A vingança das cobaias
Todos os anos, 90 milhões de ratos e camundongos morrem em experimentos de laboratório. Mas novas pesquisas indicam que tudo isso pode ser em vão. E agora a medicina vai ter de rever seus conceitos
José Lopes
Ilustração: Fernanda Simonato
O nome da criatura já deixa claro que estamos falando de uma das maiores esquisitice do reino animal: Heterocephalus glaber (“cabeça diferente, sem pelos”). Para os leigos, seu nome é rato-toupeira-pelado. Outro apelido menos carinhoso para o bicho africano de 10 cm é “pênis com dentes afiados e perninhas” (o horror, o horror!). Mas esse animal apavorante, um tipo de ratazana pelada dentuça, é a nova aposta da ciência para salvar a pesquisa médica. Sim, porque os tradicionais ratos e camundongos, as mais populares cobaias de laboratório do mundo, podem estar ameaçando as pesquisas médicas. Mais do que isso: uma nova corrente de cientistas acredita que os remédios e tratamentos que são testados neles possam nem mesmo funcionar em humanos.
Mas vamos entender o que está acontecendo. A ameaça toda vem da maneira como esses roedores são criados. Ratos e camundongos de laboratório quase sempre crescem com comida à vontade e nenhum exercício. Isso faz com que tenham um metabolismo totalmente anormal, longe de simular o funcionamento do organismo de qualquer pessoa que não seja um obeso mórbido. E, assim, não serviriam para os testes. “Posso afirmar com confiança que o excesso de comida e a falta de exercícios têm efeitos profundos sobre a fisiologia e a vulnerabilidade à doença dos órgãos dos ratos”, diz Mark Mattson, chefe do Laboratório de Neurociências do Instituto Nacional do Envelhecimento dos EUA. E vem mais encrenca por aí: a baixa diversidade genética dos roedores de laboratório também estaria distorcendo o resultado das pesquisas. Além disso, o simples predomínio de camundongos e ratos no mundo da pesquisa pode também impedir que espécies mais adequadas sejam usadas para estudar a biologia das doenças. E é aí que entraria o rato-toupeira-pelado. Ele é milagrosamente invulnerável ao câncer e poderia nos ajudar a entender como um organismo fica protegido de tumores. Mas, antes de pensar em substitutos, é bom conhecer melhor os mais novos vilões da ciência – e entender a ratoeira que eles montaram para nós.
Um rato é um rato é um rato
Ratos e camundongos são espécies bem diferentes – tanto que, na natureza, ratos costumam almoçar camundongos. Os camundongos (Mus musculus) medem até 10 cm (metade é cauda) e pesam 20 g. Já os ratos de laboratório costumam pertencer à espécie Rattus norvegicus. Bem mais avantajados, medem 25 cm (mais 25 de rabo) e pesam em torno de 500 g.
Mas por que justamente a dupla se tornou a base das ciências biológicas modernas? “Ratos e camundongos foram introduzidos como modelos para humanos porque têm muitas semelhanças biológicas com o homem e desenvolvem doenças parecidas”, explica o geneticista brasileiro Marcelo Nóbrega, da Universidade de Chicago, EUA. De fato, o sequenciamento genético dos bichos confirmou que eles são parentes mais próximos do homem do que a maioria dos mamíferos (como cães, gatos ou cavalos, por exemplo). E, para a pesquisa, quanto mais parecido conosco, melhor. Como é antiético contaminar pessoas saudáveis com micróbios ou fazer transplantes experimentais de órgãos, é preciso encontrar uma espécie que seja o “modelo” mais preciso para simular os males. E, nessas, os ratinhos entraram na dança.
Outro fator importante para escolher cobaias é a própria anatomia do bicho. Não é muito útil estudar olhos de insetos, por exemplo, que têm a visão muito diferente da nossa. Mas algumas lulas e lesmas-do-mar, apesar de serem muito mais primitivas, têm neurônios gigantescos, que já ajudaram muito neurocientista a entender o nosso cérebro. Já o tamanho dos porcos faz com que eles sejam o alvo ideal para testar transplantes de órgãos, por exemplo. Ratos são pequenos, mas são mamíferos – e boa parte de suas funções corporais é parecida com a nossa.
Todos esses motivos foram levados em conta quando ratos e camundongos começaram a ser usados como cobaias. Mas razões muito menos científicas também entraram no jogo. Por exemplo: esses roedores se reproduzem com facilidade e rapidez, e chegam à maturidade sexual em poucos meses – o que é uma mão na roda quando você precisa de muitos indivíduos para ter resultados confiáveis. É mais fácil e rápido criar 100 camundongos do que 5 macacos. Os roedores conseguem ter seus primeiros bebês, uma ninhada de 6, com 5 semanas de vida. Já chimpanzés, por exemplo, só têm um filhote por vez, e as fêmeas só engravidam depois dos 10 anos de idade. Os roedores também são pouco exigentes em relação a comida e abrigo. Ocupam relativamente pouco espaço, e podem ser abrigados em gaiolinhas como as de passarinho. Hoje em dia, os biotérios, instalações onde a bicharada dedicada à pesquisa é abrigada, viraram fábricas de fazer rato.
Resumo da ópera: a pesquisa biomédica é hoje o império da rataria. Dados da União Europeia, de 2008, indicam que apenas 20% dos vertebrados usados em laboratórios não eram roedores (somando peixes e aves, com cerca de 15% do total; coelhos, porquinhos-da-índia e hamsters, que fazem outros 5%; e cavalos, macacos, porcos e cães, que juntos não chegam a 1%). Os outros 80%, ou 12 milhões de cobaias na Europa, são ratos e camundongos. Extrapolando esse número para o resto do mundo, chegamos ao aterrador número de 90 milhões de bichos dando a vida para a ciência por ano no mundo. Essa monarquia absoluta raramente era questionada para valer. Coube a um pesquisador americano dizer que o rei estava nu. Nu e gordo – o que pegou mais mal ainda.
Regime neles?
Foi Mark Mattson, do Laboratório de Neurociências do Instituto de Envelhecimento, que deu o alarme. Como neurocientista, seu principal interesse de pesquisa são problemas neurológicos, como derrames, mal de Parkinson e de Alzheimer. Contra esses males, diversas pesquisas recentes têm mostrado que ingerir menos comida pode ajudar a diminuir os sintomas. “Para nós ficou muito claro que as condições normais de criação dos roedores eram ruins para o cérebro conforme os animais envelheciam”, diz Mattson. Você provavelmente já leu – inclusive aqui na SUPER – que um dos principais segredos para a longevidade é restringir a ingestão de calorias. Mas boa parte dos estudos que apontaram isso também pode ter sido feita em ratos sedentários. E agora?
Por isso, Mattson e seus colegas decidiram medir qual era o peso (sem trocadilhos) dessas distorções nos ratos. O resultado foi bem… enfático. Eles descobriram que roedores de laboratório “normais” muitas vezes são morbidamente obesos – alguns ratos chegam a pesar 1 kg, o equivalente a um humano de 200 kg. E metade dessa massa corporal é gordura. Além disso, os animais tinham pressão 15% mais alta, níveis de glicose no sangue 20% mais elevados e o dobro do colesterol de roedores criados em condições mais naturais. Ou seja, é hábito testar novos remédios em animais que não são saudáveis normalmente – e não vão reagir às substâncias de forma confiável. “Quando falei com outros cientistas ao redor do mundo sobre os nossos achados e mostrei que os animais `normais¿ deles eram superalimentados, sedentários e pré-diabéticos, eles responderam que nunca tinham considerado esse fato ao elaborar seus estudos”, diz Mattson. Boa, ciência.
Ainda não dá para saber até que ponto essa situação teve impactos sobre os resultados de experimentos e, claro, sobre os tratamentos sugeridos para nós, seres humanos esbeltos. Mas Mattson tem certeza de que algumas pesquisas estão indo na direção errada. “Por exemplo, quando simulamos um derrame cerebral em camundongos, os danos ao cérebro diminuem se a dieta ficar menos calórica. Mas isso pode significar que as drogas que reduzem o dano cerebral nos animais que comem demais não vão funcionar nos bichos com alimentação normal”, diz o pesquisador americano. De qualquer forma, os argumentos que ele levanta deixaram a pulga atrás da orelha em muito cientista por aí. “O ponto levantado por esses caras é relevante e, provavelmente, correto. Provoca uma discussão importante”, diz o brasileiro Marcelo Nóbrega.
Tudo em família
Gordices à parte, os pesquisadores estão lidando também com outra consequência indesejável da criação de roedores de laboratório. Depois de décadas de reprodução intensiva, os bichos acabaram sofrendo uma padronização genética – e ficaram todos parecidos demais. Na verdade, padronizar os bichos até fazia parte do plano original para garantir que todos os testes tivessem os mesmos resultados sobre todos os ratinhos. Por isso, os cientistas passaram a incentivar cruzamentos consanguíneos – de pais com filhas ou de irmãos com irmãs – para criar as linhagens de roedores. Algumas, como a chamada Black-6 (de camundongos), tornaram-se tão populares que acabaram dominando fatias imensas do mercado de bichos de laboratório. Mas existem indícios de que essa estratégia foi longe demais. Na ânsia de criar modelos homogêneos, os pesquisadores podem ter ficado com um mico na mão – linhagens de ratinhos tão particulares que não representam mais a biologia de sua espécie (para nem falar de seres humanos). O que, na prática, torna esses bichos pouco úteis como modelos. Para muitos, é mais indício de que o uso de cobaias deveria ser banido dos laboratórios.
É essa perspectiva que está levando os pesquisadores a considerar o uso de cobaias menos convencionais. Uma das possibilidades são os saguis – que têm a vantagem de serem primatas, como nós e, ao mesmo tempo, são bem menos lerdos para se reproduzir do que outros macacos. E há, claro, o rato-toupeira-pelado, cujo genoma foi sequenciado recentemente, e que é especialmente interessante porque quase não fica doente. A criatura parece ter descoberto a fonte da juventude dos roedores. Enquanto ratos e camundongos vivem 3 ou 4 anos e morrem de câncer se não forem devorados antes, o ratão chega fácil aos 25 anos. Talvez ele possa nos ensinar uma ou duas coisas sobre longevidade. Mas, claro, é apenas um exemplo das milhares de espécies que podem ser úteis para entendermos nossas próprias doenças. Isso, se não resolvermos entupi-las de comida, é claro.
Contra essas doenças, os ratos mais atrapalham que ajudam
Câncer
Não é difícil fazer um câncer humano crescer em ratos. Mas essa facilidade dos roedores de desenvolver tumores tem pouco a ver com a dinâmica da doença em humanos, o que leva os cientistas a questionar até que ponto os dados são “traduzíveis” para nós.
Tuberculose
Desenvolver novos remédios contra o bacilo de Koch envolve testes em roedores, mas o organismo dos bichos responde ao micróbio de forma muito diferente dos humanos. Isso levanta dúvidas sobre se as drogas boas para rato serão boas para nós.
Envelhecimento
Nas últimas décadas, estudos que deixavam as cobaias passando fome indicavam que o caminho para a longevidade é comer muito pouco. O problema é que estavam comparando bichos que tinham comida à vontade (provavelmente obesos) com outros que comiam normalmente. Tudo indica que os obesos é que estavam morrendo cedo, e não os seus colegas é que morriam tarde.
O que outros animais têm a nos ensinar que os roedores não têm
Mosca
A famosa drosophila é fácil de criar em laboratório (aliás, é fácil de criar em qualquer lugar) e tem carac-terísticas que ajudam no estudo da genética. Ela tem cromossomos gigantes nas glândulas salivares larvais que ajudam os cientistas a visualizar como os genes funcionam.
Peixe-zebra
O peixinho Danio rerio, popular em aquários de todo mundo, é um dos reis da embriologia. Seus embriõezinhos são grandes, transparentes e se desenvolvem fora do corpo da mãe, o que ajuda a visualizar todo o processo de construção do corpo de um vertebrado, como nós.
Lebre-do-mar
Foi ao estudar as células nervosas dessa lesmona marinha de até 75 cm que o pesquisador americano Eric Kandel ganhou um Nobel de Medicina. Ela tem um sistema nervoso extremamente simples – apenas alguns milhares de neurônios – e que permite ao bicho várias formas de aprendizado. Com isso, foi usada para estudar a memória.
Verme
O Caenorhabditis elegans é um verme de apenas 1 mm de comprimento. Ele possui um número limitado de células (pouco mais de mil), o que ajuda os cientistas a estudar sua especialização – como cada célula assume sua função nos tecidos do organismo.
Porco
Por causa do tamanho, são os animais ideais para estudar transplantes de órgãos. Além disso, porcos podem ser modificados geneticamente para que seus órgãos se tornem compatíveis com o nosso organismo. Isso evita os riscos de rejeição e a necessidade de arrumar um doador humano.
PARA SABER MAIS
Zoobiquity: What Animals Can Teach Us About Health and the Science of Healing
Barbara Natterson-Horowitz e Kathryn Bowers, Knopf, 2012
African Mole-Rats: Ecology and Eusociality
Nigel Bennett e Chris Faulkes, Cambridge University Press, 2000