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A neurociência do parto

O cérebro passa por mudanças físicas durante a gestação. Elas são fundamentais para a maternidade, mas também podem estar por trás das depressões pós-parto.

Por Alexandre Carvalho
Atualizado em 25 jul 2022, 10h44 - Publicado em 19 Maio 2022, 23h28

Não são só os enjoos. Não é só a barriga protuberante, evidente, que faz com que desconhecidos percebam uma situação extraordinária e ofereçam seu assento no metrô. O corpo da mulher se torna um corpo de futura mãe assim que um embrião começa uma temporada em seu útero.

Por fora, além da barriga, há seios maiores, com vasos bem visíveis de tanto fluxo sanguíneo; o peito está se preparando para nutrir, para a conexão entre mãe e bebê que nos inclui na subclasse de animais vertebrados chamada mamíferos. Esse mesmo fluxo, abundante em regiões protagonistas da gravidez, diminui nas coadjuvantes, como as extremidades do corpo. Com menos sangue circulando por ali, pés e mãos acabam recebendo mais água e ficam inchados, exigindo novos pares de sapatos e sandálias, mais folgados.

Já por dentro, há toda uma revolução acontecendo. O antes minúsculo útero aumenta de tamanho até 500 vezes para acolher o serzinho que vai morar ali ao longo de 38 a 41 semanas (isso numa gestação sem sustos). Esse crescimento enfrenta barreiras anatômicas, como a dimensão da bacia na qual está instalado. Por isso, o útero é empurrado para dentro do abdômen e acaba exercendo pressão sobre a bexiga – o que explica as grávidas terem tantos xixis urgentes. Mas há também um relaxamento das articulações dessa bacia, bom para permitir a passagem de um bebê, mas que torna qualquer caminhada desconfortável.

As transformações no corpo de uma mulher que vai dar à luz são bem conhecidas, assim como seus efeitos colaterais: a exaustão, a dificuldade de achar posição para dormir e uma série de incômodos que vão se acumulando com o passar das semanas de gestação. O que a ciência ainda precisava entender melhor é outro fator que vai do início da gravidez aos primeiros tempos com o filho já no berço: o que acontece no cérebro da mãe.

As grandes descobertas a esse respeito só começaram no século 21, e deixaram os cientistas empolgados. Logo ficou notório que, nas gestantes, o cérebro se torna um órgão em contínua transformação – e a metamorfose se estende até alguns anos depois do parto.

Você verá que essas mudanças estão por trás de condições que permitiram, ao longo da evolução, que mães tivessem partos viáveis e cuidassem de forma mais eficaz de seus filhos – se não fosse assim, os filhotes humanos pré-históricos seriam alvos fáceis de predadores, e provavelmente não estaríamos aqui. Por outro lado, também explicam instabilidades de humor, frustrações e a depressão que acomete muitas mulheres após um nascimento tão aguardado.

O cérebro da grávida muda inclusive de tamanho. Diminui (por um bom motivo), aumenta… Vejamos por quê.

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Menor e melhor

Essas revelações começaram com um estudo inglês ainda em 2002, que já apontava para o efeito-sanfona cerebral. Pesquisadores do Imperial College, de Londres, coletaram imagens do cérebro de mulheres antes e durante a gravidez, e também um ano após o parto. Descobriram que certas partes do órgão encolhem durante a gestação e se expandem um tempo após o nascimento do bebê.

Já era uma descoberta intrigante, porém ainda incipiente: não chegava às razões de esses movimentos acontecerem. Mas, claro, havia um caminho ali a se trilhar.

Foi a partir desse estudo que, 14 anos depois, a neurocientista holandesa Elseline Hoekzema conseguiu um avanço histórico nas investigações a respeito do cérebro das gestantes e durante seu puerpério (o turbulento período pós-parto que se prolonga até que o organismo da ex-grávida volte às condições anteriores à gestação). Conclusão principal: as mudanças no cérebro estão relacionadas aos novos desafios da maternidade.

Essa pesquisadora e sua equipe fizeram exames de neuroimagem no cérebro de 25 mulheres antes que engravidassem pela primeira vez, e os repetiram nas primeiras semanas depois que elas deram à luz. Então compararam os resultados com os do cérebro de 20 mulheres que nunca tinham parido. E a diferença foi espantosa.

As novas mamães apresentavam alterações tão evidentes no tecido cerebral que, com um algoritmo de computador, os pesquisadores conseguiram diferenciar as mulheres que tiveram filhos daquelas que não passaram por essa experiência.

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Um dos fatores que mais chamaram atenção foi a redução da massa cinzenta em certas regiões cerebrais. Uma diminuição que, em algumas mães, permaneceu por até dois anos após o parto. Localizada principalmente nas partes mais externas do cérebro (o córtex), essa massa cinzenta tem um papel importante na execução de tarefas mais sofisticadas, como tomar decisões e processar memórias.

Opa, reduzir sua capacidade de decidir e de se lembrar das coisas não parece algo positivo, certo? Depende. “As pessoas sempre pensam numa perda de volume como algo negativo, uma perda de função”, explicou Hoekzema. “Mas esse tamanho menor também permite uma sintonia fina de conexões.”

Isso porque esse encolhimento é fruto da eliminação de uma série de ligações entre os neurônios (o nome é “poda sináptica”) para abrir caminho a novas interações, mais eficientes e úteis para quando chegar o momento de ser mãe. Em vez de se concentrar em informações dispensáveis para esse período, como a data de aniversário de uma tia ou o nome de um personagem de série da Netflix, a cabeça da nova mãe se torna mais eficiente em funções cognitivas sociais, principalmente em algo que lembra a metafísica: ler o pensamento do seu bebê. Bem, mais ou menos isso.

Você já ouviu alguma mãe garantir que sabe, pelo volume ou pelo jeito como o bebê está chorando, se ele está com fome ou com cólicas? Ela sabe mesmo. E esse superpoder de identificar seus desejos e necessidades provavelmente só é possível por causa das conexões que se formaram no cérebro no lugar daquelas que diminuíram.

Após um tempo, que pode durar até dois anos, já não é mais preciso adivinhar o que o bebê quer. A criança já sabe expressar o que deseja com palavras ou apontando para as coisas. E o cérebro da mãe se expande. Logo, pode retornar à anatomia pré-gestação.

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Convenhamos, principalmente para mães de primeira viagem, adquirir essas percepções faz toda a diferença no nível de cuidado que se tem com o bebê. Ao longo dos milhões de anos de evolução do gênero Homo, que daria origem ao sapiens, as mulheres que tiveram essa transformação no cérebro adquiriram uma capacidade maior de cuidar de suas crianças. A prole delas teve mais oportunidades de chegar à idade reprodutiva, transmitindo a suas filhas e netas os genes responsáveis pela “intuição” maternal – que de intuitiva não tem nada; já que se trata de um processo biológico.

Elseline Hoekzema ainda descobriu que as mesmas áreas cerebrais ativadas para essas percepções entram em ação quando as gestantes olham para imagens de rostos de bebês. Ou seja, o aumento de eficácia materna promovido pela poda sináptica intensifica os laços amorosos entre a mãe e sua cria, mesmo depois de as sinapses terem voltado ao normal. Mais um truque da evolução para que esses rebentos sejam mais protegidos, e seus genes tenham uma trajetória fértil.

Ilustração em aquarela de uma mulher num parto humanizado, na água. Estão nascendo mais plantas dos ramos.
Gestantes têm redução de massa cinzenta. Mas isso não é ruim. Dá espaço para novas conexões cerebrais, voltadas ao cuidado com o bebê. (Luli Reis/Superinteressante)

Hormônios do parto

E na hora H? O que acontece com o cérebro no exato momento em que a mulher está apresentando uma criança ao mundo?

Produzida na região do cérebro chamada hipotálamo, a ocitocina é conhecida como o “hormônio do amor”. E não é por acaso. É ele que promove o afeto entre os indivíduos, reduzindo os níveis de cortisol (o hormônio do estresse, seu avesso) quando você está perto de uma pessoa querida. Ou seja, faz com que você desenvolva sentimentos amorosos, seja por um parceiro romântico, seja por um bebezinho fofo que é a sua cara… e até por seu cachorro ou gato. As células receptoras que permitem que seu corpo responda à ocitocina no sangue aumentam cada vez mais na gravidez. Até que chegam a um pico bem na hora do parto. E aí o hormônio tem outras funções além de fazer a mulher se apaixonar imediatamente pelo neném que saiu dela: ele realmente faz o parto acontecer.

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É a ocitocina que estimula as contrações que ajudam a dilatar o colo do útero, mover o bebê para baixo e para fora do canal uterino. Baixas concentrações desse hormônio podem fazer com que as contrações diminuam e até parem, complicando bastante o trabalho de parto e tornando-o mais demorado. Em muitos casos, a obstetra acaba aplicando ocitocina sintética no organismo da mãe, para que o processo retome seu rumo. (Estamos falando, claro, de partos naturais, sem intervenção cirúrgica.)

Foco na missão

A ocitocina não trabalha sozinha. Outro hormônio que chega a seu ápice durante o parto é a noradrenalina. Ela é responsável por deixar o corpo em seu estado máximo de energia e foco. Sim, a não ser que seja uma cesárea, a mulher não tem como parir com o corpo mole e a cabeça desligada. Então, quando chega a hora, o aumento de nível de noradrenalina contribui para que a mulher entre em um estado de “consciência de parto”, e fique mais preparada para os desafios da hora H.

“É um estado de aumento de foco e desinibição de restrições sociais [como não ter vergonha de ficar nua na frente de estranhos]”, descreve a pesquisadora Orli Dahan, da Universidade de Tel-Hai, em Israel, especializada em gestação do ponto de vista evolucionário, num artigo científico sobre o assunto .

Entre os hormônios que atuam no momento do parto, diga-se, também é preciso destacar a endorfina, que está ali para tornar as dores suportáveis. Para as mulheres que não usam anestesia – como no chamado “parto humanizado”, que reduz ao máximo as intervenções médicas no momento de dar à luz –, o nível de endorfina também aumenta bastante durante o nascimento. (Já quando se faz uso de analgésicos, há uma queda acentuada.)

Esse hormônio produz um estado alterado de consciência, que permite à mulher não se concentrar na dor. Mais do que isso: a endorfina faz a parturiente se sentir eufórica após o nascimento, assim que vê o rostinho da criança. Ou seja: tem um papel importante no fortalecimento da relação mãe-bebê. Uma queda nos níveis do hormônio pode provocar depressão pós-parto, ou o chamado baby blues (uma depressão mais leve e passageira).

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É sobre elas que vamos tratar agora.

Ilustração em aquarela de uma mulher segurando o bebê no colo, com flores nascendo dos ramos. Algumas estão mais tristes que outras.
Mulheres com depressão pós-parto têm um padrão diferente de ativação neural diante do choro da criança, sugerindo uma sensibilidade reduzida. (Luli Reis/Superinteressante)

A mãe que não se sente mãe

Se essas transformações do cérebro conferem uma maior capacidade de sobreviver ao parto e transferir cuidados e afeto aos filhos, o mesmo não pode ser dito quanto à subvalorizada habilidade das mulheres para cuidar de si mesmas.

Cada vez mais, a ciência desconfia que a mesma poda sináptica e a reorganização cerebral ao longo desse período podem estar ligadas a distúrbios de ansiedade e depressão que muitas mulheres experimentam após o parto – transtornos psicológicos que podem durar poucas semanas ou até anos.

“As mudanças dinâmicas que afetam o cérebro de uma mulher não são meramente adaptativas e provavelmente conferem uma vulnerabilidade para o desenvolvimento de transtornos mentais”, aponta outro estudo conduzido por Elseline Hoekzema, agora voltado para os distúrbios psicológicos pós-parto.

Não são casos raros. Pelo menos uma em cada dez novas mães encontra dificuldade em se conectar com seu bebê. Um estudo revelou que, no Reino Unido, o suicídio é a principal causa de morte de mães recentes.

Amostras de imagens do cérebro de mulheres com ansiedade ou depressão pós-parto identificaram um padrão diferente de ativação neural diante do choro do próprio bebê em comparação com mães sem esses sintomas, sugerindo uma sensibilidade reduzida – indiferença mesmo. Mães deprimidas mostraram ativação mais fraca de áreas de recompensa e motivação, como o tálamo e o núcleo accumbens, e também nas ligadas ao controle emocional, como o córtex orbitofrontal.

Na revisão de diversos estudos conduzida por Hoekzema, ficam claras até as diferenças entre as características dos distúrbios de ansiedade das mulheres que acabaram de dar à luz e o mesmo problema em gente sem ligação com um novo bebê em casa. Ansiosos fora desse período delicado apresentam hiperatividade na amígdala (estrutura do cérebro que nos faz reagir emocionalmente às situações da vida). Por outro lado, a ansiedade exacerbada em mulheres no pós-parto está associada a uma menor resposta da amígdala a pistas emocionais do bebê.

“É importante entender melhor as distinções entre esses distúrbios que ocorrem durante e fora do período perinatal, não apenas para aumentar nossa compreensão da neurobiologia desses transtornos, mas também para auxiliar no desenvolvimento terapêutico”, conclui o estudo.

Os avanços nas tecnologias de neuroimagem têm ajudado pesquisadores a buscar caminhos para uma melhor qualidade de vida para a mãe, antes, durante e após o nascimento de sua criança. Também deixam claro que o parto não é meramente um processo mecânico, que só depende da flexibilidade da pelve materna e do tamanho da cabeça do bebezinho. É, na verdade, uma revolução parida pelo cérebro.

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