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As lentes de contato de Black Mirror já estão patenteadas…

...e essa é só a ponta do iceberg. A 4º temporada da série estreia no dia 29 – enquanto você não vê, repasse todos os episódios com o dossiê da SUPER

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 set 2024, 13h35 - Publicado em 22 dez 2017, 18h03

“As lentes de contato (…) têm a função de capturar imagens e são capazes de controlar o momento da captura de acordo com um piscar de olhos do usuário.” Esta frase parece só uma descrição técnica do gadget usado no terceiro episódio de Black Mirror. Mas de ficção não tem nada: foi tirada da patente US 20160097940 A1, registrada pela Sony em um escritório nos EUA em fevereiro de 2014.  

Essas lentes, ainda hipotéticas, não devem quase nada às da série: também seriam capazes de filmar, e poderiam exibir as fotos e vídeos recentes diretamente nos olhos do usuário. Por causa do tamanho reduzido, elas precisariam da ajuda de um dispositivo externo – que manteria uma conexão sem fio com o acessório e processaria o grosso das informações recebidas.

A Sony não foi a primeira nem a única: Google e Samsung, na mesma época, registraram suas próprias versões da tecnologia. A existência de patentes não significa que amanhã esses produtos sairão do papel e chegarão às lojas. Mas é um sinal que as gigantes da tecnologia resolveram marcar terrenos mais ousados no mercado de wearables – confirmando o exercício distópico de Black Mirror.

Os idealizadores das lentes smart da vida real querem dar a elas finalidades mais nobres do que lavar a roupa suja com seu cônjuge. Uma das propostas da Google é medir os níveis de glicose de diabéticos diretamente nas lágrimas. Outra é detectar obstáculos na calçada para guiar pessoas com problemas de visão. Até exibir legendas de filme – ou traduções simultâneas de uma peça de teatro em outra língua – seria possível, eliminando a inconveniente aparência física dos óculos-gadget que já estão no mercado.

Outro anúncio recente – e com carinha de roteiro da Netflix – é a Google Clips: uma câmera de cinco centímetros, 60 gramas e US$ 250 que, usando um algoritmo de inteligência artifical, decidirá por você o que vale a pena fotografar. Com uma lente de 12 MP, 16 GB de memória e bateria para durar “alguns dias” em stand by, ela é ativada automaticamente ao observar uma cena que parece digna de registro – como os rostos de seus familiares e amigos sorrindo ou de um cachorro abanando o rabo. Além de produzir imagens estáticas, também faz GIFs de seis segundos que são enviados diretamente para o celular.

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Ela pode ser presa no cinto, no bolso da camisa ou colocada no canto de uma sala. É bem menor que um smartphone – como se o ícone do Instagram tivesse pulado da tela e se tornado tridimensional.  E, ao contrário das lentes eletrônicas, logo estará à venda – pode inclusive chegar ao Brasil. O site americano The Verge resumiu a sensação: “a Google Clips é estranha e fofa. Mas não é assustadora?”

Algumas medidas foram tomadas para evitar inconvenientes de privacidade. Da mesma maneira que o algoritmo aprende a reconhecer seus conhecidos, ele evita clicar estranhos na rua. Nenhuma das imagens é compartilhada automaticamente na nuvem – elas vão primeiro para o seu celular, e só saem de lá com o aval do dono. Além disso, ela não associa rostos a nomes: a Clips sabe que aquele nariz é de alguém que está sempre com você, mas não sabe que esse alguém chama João e tem um perfil no Facebook.

Tudo isso só reforça o objetivo central do dispositivo: ele não serve tanto para fotografar uma viagem inesquecível, mas para criar um diário visual da vida de seu usuário. Tanto as lentes quanto a câmera são herdeiras de uma tradição que nasceu na década de 1980: o lifelogging, termo sem uma boa tradução em português que se refere ao hábito de registrar, com o auxílio da tecnologia, a própria vida nos mínimos detalhes.

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Um marco histórico da prática veio em 1995, quando um projeto da web 1.0 chamado Cool Site of the Day (o site legal do dia) destacou um dos projetos visionários de Steve Mann, doutor pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Por vários anos, usando uma engenhoca complexa pendurada no próprio corpo, o inventor transmitiu a própria vida 24 horas por dia, 7 dias por semana.

Nessa época, carregar um vídeo de alguns segundos era um suplício para a internet discada. Mesmo assim, Mann conseguiu acumular um pequeno exército de seguidores: em 1996, seu site recebia 30 mil visitas diárias. Para viabilizar a empreitada, ele precisava andar na rua vestindo uma enorme pochete de equipamento eletrônico, com óculos especiais e antenas em torno da cabeça. “Muitas pessoas atravessavam a rua para me evitar.”

A tecnologia, porém, se provou útil na prática: em 2004, a casa de Mann foi atingida por um carro. Quando ele saiu para ver o que tinha acontecido – vestido com seu equipamento vistoso –, o motorista deu ré e fugiu, atropelando o cientista e quebrando seu pé. A câmera, porém, registrou imagens da placa e do rosto do infrator, que foi identificado e preso.

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A moral da história é que o lifelogging não é tão novo assim. Lentes com câmera e a GoPro autobiográfica da Google são só desdobramentos da mochila de fios e câmeras que Mann levou por aí enquanto a internet dava seus primeiros passos. Em um mundo em que todo mundo pode andar com uma discreta câmera ligada, o medo da vigilância atinge um nível quase conspiratório. E o nosso desejo de acompanhar a vida alheia de perto – evidente desde o sucesso de Big Brother – também.

Entre 2009 e 2011, o escritor norueguês Karl Ove Knausgård – um homem que, em princípio, não tem nada de especial – decidiu escrever a própria vida em 3,5 mil páginas. Não ocultou nomes, e incluiu até descrições dos produtos de limpeza que usou para limpar a casa do pai alcoólatra após encontrá-lo morto no sofá. Sua escrita é prosa pura, sem floreios literários: uma versão impressa de  Steve Mann filmando a própria vida.

Resultado? A obra foi venerada pela crítica, e 10% dos cidadãos da Noruega têm uma cópia de seus livros – mesmo que, ao contrário da câmera da Google, ele não tenha ignorado os momentos desinteressantes. Documentar e expor a própria vida, portanto, parece ir além do narcisismo: pessoas se interessam por pessoas, e a tecnologia dá vazão a esse desejo. Mesmo que ele tenha consequências imprevisíveis… como alimentar brigas de casal.

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