A rica linguagem corporal dos mergulhões
As diferentes formas de comunicação entre os mergulhões, aves do cabo Kidnappers na Nova Zelândia.
Bryan Nelson
Vivendo em populosas colônias à beira do mar, essas aves desenvolveram sofisticados sistemas de comunicação e sinalização
As águas frias e soturnas do Mar do Norte se agitam em torno do basalto duro da ilhota de Bass Rock, na costa da Escócia e local tradicional de acasalamento do rnergulhão do norte, ou do Atlântico Norte. Entre novembro e fevereiro, o Mar Norte é bravo, de superfície encrespada. Mas, em janeiro, depois de quatro ou cinco meses alimentando-se no mar, os mergulhões regressão aos arrecifes para construir seus ninhos. No extremo oposto do mundo – no Cabo Kidnappers, na costa leste da Ilhado Norte, Nova Zelândia — vive outra conhecida colônia de mergulhões. Eles lembram muito os parentes do Hemisfério Norte em aparência e comportamento. No entanto, apesar das semelhanças evidentes, apresentam diferenças evolutivas de adaptação ao ambiente. Para Comparar as duas espécies, saí da Escócia e durante urna temporada vivi em Cabo Kidnappers.
Curva majestosa de fulgurante xisto, limoso prateado que forma a ponta sul da Baía Hawkes, o cabo tem esse nome (em inglês, Kidnappers significa “seqüestradores”) porque, quando, o infatigável Capitão Cook — um corretor de fazendas do Condado de York, na Inglaterra, que se tornou navegador- estava mapeando a costa da Nova Zelândia, os índios maoris nativos tentaram seqüestrar um dos tripulantes de seu navio.
Na extremidade da ponta, num desfiladeiro profundo dois picos, vive uma colônia magnífica de mergulhões. Um segundo grupo faz seus ninhos num platô adjacente, e um terceiro nos Black Reefs — onze pequenas formações rochosas a cerca de 800 metros da colônia principal. No total, o Kidnappers abriga de 5 000 a 6 000 casais de mergulhões (os australási¬os, como são chamados nessa parte do mundo. compõem cerca de 26 colônias e 46 000 casais entre a população total do mundo). Raramente eles fazem seus ni¬nhos no continente: preferem pequenas ilhas ao largo, mas o cabo é praticamente unta ilha. O desfiladeiro foi ocupado provavelmente em 1879, o platô em 1936 e os Black Reefs dois ou três anos depois.
As lutas são pura exibição: as aves não se machucam
Dirigi-me à colônia de Kidnappers com uma extensa lista de perguntas acumula¬das em vinte anos de observações na colônia de Bass Rock. Acima de tudo, minhas dúvidas referiam-se ao comportamento social dessas aves, pois há muito tempo sou fascinado pela expressão cor¬poral natural e a linguagem visual pela qual elas se comunicam entre si, assegu¬rando dessa maneira o funcionamento eficiente da colônia. Sem uma comunica¬ção clara, uma colônia numerosa parece¬ria e soaria como um pandemônio.
Munido de binóculo, cronometro, altímetro, caderno de anotações e uma câmera de vídeo, sentei-me à beira da colônia e comecei a observar os mergulhões. Praticamente a meus pés encontra¬vam-se fileiras maciças das aves mari¬nhas deslumbrantemente brancas, com cerca de 90 centímetros de comprimen¬to, cabeça e pescoço ricamente emplu¬mados, contorno dos olhos azul, bico azul-acinzentado e ponta das asas ne¬gra. A colônia pulsava em atividade frenética e o fragor que as aves produziam era quase palpável no ar — uma tagarelice em tom elevado completa¬mente distinta do alarido áspero dos mergulhões do Atlântico Norte, mas com efeitos fisiológicos igualmente significantes nos participantes.
Com mergulhões comprimidos a uma densidade de dois a três casais por me¬tro quadrado, e sem um balizamento natural para a aterrissagem, os erros eram inevitáveis entre os pássaros que chegavam e ataques vigorosos eram desfechados contra inadvertidos intrusos. As lutas eram, na verdade, uma das primeiras coisas que eu queria obser¬var, a fim de estimar sua freqüência, intensidade e duração. Os mergulhões do norte seio muita agressivos na defesa de seu território. Da mesma forma, os casais de mergulhões do norte que con¬seguem pôr os ovos no início da estação são mais capazes de produzir descen¬dentes que sobreviverão para procriar. Conseguir lugar próximo ou entre pás¬saros estabelecidos significa maior ex¬posição ao estímulo social, que por sua vez induz a postura mais cedo. Esses dois fatores devem ter tido importân¬cia na evolução do forte senso de terri¬tório que possui o mergulhão atlântico.
Já os australásios nidificam de pre¬ferência em locais planos, e o momento de postura é induzido por fatores muito mais variáveis. Acho que talvez aqui na Nova Zelândia a competição Por espaço, e, por conseguinte a agressividade seja menos intensa. Pelo menos foi o que observei, apesar de que, diante da ferocidade com que atacam os intrusos, poder-se-ia duvidar disso.Contudo, os combates costumam ser breves, duram um minuto ou dois, e são, em geral, mais o resultado de avanços inadvertidos do que de competição por espaço.
Quando lutam, os mergulhões produzem ruídos estridentes, mas boa parte da gritaria da colônia de Kidnappers vem de exibições, tanto de macho quanto de fêmeas a proclamar a propriedade de seu território. Abaixam e levantam a cabeça e o pescoço alternadamente, abanado também a cabeça de um lado para o outro, ao mesmo tempo que mantêm as assas parcialmente levantadas e agitam a cauda. Ao fim da exibição, pressionam a ponta do bico contra a parte superior do peito, mantendo-se assim por um ou dois segundos. O ato em si indica uma agressão.
Na verdade, nesse ritual, as bicadas são simuladas, mas podem acontecer de verdade. Se isso ocorre algumas horas depois o gesto já se torna “poli¬do e a bicada no chão é representada pelo abaixar da cabeça. Não obstante, a exibição retém a mensagem de motivação agressiva: “Afaste-se!”Quando o mergulhão australásio “faz uma reve¬rência”, executa menos movimentos de bicar o chão que o do norte e mantém as asas junto ao corpo. Essa versão e a luta menos violenta sugerem menor agressividade em todos os sentidos.
Uma das manifestações mais interessantes da agressão territorial do mergulhão do norte é o ataque do macho sobre a companheira toda ver que se encontram, como se a estivesse lem¬brando quem é que manda no ninho. Quando o casal está formado há pouco tempo, os ataques do macho são tão violentos e ininterruptos que um obser¬vador ocasional pode pensar que se trata de uma agressão unilateral, pois a fêmea não reage aos golpes e apresen¬ta a nuca para ser bicada. A explicação para esse comportamento é de que a fêmea, externamente idêntica ao ma¬cho, se parece com um possível intruso, despertando no macho a agressão ter¬ritorial — que ela deve então desarmar.
O item seguinte de comportamento que eu queria investigar era o acasala¬mento. Não tive de esperar muito, pois no período que antecede a postura dos ovos, os mergulhões se acasalam com freqüência. Mas, uma vez que a fêmea põe o ovo, branco como giz, o ato termi¬na abruptamente. Observei um macho interrompê-lo em franco andamento ao avistar o ovo recém-posto. Antes e durante o enlace, os machos de Kidnappers, da mesma maneira que as mi¬nhas aves de Bass Rock apertavam o pescoço da fêmea à força com o bico, dando-lhe estocadas e empurrando-a para manter uma certa cadência. Era outra manifestação de agressão, com¬binada com o comportamento sexual, que a fêmea despertava no companhei¬ro. O ato sexual durava em média 26 segundos, semelhante ao do mergulhão do norte, tempo quatro ou cinco vezes maior que o gasto por outras aves marinhas semelhantes ou maiores, como os pelicanos e os cormorões (ou biguás).
O acasalamento, na maioria das aves marinhas, incluindo os mergulhões, serve não só para a fecundação, mas também para fortalecer a relação do casal e apressar a maturação dos ovos. Os mergulhões começam a se acasalar bem antes de um óvulo estar pronto para a fertilização. Os machos e fêmeas de Kidnappers divi¬dem a tarefa de incubação do ovo. Quan¬do o parceiro de folga retorna de sua expedição ao mar, geralmente depois de doze horas fora, o casal executa uma efusiva cerimônia de saudação. Essa é uma das maiores exibições das aves, comparada com a dança dos albatrozes ou com a cerimônia de triunfo dos gansos, e é o ponto alto de uma reunião. Peito contra peito, asas levantadas, os parceiros gritam de maneira estridente e atacam com o bico, atingindo de vez em quando o pescoço um do outro.
Também os poucos minutos de menor comoção na colônia chamaram-me a atenção: se não era um pássaro, aterrissando no lugar errado e tentando freneticamente se recolocar, era outro tentando decolar. Os mergulhões, a menos que estejam em pânico, levam algum tempo preparando a decolagem. Trata-se de uma adaptação para não derrubar um ovo ou um filhote desamparado no meio da colônia. O casal, de muito acordo, assinala a partida iminente e de maneira coordenada. Antes de voar, o mergulhão adota a postura peculiar de “apontar para o céu” e gira o corpo vagarosamente em torno de si, erguendo as patas.
No entanto, as comoções aumentaram quando um pássaro de partida tinha de abrir caminho através da colônia e era atacado por todos os lados. Evidentemente, a postura pré-vôo não assegura a passagem incólume através das fileiras. Acho que a verdadeira função dessa postura seja enfatizar a intenção de partir e também inibir o parceiro de deixar o ninho ao mesmo tempo.
Os mergulhões do Kidnappers nidificam em terreno plano e percorrem um longo caminho ate chegar aos limites da colônia, ao contrário dos parentes do norte, que se acomodam em penhascos e só precisam chegar à beirada e ganhar o espaço. Outro dos hábitos comuns dos mergulhões é o bater das asas quando a plumagem está molhada, guia ou desarrumada. Mas eles também fazem isso se estiverem assustados ou se preparando para voar, levantamentos sistemáticos sobre a freqüência do bater de asas mostram que ela é maior no começo e no fim da estação, mas cai no meio, quando predomina a tarefa de incubar os ovos e cuidar dos filhotes.
Limpar, alisar ou compor as renas com o bico são outros gestos simples dos mergulhões que adquiriram a função secundaria de união do casal. Us casais geralmente acompanham a cerimônia do acasalamento cutucando-se um ao outro na cabeça e pescoço. Eles se bicam amorosamente também, como se estivessem se beijando, e isso parece ser uma forma subliminada de agressão. Essa agressividade entre os adultos se reflete no comportamento dos pais em relação aos filhotes? Provavelmente bastante. A plumagem do mergulhão jovem aparece com 10 ou 11 semanas de vida, e é diferente da do adulto. No fim da estação de reprodução, a colônia de Kidnappers apresenta um colorido preto e branco. Em cada base plana de ninho, vê-se um jovem preto (mas com o ventre claro e penas brancas no dorso), com o tamanho e a postura de seu pai.
Com os pássaros de Bass Rock acontece o mesmo, exceto pelo fato de que os jovens são muito mais escuros que os Kidnappers. O que tem isso a ver com agressão? Imagine o que poderia acontecer se um jovem mergulhão de Bass Rock fosse atacado por um macho recém-chegado com a mesma violência que ataca sua companheira. Um único incidente dessa natureza contra um filhote, ainda incapaz de voar, o levaria à morte prematura. A coloração do jovem, por ser tão diferente da do adulto, reduz a possibilidade de um ataque.
Já os jovens mergulhões australásios correm menor perigo: habitam o chão plano em vez de um buraco no penhasco, e seus pais são menos agressivos. Talvez por isso, a tonalidade de suas penas seja bem mais clara (isto é, ele é mais parecido com o adulto) que os nortistas da mesma idade. Além disso, quando o mergulhão jovem começa a lançar-se ao mar à procura de peixe, o peito e o abdome claros também funcionam como uma boa camuflagem, de modo que ele se torna menos visível do fundo do mar e os peixes o confundem com a luz do céu.
Os mergulhões jovens do Cabo Kidnappers são alimentados cerca de duas vezes por dia e um prazo de 13.5 a 15.5 semanas eles passam de 100 gramas a avezinhas de cerca de 3 quilos, ou aproximadamente 40% do peso de um adulto. Na colônia, a aglomeração dos ninhos e o bico formidável dos adultos são uma defesa contra predadores, tais como a gaivota de dorso negro do sul. Dia após dia, os filhotes abafam-se no platô enquanto o sol da Baía Hawkes ergue-se no céu azul. Já não há mais a aparência de ordem que caracterizava a colônia nos primeiros dias, quando as fileiras de adultos chocando pareciam geometricamente precisas. Agora, a colônia parece um quarto de crianças bagunçado. Logo o jovem mergulhão trocará a penugem por penas que o capacitarão a voar.
Nesse ponto, os mergulhões do norte e os australásios apresentam sutis diferenças. O primeiro vôo, um simples ato de lançar-se da beira do penhasco e voar para o mar por uns 3 quilômetros ou apenas alguns metros na descida, é sabotado por traiçoeiras correntes de ar descendentes. Por isso, é geralmente errático e descoordenado. Algumas tentativas terminam desastrosamente, com o jovem pesado e as asas destreinadas perdendo todo o controle e espatifando-se de encontro à base dos rochedos.
Os pais mergulhões do norte ignoram completamente a cria depois que esta deixa o ninho, condenando-a aos riscos de uma transição sem a menor assistência, num desafio que mais da metade das avezinhas não consegue superar. O mergulhão australásios, ao contrário, aprende a voar por estágios, caminhando até os limites da colônia, praticando vôos curtos e retornando uma ou duas vezes ao ninho para ser alimentado. Os adultos australásios são suficientemente pacíficos para permitir que os jovens saiam do ninho até os limites da colônia para então voltar. Quanto aos mergulhões do norte, mesmo se a topografia permitisse a agressividade dos adultos impediria que os filhotes agissem assim.
De fato, mais de uma vez, vi jovens impedidos por ataques de adultos de chegar à beira do recife. Achei a prática dos mergulhões australásios, de alimentar seus filhotes diversas vezes durante o aprendizado de vôo, de grande interesse evolutivo. Embora façam seus ninhos em mundos opostos, os mergulhões do norte e os australásios têm comportamento exatamente equivalente. As únicas diferenças se referem a mudanças sutis na freqüência e intensidade dos componentes que os levaram á descobrir a agressão. Esta teoria, sustentada por algumas evidências circunstanciais, deve ser testada como todas as teorias. Espero que quem resolver testá-la pela observação de campo aproveite tanto quanto eu a companhia dos mergulhões.