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Por Alexandre Versignassi
Blog do diretor de redação da SUPER e autor do livro "Crash - Uma Breve História da Economia", finalista do Prêmio Jabuti.
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Jerusalém: um conto de duas cidades

Jerusalém vive duas realidades ao mesmo tempo, e guarda 3 mil anos de guerra em um único quilômetro quadrado.

Por Alexandre Versignassi Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 jan 2019, 18h44 - Publicado em 29 ago 2014, 16h34

Jerusalém vive duas realidades ao mesmo tempo. A capital mundial do judaísmo é mais árabe que falafel com humus: um labirinto de véus, camelôs, incenso, temperos fortes, mesquitas. É assim faz tempo. Jerusalém é muçulmana praticamente desde a criação do islamismo: os árabes tomaram o controle da cidade, expulsando os bizantinos (herdeiros do Império Romano), no ano 637, só cinco anos depois da morte de Maomé. Por isso mesmo é lá que fica um dos lugares mais tradicionais do islamismo: a Esplanada das Mesquitas, um platô no coração da Palestina onde multidões de fiéis a Allah vão rezar todos os dias.

Mas Jerusalém também é judaica. Mais judaica que humus com falafel. Todo sábado é primeiro de janeiro lá. Em nenhum outro lugar de Israel levam tão a sério o Shabat, o domingo dos judeus. Dá para dormir no meio das avenidas. Nos bairros de judeus ortodoxos, pelo menos, dá mesmo. Nem carro anda. Colocam barreiras de concreto nas ruas para que nenhum motorista menos comprometido com a tradição se meta a atrapalhar o sábado. Quando o Sol se põe, acaba o Shabat, e começa uma enxurrada humana: as ruas se transformam em rios de cabeças com quipás e chapéus felpudos, fluindo rumo ao centro velho – a “Cidade Velha”, na verdade, um pedaço murado de 1 km2 em que 3 mil anos de história pulam na sua cara o tempo todo.

*

O destino do mar de quipás é o Muro das Lamentações. Que não é exatamente um muro, mas um revestimento. Uma parede de pedra, que envolve o lugar mais sagrado do judaísmo: o Monte do Templo, um platô no coração de Israel. Foi em cima do monte, diz a Bíblia, que Salomão construiu seu templo, por volta de 950 a.C. – não muito tempo depois de o pai dele, Davi, ter tomado a cidade das mãos dos jebuseus, anexando Jerusalém aos domínios israelitas.

Bom, dali em diante, a cidade caiu nas mãos de babilônios, persas, gregos, romanos, bizantinos, muçulmanos, cristãos, muçulmanos de novo, ingleses. O Templo de Salomão virou ruína antes de a Bíblia ser escrita. Os judeus foram expulsos, retomaram a cidade, acabaram expulsos de novo… Mesmo assim, pela ótica deles, Jerusalém nunca deixou de ser a casa do Templo, o lugar onde Deus mora.

Do ponto de vista árabe, a lógica é exatamente a mesma. Foi do meio da Esplanada das Mesquitas, diz o Corão, que Maomé subiu aos céus para se encontrar com outros profetas e figuras importantes do passado – Abraão, Moisés, Davi, Salomão… Exato: os mesmos heróis do judaísmo. Na prática, o deus dos judeus e o deus dos árabes são essencialmente o mesmo cara, com embalagens um pouco diferentes. Tipo o Pelé e o Edson, entende? (ainda que o seu deus sempre seja o Pelé e o do outro, o Edson  –  uma entidade sem envergadura mitológica).

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Seja como for, o lugar é coisa séria para o Islã. Se ficar mais sagrado, profana. Só tem um problema: a Esplanada das Mesquitas fica bem perto do Monte do Templo. Perto mesmo: as duas coisas são o mesmo lugar, o mesmíssimo imóvel – um morro idolatrado igualmente por judeus e árabes, como se existisse simultaneamente em dois Universos paralelos, ou em estado de superposição quântica, se você faz questão de um termo científico mais preciso.

Então o lugar é uma cilada, Bino?

Nem tanto. Até há pouco tempo, Jerusalém era uma Berlim do Oriente Médio. De um lado, tinha a Jerusalém Ocidental, sob o governo de Israel. Do outro, a Oriental, que era parte da Jordânia  – o país árabe tinha tomado esse pedaço, quando entrou em guerra contra Israel, em 1948. Entre as duas Jerusaléns, cercas de arame farpado.

A Cidade Velha ficava do lado árabe das cercas. Os judeus estavam banidos: não podiam entrar. Mas não por muito tempo. Em 1967, começou outra guerra, a dos Seis Dias. Israel ganhou, e tomou Jerusalém Oriental. O Monte do Templo era deles de novo. Uma das primeiras providências, inclusive, foi derrubar o bairro árabe que existia em frente ao Muro das Lamentações, abrindo um pátio do tamanho de um campo de futebol para os judeus rezarem.

Boa parte dos árabes que viviam na agora Jerusalém Oriental continuou na cidade. Ganharam passaportes israelenses. Mas nunca deixaram de se considerar palestinos. Nem eles, nem seus filhos e netos, que povoam o leste da cidade hoje. Jerusalém deixou de ter arame farpado, mas continua tão dividida quanto antes. As duas fotos aqui embaixo mostram um pouco disso:

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(Alexandre Versignassi/Reprodução)

À esquerda, temos a judaica Jerusalém Ocidental num Shabat; à direita, a Oriental, árabe, no mesmo dia, e praticamente na mesma hora – os dois cenários ficam a 500 metros um do outro.

Árabes praticamente não circulam nas áreas judaicas, e vice-versa. Isso vale para a Cidade Velha também. Os judeus ocuparam a área próxima ao Muro das Lamentações em 1967. Mas a parte mais sagrada da coisa ficou com os palestinos. O Monte do Templo/Esplanada das Mesquitas foi mantido pelo governo de Israel como um santuário só dos árabes. Ainda bem, porque isso evitou um conflito civil que poderia redefinir o conceito de “tragédia”. E ainda evita, já que mais de um terço dos 800 mil habitantes da cidade ainda são árabes. Árabes-israelenses, mas que às vezes vibram quando os moradores dos territórios palestinos atacam os judeus-israelenses – uma vibração discreta, para não chamar a atenção dos soldados, onipresentes. A parte árabe de Jerusalém, afinal, é praticamente um morro cheio de UPPs: as metralhadoras são tão parte da paisagem quando os vendedores de falafel.

Por essas, qualquer um que visite a cidade sente que não tem jeito, que um Estado com judeus e árabes convivendo em paz é tão viável quanto dois corpos ocuparem o mesmo lugar ao mesmo tempo. O único futuro viável ali é o que a ONU já tinha proposto em 1947: dois Estados soberanos, um para cada lado. Mas experimente perguntar para alguém de lá se tudo bem abandonar Jerusalém, a Cidade Velha, o Muro das Lamentações/Esplanada das Mesquitas. Esqueça. Os árabes vão rir de você. Os judeus também.

Essa história, veja só, começou bem diferente. No ano de 625, os cristãos bizantinos expulsaram os judeus de Jerusalém – e fazia só 11 anos que eles, os judeus, tinham reconquistado a cidade, das mãos do próprio Império Bizantino. Bom, quando o Califa Omar tomou a cidade para os árabes, em 637, uma das primeiras providências do muçulmano foi justamente liberar o retorno dos judeus. Ou seja: o passado recente deixa claro que a questão entre judeus e árabes é insolúvel. Mas o passado profundo mostra que as nossas certezas são mais voláteis do que parecem.

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