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Ao astronauta Marcos Cesar Pontes:nosso vôo mais alto

Em meio a rituais da ex-União Soviética esessões de tortura, o astronauta Marcos Cesar Pontesse prepara para ser nosso primeiro homem no espaço.Veja o que ele vai encontrar lá em cima.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h47 - Publicado em 28 fev 2006, 22h00

Texto Arthur Felipe Artero

Anoitece em Baikonur, no Cazaquistão. O dia é 29 de março de 2006. Ao astronauta Marcos Cesar Pontes, 43 anos, resta uma última tarefa antes que ele possa se tornar o primeiro brasileiro a ir ao espaço. Com seus colegas de tripulação, o americano Jeffrey Williams e o russo Pavel Vinogradov, ele terá de assistir a um filme.

Nada que se relacione a viagens espaciais. A película, chamada Sol Branco do Deserto, é uma obra soviética de 1970 que mostra a guerra civil e a consolidação do poder comunista na Ásia. Só há uma razão para que ele tenha de ver este filme, e sem legendas, óbvio: cosmonautas (é assim que os russos preferem chamá-los) têm feito a mesma coisa por décadas a fio.

É assim o vôo espacial na Rússia, cheio de tradições e rituais. Continuando a cumprir esse protocolo, na manhã seguinte, 30 de março, Pontes irá se despedir de seu alojamento no Centro de Lançamento de Baikonur deixando seu autógrafo na porta, igualzinho a outros viajantes espaciais que partiram daquelas imediações, como Yuri Gagarin, que em 12 de abril de 1961 virou o primeiro homem a olhar o planeta do lado de fora.

Quando chegar a hora de Pontes conferir se a Terra é azul mesmo, será a coroação do trabalho de um homem que começou a vida como eletricista em sua cidade natal, Bauru (interior de São Paulo).

“Quando criança, fazia um monte de visitas ao aeroclube para ver a Esquadrilha da Fumaça e muitas visitas à Academia da Força Aérea (AFA), onde meu tio, que era sargento da FAB, servia como membro da equipe de manutenção de aeronaves”, conta o astronauta. “Eu decolava ali, na minha imaginação, entre a poeira levantada pelos motores e o cheiro de combustível nos hangares da AFA. Queria ser um piloto de caça.”

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Queria e foi atrás. Entrou para a Academia da Força Aérea e formou-se engenheiro elétrico pelo ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). Virou piloto de caça da FAB, testando aeronaves experimentais. Foi aos EUA para a pós-graduação, um mestrado em engenharia de sistemas na Escola de Pós-Graduação Naval, em Monterey, Califórnia. Mas não imaginou que passaria tanto tempo na terra do Tio Sam.

Em 1997, o governo brasileiro assinou com a Nasa um acordo para fazer parte do conjunto de nações que participa da construção da Estação Espacial Internacional. O Brasil forneceria algumas peças do complexo no valor de 120 milhões de dólares e, em troca, teria direito a treinar um astronauta para fazer experimentos científicos nacionais a bordo do complexo. Pontes viu aí uma oportunidade para fazer vôos maiores – ele e mais centenas de candidatos a astronauta que se apresentaram à Agência Espacial Brasileira (AEB) para tentar a vaga.

Depois de análises de currículos, exames médico, físico e psicológico, sobraram 5 para uma entrevista em inglês com participação do conselho da AEB e de membros da Nasa. Deu Pontes.

Então, em 1998, em vez de voltar ao Brasil após o mestrado, ele foi com a mulher e dois filhos para Houston, no Texas. É onde fica o Centro Espacial Johnson, da Nasa, local onde são treinados os astronautas americanos. Lá o brasileiro obteve os conhecimentos para desempenhar a função de viajante espacial, que vão de exercícios de EVA (sigla em inglês para atividade extraveicular, nome chique para as caminhadas espaciais) em enormes piscinas para simular a falta de gravidade até testes de sobrevivência no deserto, na selva e no gelo (numa emergência, nunca se sabe em que ponto da Terra a nave vai pousar). Mas nem tudo saiu como planejado.

Astronauta sem nave

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Os anos iam passando, o Brasil não conseguia honrar o compromisso e a situação do astronauta brasileiro em Houston ia ficando difícil. O pior é que ele servia como porta-voz do país no projeto da Nasa. “Eu não sabia mais que desculpa inventar para justificar os atrasos”, diz.

No fim das contas, o escopo da participação brasileira foi reduzido para cerca de 40 milhões de reais, uma fração da proposta original. Em conseqüência, os benefícios para o Brasil também encolheram. Pontes continuaria em treinamento no Johnson, mas suas chances de ser escalado para vôo no ônibus espacial americano, como ditavam os planos originais, minguavam a cada dia. Para piorar, em 1º de fevereiro de 2003, no retorno à Terra, o ônibus espacial Columbia foi destruído num acidente. A tragédia, com a morte de 7 astronautas, obrigou a Nasa a interromper seus vôos e atrasar a construção da estação espacial. Com tudo conspirando contra, Pontes corria o risco de entrar para a história como o astronauta que não foi ao espaço.

Para evitar isso, a AEB decidiu fazer o que a Nasa já estava fazendo havia tempos para manter seu programa à tona: pedir ajuda aos russos, que são sempre muito prestativos – por uma módica quantia, é claro. No caso, o governo brasileiro teve de desembolsar a bagatela de 10 milhões de dólares (metade do preço “de tabela” dos sujeitos) para garantir o assento de Pontes na espaçonave Soyuz que decola em 30 de março.

Sessões de tortura

Familiarizado com os procedimentos e veículos americanos, Pontes teria de aprender rapidamente os russos. Por isso, assim que o acerto com a Roskomos (agência espacial russa) foi concretizado, o brasileiro se transferiu de Houston para os arredores de Moscou, onde fica o centro de treinamento de cosmonautas, também conhecido como Cidade das Estrelas.

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As sessões foram intensivas. Para quem olha de fora, parece mais tortura que treino. Um dos testes, por exemplo, consiste em entrar numa câmara e ficar lá enquanto o ar é todo bombeado para fora. Ocorre que cada pessoa reage de uma maneira diferente num ambiente de despressurização, então o cosmonauta precisa conhecer bem suas próprias reações de modo a rapidamente identificar e sanar o problema, no caso de uma emergência em vôo.

Noutro teste, o astronauta vai para uma centrífuga que gira cada vez mais rápido, aumentando a aceleração à qual o corpo é submetido. Isso serve para habituar o sujeito à violência da decolagem. Quando a nave começa a subir, afinal, as costas são pressionadas contra o assento da nave com uma força de 3,5 G (3 vezes e meia a da gravidade). Um astronauta de 80 quilos se sente com 280. E pior: “Nessas condições, uma cortina cinza se estende gradualmente para dentro a partir dos dois lados da cabeça, pois a visão das cores desvanece a começar pela periferia dos olhos”, diz a fisiologista Frances Ashcroft, da Universidade de Oxford, no livro A Vida no Limite.

Outra parte do treinamento é ficar dentro de um avião em queda livre, para simular a ausência de gravidade. Legal, né? Mas flutuar no espaço não é só diversão. A ausência de peso faz os fluidos do corpo se deslocar para a parte de cima. O rosto incha, o nariz fica entupido, rolam náuseas, tontura. É que nem pegar uma gripe forte. Como o astronauta não pode pedir um atestado médico para faltar no trabalho quando estiver lá em cima, é melhor ir preparado.

E até o inverno russo ajuda na preparação. Pontes teve de se virar por um dia inteiro no gelo, a 30 graus negativos, num daqueles treinos de sobrevivência para o caso de a nave cair num lugar ermo.

E sobreviver é a chave, seja na neve, seja no simulador da Soyuz instalado na Cidade das Estrelas. Enquanto numa sala ao lado os engenheiros criam vários “problemas” com a nave, os cosmonautas precisam contra-atacar com a presteza exigida para salvar o veículo e a tripulação. “Não ‘morri’ nenhuma vez aqui”, diz o astronauta, orgulhoso. Durante 7 anos nos EUA, ele “morreu” duas vezes no simulador do ônibus espacial.

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A cereja no bolo de torturas: aprender russo. Pontes tem tido aulas intensivas. Na primeira delas, ao se encontrar com o professor, disse em inglês que só pretendia aprender o suficiente para acompanhar as atividades do programa espacial. O mestre respondeu, num tom ao mesmo tempo tranqüilizante e ameaçador: “Não se preocupe. Quando terminarmos, você terá ido muito além de suas modestas aspirações”.

Seja como for, ele vai ter pouco tempo para praticar a língua. A estadia do brasileiro no espaço vai ser de apenas 10 dias (dois na Soyuz mais 8 na estação), enquanto a dos astronautas escalados para morar na estação é de 6 meses.

Crise astronômica

Até hoje, 30 astronautas viveram na estação espacial. Outros 111 fizeram visitas breves, como a de Pontes – sem falar em 3 milionários que pagaram 20 milhões de dólares aos russos para dar uma volta lá em cima. Mas com a ausência de vôos dos ônibus espaciais desde 2003 a coisa deu uma arrefecida. Diminuíram a tripulação fixa de 3 para dois astronautas, a fim de racionar suprimentos.

Mesmo assim Pontes vai encontrar o lugar agitado. Como ele sobe com a dupla que vai formar a 13ª tripulação e descer com a da 12ª, terá 4 colegas lá dentro: dois russos e dois americanos.

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O quinteto vai dividir 167 m2 – a área de um apartamento de 3 quartos. Esse espaço, aliás, deve aumentar no segundo semestre deste ano, quando os ônibus espaciais devem voltar à ativa para ajudar na montagem do complexo.

Um complexo que representa o projeto espacial mais ambicioso da história. Participam dele, em maior ou menor medida, 16 países: EUA, Rússia, Japão, Canadá, Bélgica, Dinamarca, França, Alemanha, Itália, Holanda, Noruega, Espanha, Suécia, Suíça, Reino Unido e Brasil. Quando tudo estiver concluído, essas nações terão gasto cerca de 100 bilhões de dólares – é a maior iniciativa de cooperação internacional da história.

Mas um projeto desse porte não se desenrola sem atropelos – não houve um país sem problemas com prazos e orçamentos. E a liderança titubeante dos EUA não ajuda a manter as coisas nos trilhos. Desde o anúncio do presidente George W. Bush de que a Nasa deveria voltar a empreender missões tripuladas à Lua até 2020, a agência espacial americana decidiu reduzir sua fatia de uso (e de financiamento) da estação espacial. Agora, cabe aos outros parceiros decidir se vale a pena gastar dinheiro para explorar o potencial dela. O Brasil está fazendo isso com o vôo de Pontes. Para uns, de forma modesta. Para outros, perdulária.

De carona na Soyuz

Veterana do espaçoé a nave mais segurada história

Os mais novos tripulantes da Soyuz: Marcos Cesar Pontes, Pavel Vinogradov e Jeff Williams. Só o nome dos dois últimos aparece no logotipo da missão, já que só eles ficarão morando na estação espacial. Pontes sobe com eles, fica 8 dias lá, e desce com a dupla anterior de tripulantes, William McArthur e Valery Tokarev.

Submarino espacial

A Soyuz parece ter saído de um livro de Júlio Verne (1828–1905). E como: até periscópio a navezinha russa tem (este cano verde aqui).

LATA DE SARDINHA

A Soyuz (“união”, em russo) é a nave espacial mais segura da história. O modelo está em operação desde 1967 e não sofre acidentes há 25 anos. Mas segurança não é sinônimo de conforto aqui. Viajar na nave de 7 metros de comprimento por 2,7 metros de diâmetro equivale a ficar enlatado. Olha só: esse compartimento aí em cima é a capsula de reentrada (a parte em forma de sino no meio da nave). É onde os 3 tripulantes ficam durante a decolagem e a descida. E, para caber aí, eles precisam sentar sobre as próprias pernas, agachados. E quem tem 1,90 m ou mais nem entra. Para Pontes, de 1,68 m, isso não é problema.

ESTICADA NAS PERNAS

Segundo o astronauta americano Edward Lu, um dos poucos que tiveram a chance de viajar tanto na Soyuz quanto no ônibus espacial, a viagem na nave russa é mais turbulenta até a chegada à órbita – mas tudo bem, isso consome apenas 9 minutos. Depois, o pessoal amarga uma espera de dois dias até encontrar a estação espacial. Nesse meio-tempo, eles podem dar uma esticada nas pernas aqui no módulo orbital, que fica na ponta da Soyuz. É essa parte que se acopla à estação espacial. A aproximação e o encaixe das duas naves acontecem automaticamente. Os astronautas só precisam fazer alguma coisa em caso de emergência.

VOLTA PARA CASA

A nave se solta da estação e, depois de 3 horas de viagem, o módulo de reentrada se separa do resto da Soyuz (que pega fogo quando entra na atmosfera) e começa seu mergulho rumo às planícies do Cazaquistão, onde o resgate vai buscar os astronautas. As paredes externas da cápsula chegam a uma temperatura de até 1 650 oC. Todas as Soyuz feitas até hoje agüentaram a bronca. Acidentes, só tiveram dois: um em 1967, quando o pára-quedas de frenagem não abriu; outro em 1971, quando um vazamento deixou a cabine sem ar e os tripulantes morreram asfixiados. De lá para cá, todos têm de usar roupas pressurizadas durante a descida.

Para que ir até lá em cima?

O motivo principal: com a vaga de Pontes na estação, vêm as primeiras pesquisas científicas do país no espaço. Ele vai conduzir 8 ali. Todas sobre efeitos da ausência de peso – como qualquer uma feita na estação por outros países. Num deles, por exemplo, o astronauta vai testar a capacidade de reparos do DNA num ambiente sem gravidade. Em outro, mais prosaico e bolado por alunos de 1º grau, vai ver como sementes de feijão reagem lá no alto. Mas e aí? Vale a pena gastar 10 milhões de dólares para colocar brotos de feijão a 400 quilômetros de altura? Para a AEB vale, já que um dos objetivos da missão seria estimular os jovens daqui a perseguir uma carreira na ciência. “Além disso, o vôo serve para divulgar o Programa Espacial Brasileiro”, diz Sérgio Gaudenzi, presidente da agência. Mas que diabos é esse tal de “Programa Espacial Brasileiro”? Na verdade, o país foi um dos primeiros a ter aspirações espaciais. Começou em 1960, quando o presidente Jânio Quadros estabeleceu um grupo para formular uma estratégia para o setor. Essa equipe virou o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). E de lá para cá, a área de satélites foi a que decolou. Hoje o Brasil faz aqueles que monitoraram o desmatamento da Amazônia, por exemplo. Em outro ramo nacional, o de foguetes lançadores de satélites, o cenário é outro. Nossa última experiência com um deles causou uma baita explosão e 21 mortes. Ainda assim, existem projetos para criar novos foguetes. O mais potente, previsto para 2022, teria capacidade para lançar sondas interplanetárias. Viagens tripuladas? Não. Vamos continuar pedindo carona mesmo.

As entranhas da estação

Embarque nessacasa-da-mãe-joana hi-tech.

CENTRO TECNOLÓGICO

• O caótico módulo Destiny foi construído pela Boeing e chegou em 2001. Ele tem 13 “armários” para abrigar experimentos científicos, cada um do tamanho de um armário de verdade mesmo. Logo atrás dele está o módulo Unity, onde os painéis solares ficam presos.

• O visual lá dentro não tem nada de Jetsons. Além de fios pra todo lado, não falta fita adesiva para não deixar as bugigangas voando ao léu pela nave.

• À esquerda do Unity fica uma área hermeticamente isolada, com uma porta que abre para o vácuo. É daqui que os caras saem para andar no espaço.

O PRIMEIRÃO

• Aqui fica o porta-trecos. Este módulo, o Zarya (“nascer do sol”, em russo). Construído pela então União Soviética, foi o primeiro módulo a ser despachado para o espaço, em 1988. Hoje serve como bagageiro e porta de entrada da estação – olha a Soyuz estacionada ali.

• Um dos experimentos mais comuns ali é criar plantas no ambiente sem gravidade, coisa que pode ser útil em futuras missões de longa duração.

HOTEL RUS

• O laboratório Zvezda (“estrela”, em russo) é o módulo mais caseiro, já que não tem as paredes tão atulhadas. Ele chegou em 2000 e serve de dormitório. A estação, aliás, tem 44,5 metros de comprimento. Pouco, mas os astronautas pelo menos podem andar no teto.

• Eles levam comida desidratada e algo parecido com carne seca. Sal? Tem, mas só em forma líquida – senão os grãozinhos flutuariam para sempre lá.

• Eles têm de malhar 4 horas por dia. Mas até fazer esteira é difícil, já que o corpo tem de ficar amarrado para não sair voando ao primeiro passo.

Para saber mais

A Vida no Limite – Frances Ashcroft, Jorge Zahar Editor, 2000

International Space Station – https://spaceflight.nasa.gov/station

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