na busca por um emprego.

Continua após a publicidade

Ao longo das últimas décadas, várias instituições perceberam o potencial dos jogos e começaram a usá-los para seus propósitos. Uma das principais foi o Exército americano, que já na década de 90 fazia parcerias com a indústria de videogames para criar simuladores de batalha e usá-los como propaganda para o alistamento militar. O uso educativo dos jogos não é uma surpresa: segundo o estudioso de videogames Raph Koster, o objetivo de todos os jogos é ensinar alguma coisa – ou, em outras palavras, fazer a pessoa “pegar a manha” de uma tarefa, nem que seja pular em plataformas ou matar zumbis. Ações como essas impulsionaram o que se chamava de “jogos sérios” – aqueles feitos para fins que não o puro entretenimento. O objetivo, agora, era fazer com que as pessoas pegassem a manha de praticamente tudo.

Não é brinquedo não

Qualquer coisa pode virar um jogo. Pegue, por exemplo, os lugares onde se passeia em uma cidade. Dá para criar um sistema no celular que registre cada estabelecimento onde você esteve e marque um ponto para cada uma dessas visitas. Daí ele monta rankings, dá medalhas virtuais para diferentes tipos de passeio e cria disputas de quem vai mais vezes ao mesmo lugar. Ele já existe, e se chama Foursquare – que hoje é um dos aplicativos para smartphone mais usados no mundo, com 10 milhões de usuários.

Foi o sucesso do Foursquare, juntamente com a popularização dos jogos em redes sociais (como Farmville, o megasucesso do Facebook), que deu o impulso decisivo para a gamificação. Registre e calcule o que você faz no dia a dia e sua vida inteira pode ser transformada em uma brincadeira. Criar essas interações fica ainda mais fácil em uma época em que é possível colocar sensores em roupas ou tênis, em que celulares possuem câmeras, GPS e internet e quando milhões de pessoas registram sua vida em redes sociais. Os jogos não precisam ser uma realidade paralela. Nós podemos vesti-los, interpretá-los e estar neles a qualquer momento. Podemos até dirigi-los: alguns modelos do Ford Fusion, por exemplo, vem com uma árvore no painel que cresce quanto mais você dirigir de maneira econômica.

Falando em trânsito, os games também podem ajudar a enfrentar um momento doloroso da vida: andar em transporte público lotado. O jogo Chromaroma (www.chromaroma.com), criado pela cidade de Londres, registra todos os trechos que uma pessoa percorre e dá pontos e prêmios cada vez que ela faz algo novo, como usar caminhos diferentes, fazer uma rota mais rápido, visitar lugares desconhecidos ou se tornar o usuário mais assíduo de uma estação. Também traz histórias e missões em cada um desses lugares – tudo na tentativa de fazer as pessoas se esquecerem da superlotação.

Até os terroristas estão percebendo o poder motivador dos jogos. Alguns fóruns de extremismo islâmico, que reúnem pessoas com visões radicais sobre o Oriente Médio, já instituíram um sistema de pontuação – em que o usuário vai subindo no ranking conforme seus posts são lidos e comentados por outras pessoas.

Continua após a publicidade

Os jogos exercem um efeito poderoso porque eles são parte de nós. Brincar é uma atividade instintiva não só para os humanos, mas entre diversos mamíferos e pássaros também. Mesmo que jogar um jogo possa deixar os animais distraídos e à mercê de predadores, o ganho de habilidades e a socialização que ele traz fazem valer a pena. Jogar nos dá motivação para qualquer coisa: para mudar a nossa vida, criar um novo hábito, usar uma nova mercadoria, seguir (ou infringir) a lei. Ou simplesmente escovar os dentes direito.

A empresa americana Green Goose está desenvolvendo um produto que promete revolucionar a rotina doméstica. É um kit de sensores que se conectam a vários objetos – como escova de dentes, tênis de corrida, frascos de remédio, livros escolares e até as garrafas de bebida que estão na sua geladeira. Todos os sensores se comunicam, sem fios, com uma base central, que registra e computa 50 atividades diferentes e transforma praticamente tudo o que acontece dentro de casa numa competição online, que é disputada entre as pessoas da família. Bebeu vinho demais na semana passada? O sensor colado na garrafa percebe, e você perde pontos. Lavou a louça todos os dias? O frasco de detergente sabe disso, avisa os outros moradores e faz você subir no ranking. O melhor de tudo é que o sistema é baseado em tecnologias relativamente simples. “Nós usamos acelerômetros [sensores de movimento, os mesmos presentes no iPhone e no controle do Wii] para medir a interação das pessoas com os objetos”, explicou o diretor da empresa, Brian Krejcarek, ao apresentar o kit. O produto tem lançamento previsto para 2012.

Outra ideia veio de Estocolmo, uma cidade hipercivilizada, mas que também tem a sua parcela de motoristas barbeiros e/ou imprudentes. As autoridades tiveram uma ideia estranha: e se, em vez de distribuir multas, a capital da Suécia transformasse o trânsito em jogo? Um medidor de velocidade foi instalado numa das maiores avenidas da cidade. Era um equipamento comum, como as lombadas eletrônicas e os radares típicos das grandes metrópoles. Ao passar pelo sensor, o motorista vê sua velocidade e tem a placa do carro fotografada. Quem excedesse o limite, 40 km/h, levava multa. Só que o dinheiro da multa não ia todo para o governo: parte era sorteada entre os demais motoristas, que haviam passado naquela avenida sem exceder a velocidade permitida. Funcionou. A média naquele trecho, onde passam em média 8 mil carros por dia, caiu de 32 km/h para 25 km/h, uma redução de 22%. Não foi preciso criar novas leis, reforçar o policiamento ou fazer campanhas de conscientização. Apenas criar um jogo tão simples quanto uma loteria.

O que torna a gamificação algo tão precioso hoje é que motivar as pessoas é um dos grandes desafios para o futuro da humanidade. Não é mais tão difícil inventar coisas novas – há maneiras rápidas de interligar pessoas, informações e objetos em qualquer lugar -, mas ainda é difícil convencer as pessoas a se empenhar nisso. Em muitos casos, os games podem ser o empurrão que falta para uma iniciativa dar certo. Um exemplo veio do departamento de previdência social do Reino Unido. Há anos, ele pedia novas ideias a seus funcionários, mas a participação sempre foi baixíssima. Criou-se, então, um sistema que dava pontos por idéias e comentários, e que poderiam ser “investidos” para levar adiante propostas que fizessem sentido para cada funcionário. Em um ano, o setor gerou 1,4 mil novas ideias, das quais 63 foram implantadas e vão gerar uma economia de R$ 55 milhões ao longo dos próximos 4 anos.

O lado sério da diversão

Transformar tudo em jogo também tem seu lado ruim. E por um motivo bem simples: o que era divertido pode se tornar chato. Décadas de pesquisa em psicologia mostraram que, quando você dá recompensas para uma pessoa fazer algo que ela já faz por prazer, a motivação tende a diminuir. Pague para uma criança jogar futebol por um tempo e ela só vai jogar enquanto estiver valendo dinheiro – mas, se você apenas entregar uma bola, é provável que ela jogue a tarde inteira. O motivo é que o dinheiro força a pessoa a fazer aquela atividade, além de colocar uma medida numérica em algo que até então era meramente divertido. Se adicionarmos recompensas como pontos e medalhas em tudo, as pessoas poderão interpretá-los como uma espécie de pagamento – e nunca mais fazer as coisas por espontânea vontade.

Continua após a publicidade

Entretanto, ninguém sabe muito bem como funcionam essas interações em um ambiente de jogos, e existem algumas exceções. Programadores que se divertem desenvolvendo de graça softwares de código aberto não diminuem sua participação ao serem pagos para trabalhar nesses projetos. É possível que, na era da colaboração online e do trabalho gamificado, algumas regras mudem. A gente só não sabe quais. O mundo ainda está deslumbrado demais com as perspectivas da gamificação para saber de fato até onde ela pode chegar. De um lado, espera-ser que ela resolva alguns dos grandes problemas da humanidade. A educação tradicional poderia melhorar ao trocar as sofridas provas por mecanismos mais divertidos, que estimulassem o aluno a aprender, em vez de assustá-lo com a perspectiva de repetência. Empresas usariam, além do salário, também a diversão para motivar os funcionários. Marcas não pensariam apenas em criar produtos que funcionem mas também garantir que eles fossem legais. Até mesmo o governo poderia usar simuladores para entender o que os eleitores preferem. Também teríamos um arsenal de técnicas para mudar a nossa vida, eliminar vícios, curar doenças, colaborar com boas causas e ajudar a levar o mundo para o caminho que queremos. Em resumo, seria começar a pensar em como criar um mundo em que o importante é bolar projetos divertidos, e não só úteis ou lucrativos.

Entretanto, é possível que estejamos esperando demais dos jogos. Para o economista Edward Castronova, da Universidade de Indiana, Estados Unidos, grande parte das nossas instituições já é gamificada. O sistema de dar notas e passar de série na escola já é um jogo, e que precisou de décadas para chegar aonde está. O exército também oferece medalhas e distinções para seus melhores “jogadores”. E algo parecido acontece em qualquer empresa, hospital ou governo. É possível que as regras que organizam os sistemas da nossa sociedade já sejam os melhores “jogos” que podemos ter nessas circunstâncias.

A próxima década será o momento de abrir a caixa de todas as instituições e descobrir quais delas podem melhorar ou tirar proveito de novas tecnologias. Os jogadores que mapearam a enzima do HIV mostraram que é possível, no mínimo, criar formas mais divertidas de resolver problemas. Grandes projetos colaborativos, como o Linux ou a Wikipedia, também são feitos em grande parte por pessoas em busca de diversão. O que mais pode ser construído apenas aproveitando o que achamos legal fazer? Daqui em diante, estaremos participando todos do jogo de criar novos jogos para a nossa vida.

*Lançamento em 2012

Jogos da vida
Sites e aplicativos para transformar o dia a dia em game

Chore Wars

Continua após a publicidade

Serve para: Organizar tarefas domésticas.

Como é: Quanto mais você lava louça ou varre o chão, mais pontos ganha – e mais poderoso fica seu avatar em disputas com os outros moradores.

chorewars.com

Foldit

Serve para: Ajudar os cientistas.

Continua após a publicidade

Como é: Brinque com aminoácidos como se fossem peças de Lego até formar substâncias úteis aos cientistas.

fold.it

Waze

Serve para: Não se irritar no trânsito.

Como é: Aplicativo que transforma os congestionamentos numa rede social em que você fala com pessoas dos outros carros e ganha pontos.

waze.com

Health Month

Serve para: Comer melhor.

Como é: Participe de competições online para ver quem consegue melhorar mais a dieta (evitando gorduras, álcool e excesso de cafeína, entre outras coisas).

healthmonth.com

Mindbloom

Serve para: Aumentar sua quali­dade de vida

Como é: Liste seus sonhos profissionais, pessoais e até espirituais e eles aparecerão em uma árvore, que só sobreviverá se você cumpri-los.

mindbloom.com

RescueTime

Serve para: Fazer o dia render mais.

Como é: Monitora os sites que você acessa e os programas que usa no computador. No fim do dia, mostra o quanto você realmente trabalhou – e quanto enrolou.

rescuetime.com

Cardio Trainer

Serve para: Correr!

Como é: Mede a distância e a velocidade do exercício e dá medalhas pelas calorias queimadas. Também permite disputar corridas virtuais com amigos.

market.android.com

Getupp

Serve para: Cumprir objetivos.

Como é: Você define a meta e o prazo. Se não alcançá-la, o aplicativo avisa seus amigos – que ficam sabendo que você é um #fail.

getupp.com

Para saber mais

“Reality Is Broken”, Jane McGonigal, Penguin, 2011.

https://gamification.org/

https://gamification-research.org/

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 12,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.