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Estudo revela truques da indústria farmacêutica para manipular resultados

95% dos testes de remédios em ratinhos não podem ser validados. E 89% das descrições de testes avaliadas por comitês de ética vão sem referências bibliográficas.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 set 2024, 15h39 - Publicado em 13 abr 2018, 18h19

Quando um remédio em fase experimental já está funcionando bem em cobaias, o próximo passo é testá-lo em seres humanos. Antes, porém, os autores da pesquisa precisam montar um relatório e apresentá-lo a um comitê de ética. É um calhamaço de respeito, com todos os detalhes possíveis e imagináveis sobre as condições em que as drogas foram ministradas nos animais e a maneira como eles reagiram. Questão de segurança. Voluntários só podem entrar no laboratório depois da aprovação desses papéis, chamados investigator brochures (IBs).

Parece um sistema bem confiável, a julgar pela descrição acima. Mas há mil maneiras de passar por cima dele. Um artigo da Escola de Medicina de Hannover, na Alemanha, publicado no último dia 5, passou a limpo 109 IBs entregues para análise entre 2010 e 2016. Eles continham, ao todo, 708 testes de eficácia pré-clínicos – o nome bonito e complicado para os experimentos feitos com tecidos de camundongos brancos antes de partir para o Homo sapiens.

Outra coisa que eles continham era sujeira. 95% dos 708 testes não mencionavam informações extremamente importantes para verificar a validade de um experimento, como o método usado para calcular o número de cobaias, ou se os pesquisadores sabiam ou não quais camundongos estavam saudáveis e doentes na hora do teste – o ideal é que não saibam, para que tudo ocorra em igualdade de condições. Esses exemplos estão bem simplificados, mas o espírito da coisa é: para um experimento científico passar pela revisão, ele deve ser montado de forma a representar a realidade da melhor maneira possível e tratar todos os participantes sem distinções.

Além disso, 89% das descrições de testes não estavam acompanhados de uma referência bibliográfica para o artigo científico em que foram registrados originalmente, e 82% dos testes deram resultados positivos – uma taxa de sucesso tão alta que só pode estar errada: é provável que, em muitos casos, os resultados negativos tenham sido omitidos por conveniência. Ou, nas palavras dos autores da análise, “os raríssimos registros de medicamentos que não tiveram efeito nenhum causam preocupação de que o planejamento dos estudos esteja errado ou haja viés na hora de relatá-los.”

Na lista de assuntos que dão ótimas teorias da conspiração, a indústria farmacêutica só não é páreo para as linhas de Nazca e o ET de Varginha. A diferença é que alienígenas muito provavelmente não visitaram nem o Peru nem Minas Gerais. Já o mundo dos testes clínicos está de fato sujeito à manipulação e ao dinheiro, e esse artigo recém-publicado não é o primeiro nem será o último a constatar isso.

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Na rabeira da nova pesquisa, o médico nefrologista (e estrela do Medium) Jason Fung postou um textão em que relembra estatísticas assustadoras de outros anos. Por exemplo: um estudo de 2010 revelou que testes de novos medicamentos que foram financiados pelo setor privado dão resultados positivos em 85,9% das vezes – contra os 50% dos financiados pelo setor público. Em outras palavras, quando há interesse em aprovar um medicamento para vendê-lo, magicamente ele se torna mais eficiente no laboratório. Coincidência? Parece que não.

Outra análise, de 2008, revisou 12 artigos científicos sobre antidepressivos. Os testes feitos com esses medicamentos e que foram escolhidos para sair na versão final dos artigos científicos foram comparados com o total de testes feitos, tenham eles sido publicados ou não. Os que não foram publicados podem ser acessados na base de dados da Food and Drug Administration (FDA), a agência de vigilância sanitária dos EUA, que aprova tudo com antecedência.

Resultado? Dos 37 estudos que a FDA considerou positivos, 36 saíram na versão final. Já entre os 36 que deram resultados negativos, 22 foram ignorados, e 11 camuflados de forma a parecerem melhores do que foram de verdade. Em outras palavras, os autores só publicam o que interessa. E isso é um perigo: pode explicar porque, na prática, tanta gente diz que os antidepressivos não fazem efeito.

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Além do dinheiro que entra com a aprovação fácil de remédios, também há, claro, o dinheiro pago pela indústria para publicar os resultados de suas pesquisas em revistas científicas. Em novembro do ano passado, eu escrevi uma longa reportagem sobre a indústria dos periódicos e como ela leva cientistas à exaustão – e à malandragem (veja aqui: A máquina que trava a ciência).

O resumo da ópera é: grupos editoriais gigantes, como os que publicam Nature e Science, ofereceram aos pesquisadores a opção de pagar pelos custos de publicação de suas descobertas científicas. Assim, o conteúdo fica disponível gratuitamente na internet – colaborando com a democratização da ciência. Outras revistas cobram de quem quer publicar e também de quem quer ler. No caso das revistas médicas, boa parte dos dispostos a pagar para emplacar um artigo são da indústria.

É claro que isso não tem nada a ver com propina. É uma prática antiga, legalizada e de conhecimento de todos. Acontece que fica difícil confiar no processo de revisão de uma editora quando sua função é apontar erros nos textos enviados pelas entidades que as financiam. E assim, muitos deslizes passam convenientemente batidos. Este artigo, de 2017, calculou que cada editor de periódico científico recebe em média 28 mil dólares anuais por seu trabalho de seleção (não vou entrar em detalhes porque o texto já está cansativo de tão longo, mas quem chegou até aqui certamente terá interesse em clicar).

Moral da história? Bem, você não tem como simplesmente parar de tomar remédios. Mas é bom ter senso crítico sempre que aparece uma nova descoberta sobre depressão, Alzheimer e outras doenças que são sempre assunto na mídia: nenhum cientista é perfeito.

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